Apesar da ampla utilização, poucos sabem quais são os requisitos para tornar uma cláusula de concorrência válida no Brasil.
Na Inglaterra, em 1414, John Dyer foi levado aos tribunais por ter descumprido um contrato. Ele teria acordado que não realizaria comércio na mesma cidade que um comerciante da região, por um período de 6 meses. John Dyer foi absolvido, pois o Tribunal entendeu que o contrato firmado entre ele o comerciante não lhe conferia nenhuma forma de vantagem[1]. Esse foi o primeiro registro histórico de uma cláusula de não concorrência.
Desde o séc. XV, pelo menos, as “amarras contratuais” têm acompanhado as relações negociais e trabalhistas de nossa sociedade. Hoje, em um contexto de reconhecimento do capital humano para as empresas[2], a utilização de cláusulas que restrinjam a obtenção desse capital pela concorrência se torna bastante relevante.
O presente artigo tem por premissa apresentar as formas de utilização de cláusulas de não concorrência e de não aliciamento em contratos de trabalho, tanto pela ótica do empregador, como também do empregado. Serão abordados os requisitos necessários para que essas cláusulas sejam legítimas e aplicáveis na legislação brasileira e, por fim, um exemplo prático da sua má utilização.
A cláusula de não concorrência e não aliciamento
A cláusula de não concorrência é aquela que “envolve a obrigação pela qual o empregado se compromete a não praticar pessoalmente ou por meio de terceiro, ato de concorrência para com o empregador”[3].
Durante a vigência do contrato de trabalho, a não concorrência do empregado em relação ao empregador é um pressuposto da relação de emprego, uma vez que a confiança é essencial para sustentar essa relação. Quando o empregado quebra essa confiança e concorre com seu empregador, é possível encerrar o vínculo, até mesmo por justa causa, conforme previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”):
“Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
(…)
c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço” [4]
Assim, durante a vigência do contrato de trabalho e ainda que não haja expressa previsão contratual sobre a não concorrência, o empregado não pode – sem permissão – desenvolver atividade que represente alguma forma de concorrência para com o seu empregador.
O objetivo da cláusula de não concorrência é deixar claro no contrato de trabalho a restrição, e tem como efeito principal estender essa restrição, que será aplicável mesmo após o fim da relação empregatícia. Nesse caso, o empregado que se demitir, ou for demitido, fica impedido de trabalhar para um concorrente do empregador por um determinado período e desde que, neste período, seja realizado o pagamento de indenização por parte do empregador.
Outra cláusula aplicável em contratos de trabalho é a de não aliciamento ou não solicitação. Ela obriga o empregado a, após o término de seu vínculo com a empresa, não recrutar outros empregados ou clientes do ex-empregador. Dessa forma, a inserção de cláusula de não aliciamento ou não solicitação no contrato de trabalho, autorizará o ex-empregador a proteger a sua clientela e demais membros da equipe, sem restringir a liberdade de trabalho do ex-empregado. Por esse motivo, tal cláusula é melhor aceita pelo empregado e não há muito histórico de judicialização ou conflitos dela decorrentes.
Por protegerem escopos distintos, importante destacar que a cláusula de não-concorrência e não aliciamento podem constar, conjuntamente, no mesmo contrato de trabalho, ou seja, uma não exclui a outra. Contudo, conforme será abordado a seguir, somente a cláusula de não concorrência exige indenização.
Sob a ótica do empregado
No Brasil, a liberdade de exercício do trabalho é uma garantia constitucional presente no artigo 5º, inciso XIII[5]. No mesmo sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas traz em seu rol de garantias, o direito ao trabalho e à livre escolha de emprego[6].
A Constituição Federal ainda estabelece a livre iniciativa como elemento fundamental da ordem econômica nacional[7], assegurando a liberdade individual de inserção no mercado, que garante ao trabalhador liberdade para empreender ou associar-se a outras empresas que explorem qualquer atividade econômica.
Com efeito, a cláusula de não concorrência restringe as possibilidades de trabalho, de escolha e eventualmente, da própria livre iniciativa do empregado, especialmente quando delas dependeria para se autossustentar após o término de seu vínculo com a empresa.
Embora não exista expressa previsão na legislação brasileira, a inserção de tais cláusulas nos contratos de trabalho é prática corriqueira e sustenta-se no artigo 444 da CLT, que dispõe sobre a liberdade das partes de estipular sobre as relações contratuais de trabalho, desde que seu conteúdo não se oponha ou conflite com a proteção do trabalho.
Nesse contexto, a doutrina e a jurisprudência também já se posicionaram positivamente sobre a utilização da cláusula de não concorrência, mas desde que alguns requisitos sejam cumpridos, incluindo, como premissa óbvia da sua legitimidade, que exista a compensação do empregado durante todo o intervalo de tempo que perdurar a sua inatividade laboral, como veremos adiante.
Sob a ótica do empregador
O capital humano constitui um dos principais ativos das empresas, e a depender da atividade empresarial, não seria exagero dizer que é determinante para sua existência[8]. Portanto, é natural que empresas busquem formas de desenvolvê-lo, retê-lo e, em último caso, restringi-lo frente aos seus concorrentes.
Empresas investem no desenvolvimento de seu capital humano por meio de treinamentos, cursos de pós-graduação e outras ferramentas que contribuem para a capacitação e qualificação do empregado, visando a contrapartida que será gerada no futuro, pela expectativa de melhora na sua performance.
Além do conhecimento subjetivo adquirido pela experiência no trabalho e pelas ferramentas de capacitação supracitadas, o empregado pode ter acesso a informações confidenciais, os chamados “segredos de empresa”.
Pode -se entender como “segredo de empresa” qualquer “informação, técnica ou não, caracterizada por escassez suficiente para lhe dotar de valor competitivo num determinado mercado”[9]. O segredo de empresa pode ser fruto de uma inovação técnica patenteável, mas que o criador opta por manter sigilosa com o intuito de usufruir exclusivamente dela por período superior àquele garantido pela patente. Também constituem segredos empresariais os chamados segredos de negócio, como listas de clientes, decisões estratégicas, soluções não protegidas pelo sistema de proteção à tecnologia e o know-how, conjunto de conhecimentos e experiências da empresa. Quando divulgados, os segredos de empresa obviamente perdem o seu valor competitivo, em prejuízo ao investimento realizado pela empresa para o seu desenvolvimento.
À luz da livre concorrência, um dos princípios da ordem econômica nacional assegurado pela Constituição Federal[10], espera-se que cada pessoa inserida no mercado de trabalho possa usufruir das vantagens competitivas resultantes do investimento que aplica em suas atividades. Em função disso, proíbe-se a concorrência desleal e outras medidas que reduzam o equilíbrio concorrencial como medida de proteção para a manutenção do próprio mercado.
Quando um empregado deixa uma empresa para ingressar em (ou constituir) uma concorrente, ele leva consigo o conhecimento sobre os segredos daquela empresa, de forma que a concorrente artificialmente passará a ter acesso às vantagens competitivas relativas a esse conhecimento sem ter que despender o mesmo investimento.
A cláusula de não concorrência, portanto, visa impedir que isso ocorra, restringindo a possibilidade do empregado utilizar seu conhecimento sobre as informações confidenciais da empresa até que elas se tornem obsoletas, ou ao menos, tenham a depreciação do seu valor pelo tempo, protegendo o valor do investimento realizado pelo empregador.
A aplicação e validade da cláusula de não concorrência no Brasil
Conforme já destacado, a legislação brasileira não prevê a cláusula de não concorrência, sendo a sua aplicação no Brasil moldada por uma construção doutrinária e jurisprudencial, que encontra respaldo no direito comparado.
O Código Comercial alemão, por exemplo, reconhece expressamente em seu artigo 74 a cláusula de não concorrência (“wettbewerbsverbot”), requisitando que ela proteja um interesse comercial legítimo, não ultrapasse o período de dois anos e preveja o pagamento de uma indenização. Na Itália, o artigo 2125 do Códice Civile determina que o acordo de não concorrência (“patto di non concorrenza”) deve atender a requisitos como prever pagamento de indenização e estabelecer os limites territoriais, de objeto e do tempo de restrição à liberdade de trabalho do empregado[11].
Verifica-se que no direito comparado, a cláusula de não concorrência tem ampla aceitação, desde que não seja aplicada de forma irrestrita, o que significa dizer que a validade da cláusula de não concorrência está condicionada a não está impedir a limitação da liberdade de trabalho e, especialmente, da capacidade de subsistência do empregado. A construção doutrinária-jurisprudencial brasileira também caminhou nessa direção, estabelecendo requisitos necessários à aceitação, validade e viabilidade da cláusula.
Os requisitos que devem ser cumpridos, de maneira geral, para que a cláusula de não concorrência seja válida, segundo a jurisprudência e doutrina brasileiras, são:
- Limite temporal: a cláusula de não concorrência não pode vigorar por tempo indeterminado, deve ser estabelecida uma duração razoável. É recorrente a recomendação do prazo máximo de dois anos[12][13], em referência ao período máximo de validade dos contratos por prazo determinado, conforme disposto no artigo 445, caput, da CLT[14].
- Limite territorial: não se admite que a cláusula restrinja a liberdade de trabalho em qualquer lugar, ela deve se limitar à área de influência do empregador no mercado, o que permite ao empregado exercer a mesma atividade em uma empresa que não compita territorialmente com o empregador.
- Compensação financeira: o empregado deve receber uma compensação financeira em vista da restrição de sua liberdade de trabalho. Sobre este ponto é pacífico que deve haver alguma compensação[15], contudo há divergência quanto ao seu montante. Por um lado, afirma-se que o objetivo da compensação é permitir que o empregado mantenha seu padrão de vida durante a vigência da cláusula, sugerindo que o valor pago deva ser o da última remuneração do empregado, multiplicado pelo número de meses em que ele deixará de exercer sua atividade[16]. Enquanto que, também se afirma que a “compensação há de ser proporcional à restrição imposta. Quanto mais ampla a limitação – quer do ponto de vista do objeto, quer do ponto de vista temporal quer, ainda, do ponto de vista espacial – maior deve ser a compensação e vice-versa”[17]. Dessa forma, ainda há muita divergência quanto ao valor a ser pago pelo empregador ao empregado. Além do estabelecimento da compensação, é recomendável que o seu pagamento seja feito em um único pagamento, se possível, pois seu parcelamento continua a gerar uma obrigação entre as partes, muitas vezes não mais desejada, e que se estenderá pelo tempo.
- Especificação da atividade: a cláusula deve especificar a atividade em que se aplicará a restrição, para que não haja impedimento deliberado e total do trabalho do empregado, permitindo que exerça outras atividades profissionais que não representem concorrência em relação ao empregador, e nos limites dos termos da cláusula estabelecida.
Quando os requisitos não são cumpridos de maneira adequada, as cláusulas de não concorrência geralmente são declaradas nulas em juízo, como fica explícito nos seguintes trechos de julgamentos:
“Assim, tem-se pela não validade dos termos, uma vez que não foi delimitado o exercício das atividades a que a parte autora estaria restrita, não houve delimitação específica da área geográfica a qual o empregado está restrito, há desproporcionalidade entre valor da indenização e o período de impedimento de atuação do empregado, bem como há estipulação de multa apenas para o empregado em caso de inadimplemento. Entendo, dessa forma, que o direito de trabalhar ficou restringido de forma não aceitável e não razoável, revelando desproporcionalidade em salvaguardar o direito de propriedade do empregador.”[18]
“No caso, o Tribunal Regional registrou expressamente que a cláusula de não concorrência não estipulou limitação territorial ou previsão de qualquer espécie de remuneração à autora. Consignou, ainda, incontroverso que a reclamante não recebeu compensação pela restrição de sua liberdade de trabalho, bem como não houve qualquer contraprestação pelo período da restrição (…). Nesse contexto, correta a decisão recorrida ao concluir pela invalidade da cláusula de não concorrência.” (grifos nossos) [19]
É importante fazer uma ressalva sobre o momento da assinatura da cláusula de não concorrência. Os melhores momentos para estabelecer a cláusula seriam o momento da contratação do empregado, ou o momento no qual ele é transferido para um cargo de confiança. A inserção tardia da cláusula de não concorrência na relação empregatícia por meio de aditivo ao contrato de trabalho é possível, mas não se recomenda pois pode gerar questionamento sobre a sua validade, com base no artigo 468, caput, da CLT, que proíbe a alteração no contrato de trabalho que resulte em prejuízo ao empregado[20]. Além disso, outro argumento desfavorável a essa prática, seria que durante a vigência do contrato de trabalho, o empregado se encontra em posição de maior suscetibilidade às imposições do empregador, de modo que teria sido obrigado a aceitar essa condição, sem que lhe tivesse sido dada a oportunidade de recusá-la, como poderia fazer inicialmente. Essa tese é defendida, por exemplo, no seguinte trecho de julgamento do Tribunal Superior do Trabalho:
“Nota-se que, para o TRT, a cláusula em comento era válida, justamente porque firmada no início do contrato. Nesta Turma, no entanto, prevaleceu a conclusão de que o fato de a cláusula ter sido avençada “somente” após dois meses do início do contrato, além de não afastar a ilicitude da alteração realizada em prejuízo do trabalhador, ocorreu justamente no período em que esse se encontrava mais suscetível a eventuais pressões do empregador, reafirmando-se a condição de hipossuficiência do réu, ainda que porventura alcançasse a qualidade de alto empregado.”[21]
Nesse sentido, reforça-se a importância de se buscar estabelecer a cláusula de não concorrência no momento da assinatura do contrato de trabalho, observando-se todos os demais requisitos que são imperativos à sua validade, tais como a compensação financeira do empregado, o limite temporal, territorial e de escopo da restrição, tudo com o intuito de evitar exposição trabalhista.
Breve relato do caso americano sobre não concorrência
No Brasil, a validade da cláusula de não concorrência requer contrapartidas por parte do empregador, o que certamente limita o seu uso indiscriminado e por este motivo, a classifica como uma “amarra contratual”.
No entanto, constata-se nas práticas adotadas nos Estados Unidos uma perspectiva muito distinta, com consequências que também merecem ser destacadas.
Em 2014, aproximadamente, 1 em cada 5 trabalhadores estado-unidenses estavam atrelados à uma obrigação de não concorrência. Além disso, 15% dos trabalhadores sem ensino superior também se submetiam à essa cláusula[22]. Ou seja, é inconteste que o uso contundente e abrangente da cláusula de não concorrência afetava, inclusive, trabalhadores sem ensino superior completo.
Na maioria dos estados norte-americanos essas cláusulas são válidas, independente da escolaridade, nível salarial ou oferecimento de contrapartidas ao empregado[23], tornando o seu uso bastante facilitado pela legislação local.
Por outro lado, constata-se também que a porcentagem de salário pago ao trabalhador em relação ao produto nacional tem caído de forma acelerada no país[24]. Atribui-se a tal efeito o aumento de poder de monopsônio[25] das empresas. A acepção mais comum de monopsônio é a situação onde existe apenas um comprador no mercado, situação análoga ao monopólio. No caso, seria um modelo de mercado de trabalho que se opõe à competição perfeita, na medida em que reconhece e legitima que a oferta de trabalho para uma empresa não seja flexível, devido às fricções das relações de trabalho e aos amplos poderes que as empresas exercem sobre os trabalhadores.
Nesse contexto, e fazendo-se um paralelo que interessa a essa discussão, as cláusulas de não concorrência podem intensificar o poder de monopsônio do empregador, na medida em que impedem a mobilidade da força de trabalho, especialmente dentro de um mesmo setor, obtendo-se como resultado negativo a impossibilidade de aumento da faixa salarial do próprio empregado e por consequência, de toda a sua categoria profissional[26].
Assim, embora a cláusula de não concorrência seja uma ferramenta bastante protetiva para a segurança do empregador com relação aos segredos de empresa que forem divididos com empregados, bem como investimentos realizados em determinados profissionais, a sua utilização de forma indiscriminada pode afetar substancialmente os empregados e gerar efeitos econômicos bastante negativos que podem impactar todo o mercado de trabalho.
Utilizando as amarras contratuais de maneira segura e socialmente responsável
No presente artigo, buscou-se apresentar os principais direitos e deveres envolvidos na aplicação de cláusulas de concorrência nos contratos de trabalho, destacando-se que a liberdade de exercício do trabalho e a proteção dos segredos empresariais dos empregadores devem sempre dialogar de forma equilibrada.
Portanto, uma das premissas é que se observem os requisitos para sua validade, sendo estas estipulações claras quanto a limitação específica do escopo do trabalho, limitação espacial, limitação temporal e compensação financeira, sob pena da Justiça do Trabalho considerar a cláusula de não concorrência nula ou anulável, e na hipótese de vir a ser aceita, condenar o empregador à compensação financeira do empregado, durante todo o intervalo de prazo que a restrição permanecer.
Ressaltamos que a utilização da cláusula de não concorrência é uma ferramenta importante para a preservação do capital intelectual e da posição de uma empresa no mercado, contudo sua utilização demanda os cuidados que tratamos no presente artigo.
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