Infelizmente, não é novidade que o Brasil se destaca quando o assunto é violência contra pessoas LGBTI+[1], fato que acaba repercutindo no mercado de trabalho, no qual várias destas pessoas sofrem discriminação em função de orientação sexual e identidade de gênero[2]. Esse problema pode ser exemplificado por meio de casos de travestis e transexuais que muitas vezes são impedidas de acessarem determinadas vagas em função de preconceito, mesmo que sejam qualificadas e que para isso tenham enfrentado severas barreiras[3] para a obtenção de formação acadêmica.[4]
O nosso quarto artigo da série “Semeando Diversidade” analisará a importância da promoção de diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero no ecossistema de startups brasileiro e algumas discussões inerentes à inclusão.
Introdução e Terminologia
Acreditamos que um importante ponto de partida seja: não basta uma organização se compreender como tolerante e respeitosa a diferenças, ela precisa ser abertamente anti-homofóbica e anti-transfóbica. Muitas empresas se apresentam como espaços de acolhimento quando na verdade isso não faz parte da cultura institucional. Se o posicionamento interno da empresa for claramente intolerante a discriminação, os colaboradores estarão informados que atos como esses serão repreendidos. Contudo, antes de entrarmos mais detalhadamente em como promover um ambiente mais tolerante e inclusivo é importante falarmos sobre a terminologia. Muitas pessoas confundem o que é orientação sexual e identidade de gênero, o que por si só já pode ser um problema
Quando estamos falando sobre orientação sexual o que está em voga é a forma que determinado indivíduo se relaciona com outro[5]. Enquanto que identidade de gênero faz parte da identidade daquele indivíduo e como este se entende como pessoa. Quando a identidade de gênero não coincide com o marcador de gênero[6] atribuído no momento do nascimento estamos diante de diversas possibilidades como pessoas transgênero, transexuais, travestis, não binárias e assim por diante. Entender que identidade de gênero é algo diverso de orientação sexual implica em, por exemplo, compreender que uma pessoa homossexual não necessariamente se identifica com o gênero oposto ao que lhe foi atribuído ao nascimento e vise versa. Sugerir isso ou fazer brincadeiras a este respeito não só demonstram ignorância como também desrespeito.
Para facilitar o entendimento, traremos exemplos hipotéticos. Uma mulher estava grávida e quando a criança nasceu a obstetra olhou para o bebê e identificou a presença de um pênis e com base nisso atestou o nascimento de um menino. Esta criança foi registrada e recebeu um nome masculino e cresceu sendo tratada desta forma, contudo, ao longo de seu desenvolvimento demonstrou sinais de que se identificava com o gênero feminino apesar de possuir características físicas socialmente relacionadas com o sexo masculino. Assim, passou pelo processo de transição (podendo ou não envolver hormônios e/ou cirurgias) apresentando-se para a sociedade como uma mulher trans. Esta mulher trans pode ser heterossexual (se relacionar com homens), pode ser lésbica (se relacionar com outras mulheres), pode ser bissexual (se relacionar tanto com homens e mulheres) e assim por diante.
Portanto, entender o que é identidade de gênero significa compreender que ao tratar com uma pessoa trans durante uma entrevista de emprego, por exemplo, é importante se atentar para o nome social daquele indivíduo e trata-lo pelo gênero com o qual a pessoa se identifica.
Conforme falaremos a seguir com mais detalhes, o Supremo Tribunal Federal, recentemente, em decisão histórica[7], entendeu ser possível a retificação de nome e marcador de gênero diretamente no cartório, o que significa que algumas pessoas já possuem o nome social em sua documentação, contudo, em razão do custo ligado a este procedimento, muitas ainda não puderam fazê-lo. Isso significa que os documentos destas pessoas não refletem seu gênero nem nome corretamente, gerando desconforto e constrangimento em diversas ocasiões como no ambiente de trabalho, em consultas médicas, supermercados, escolas etc. Em caso de dúvida quanto a forma de tratar a pessoa (qual nome ou gênero) é válido perguntar de maneira educada.
A sexualidade e individualidade das pessoas não deve ser tema de dúvidas impertinentes ou de comentários. Da mesma forma que é irrelevante a vida íntima de um colega de trabalho heterossexual ou cis-gênero[8] isso deve ser regra chave para criar um ambiente acolhedor ao público LGBTI+. Infelizmente, não é incomum escutarmos relatos de piadas, perguntas íntimas ou comentários inapropriados direcionados a esse grupo. Este tipo de comportamento não é apenas inapropriado como pode ser compreendido como assédio moral, ensejando processos trabalhistas contra a empresa ou até mesmo reparações cíveis por danos morais contra colegas de trabalho. Garantir um ambiente livre de descriminação faz parte da responsabilidade do empregador de zelar por um meio ambiente de trabalho saudável.
Benefícios da diversidade de gênero e de orientação sexual
A diversidade de gênero e de orientação sexual pode valorizar a criação e o desenvolvimento da empresa em diversos aspectos:
A acirrada competição pelo recrutamento de talentos já vem sendo discutida há pelo menos duas décadas. Em 1997, a consultoria McKinsey & Company publicou o relatório “The war for talent”, que concluiu que as empresas com melhores talentos têm melhores performances financeiras e, consequentemente, tornam-se mais competitivas no mercado[9].
Apesar de o cenário não ter se alterado, hoje sabemos que há formas de alcançar talentos que podem fazer a diferença no corpo de colaboradores, potencializando o poder criativo do empreendimento. Um deles é expandir o pool de fontes de talentos, abrangendo profissionais de diversas origens, orientações sexuais e identidade de gênero.
A mesma empresa de consultoria, em relatório publicado em 2015[10], indicou, ainda, que o processo de recrutamento de talentos diversos e de alto potencial é facilitado quando os gestores refletem a diversidade pretendida. Isso demonstra a importância da diversidade nas diversas instâncias hierárquicas de uma instituição.
- Identificação com o público alvo
A diversidade enquanto política institucional de uma empresa também permite que ela possa se alinhar a segmentos heterogêneos de consumidores, expandindo o alcance de seus produtos e, portanto, seu lucro.
Esse alinhamento tem duas consequências relevantes. A primeira é o já mencionado alcance a públicos alvos que podem ser decisivos, seja por seu poder de compra, seja por sua representatividade no corpo total de consumidores[11]. A segunda é a capacidade da empresa responder às transformações do mercado com maior rapidez e atender as necessidades de seus clientes de forma mais real e objetiva.[12]
Uma empresa relevante do setor de bebidas, por exemplo, desejando criar uma correspondência maior entre seus funcionários e o público pertencentes a grupos minoritários, estabeleceu que 38% dos novos contratados nos Estados Unidos fosse de alguma minoria.[13]
- Pluralidade de soluções e inovações
Uma composição diversa do corpo de colaboradores das empresas gera um campo de interação e de troca de experiências muito rico. Dessa maneira, estão à disposição diferente ferramentas para a resolução dos conflitos. Isso gera dissenso, indispensável para o crescimento e desenvolvimento de ideias criativas e inovadoras.[14]
Diversidade concreta
- Garantia de direitos
O Brasil não conta com uma lei federal que tutele exclusivamente os direitos da população LGBTI+. No entanto, muitos estados e cidades têm leis próprias sobre a matéria, como São Paulo[15], Minas Gerais[16] e Bahia[17]. Ao todo, onze estados brasileiros e o Distrito Federal[18] têm algum tipo de legislação em favor desse segmento, conforme pesquisa que realizamos nos sites das assembleias legislativas.
O Judiciário também garante e estende direitos a essa população, mesmo que ainda não tenham sido reconhecidos pelo Legislativo. É o caso do reconhecimento de união estável e de casamento homoafetivo[19] para fins de dependência em benefícios previdenciários ou convênios médicos privados, resguardados, respectivamente, pela Portaria nº 513 de 09 de dezembro de 2010 e pela Súmula Normativa nº 12, de 4 de maio de 2010, da Agência Nacional de Saúde.
O respeito ao nome social é outro direito que não pode, em nenhuma hipótese, ser negado aos indivíduos que não se identificam com o gênero que lhes foi imposto no nascimento. Conforme já mencionamos, no início de 2018 foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, entendendo ser possível a alteração do nome e do sexo por via administrativa, ou seja, diretamente em cartórios, sem necessidade de decisão judicial nem de apresentação de “provas” sobre a não conformidade com o gênero até então constate nos documentos[20]. Isso, portanto, implica na necessidade de a empresa reconhecer tal identidade de gênero e criar um ambiente adequado para que a pessoa possa passar pela transição sem a preocupação de sofrer uma demissão motivada por preconceitos, além de se mostrar aberta à contratação de professionais desse perfil.
- Ambiente livre de assédio moral
O não cumprimento dos direitos acima indicados – e de muitos outros – pode configurar assédio moral no ambiente de trabalho, já que expõe o trabalhador a uma situação humilhante e constrangedora. Outra forma de tornar o ambiente de trabalho mais receptivo à população LGBTI+ é quebrando o padrão heteronormativo na institucionalidade da empresa. O uso da linguagem neutra nos formulários e nos registros e o respeito à auto identificação de gênero desde a entrevista de emprego são exemplos de condutas adequadas e coerentes.
Conclusão
Os benefícios da diversidade de gênero e de orientação sexual para uma empresa não podem ser ignorados. Contudo, não basta apenas a construção de um discurso representativo. É necessário criar oportunidades e apoiar medidas concretas para que a população LGBTI+ sinta-se segura e confortável dentro da empresa. A criação de normas de condutas que repudiem qualquer tipo de preconceito e de uma ouvidoria para apurar eventuais casos, o apoio a capacitações realizadas por funcionários LGBTI+, e a penalização de atitudes discriminatórias são maneiras possíveis de concretizar a escolha política de inclusão e respeito adotada pela empresa.
Além de ações internas, as empresas podem buscar parcerias com plataformas que desenvolvem trabalhos de formação e profissionalização da população em questão, que, como já mencionado, sofre com alto índice de expulsão escolar. Dentre muitas existentes, destacam-se o Transcidadania[21], iniciativa da Prefeitura de São Paulo, e o Transempregos[22].
A criação de uma cultura de respeito e inclusão é muito mais simples quando cultivada desde o início da história de uma empresa. Muitas empresas de grande porte vêm se adequando rapidamente a essas demandas, reforçando a importância da diversidade e os benefícios que ela traz.