Como se configura o assédio moral no trabalho? Quais meios podem ser adotados pelas empresas para prevenir e coibir essa prática?
Revisores:
/ Yara Cristina Leal Girasole Costa
/ Dennys Eduardo Gonsales Camara
Arte:
/ Laura Wolff Bandeira Klink
Introdução
A maior parte dos brasileiros passa, pelo menos, 1/3 do dia no trabalho. São 8 horas diárias de convívio com colegas, chefes, prestadores de serviço, clientes… Além desse período no trabalho, tem-se, ainda, o tempo gasto com transporte e alimentação o que, no final das contas, para muitos, há uma convivência maior com as pessoas do trabalho do que com os próprios amigos e familiares.
Pensando nisso, entendemos que cabe ao empregador promover um ambiente de trabalho saudável, seguro e amistoso para todos os colaboradores[1] e que esta responsabilidade ajuda no desempenho comercial e na produtividade de todos os envolvidos com a empresa.[2]
Contudo, essa responsabilidade não é levada à sério por muitos empresários, pois ainda existe a percepção de que os efeitos de um ambiente conflituoso só afetam pessoas fracas, com “frescura” ou pouco “jogo de cintura”. Ao nosso ver, além de equivocada essa percepção, ela ignora os impactos negativos em produtividade, comprometimento e rotatividade de colaboradores e clientes.
Conforme demonstraremos, há muitos anos já se identificou as consequências que um ambiente de trabalho abusivo pode trazer para os trabalhadores. Explicaremos que, apesar do assédio moral estar presente em muitas empresas, existem meios eficientes de prevenção e combate a ele, beneficiando todos os envolvidos.
Com o objetivo de tornar a leitura fluída e informativa, o texto foi dividido em perguntas frequentes sobre este tema. O conteúdo foi formulado pensando em informar pessoas que estão inseridas em situações de assédio moral visando também dialogar com empresas que tenham interesse em se adequar às melhores práticas do mercado para coibir e prevenir casos de assédio moral no ambiente de trabalho.
Importante destacar que este tema não deve ser visto unicamente como um risco jurídico, financeiro e/ou reputacional às organizações. Como discutiremos adiante, trata-se de garantir direitos fundamentais como à personalidade, dignidade, integridade física, psíquica e moral, além de tantos outros.
O que é assédio moral?
Um mesmo termo pode ser definido de diversas formas. Quando tratamos de conceitos que são, ao mesmo tempo, utilizados em nosso dia a dia e na doutrina jurídica, como no caso do assédio moral, não é uma tarefa fácil encontrar uma definição objetiva. O que normalmente acontece (como no assédio sexual) é que o uso informal do termo abarca uma gama maior de práticas do que a definição mais restritiva do Direito.
O que se entende popularmente como “assédio moral” ou “violência moral” pode ocorrer em vários ambientes como, por exemplo, em casa, no trabalho, na escola ou no clube. Um caso comum nos noticiários no Brasil relaciona-se à aplicabilidade da Lei Maria da Penha[3], que protege pessoas do gênero feminino[4] de diversas violências (dentre elas, a moral) no âmbito doméstico, familiar e em relações íntimas de afeto. Assim, verifica-se que o contexto em que o assédio ou a violência moral ocorrem importam para a responsabilização do agressor, definindo quais leis serão aplicáveis àquele caso.
Assim, as normas que regem o Direito do Trabalho e as relações trabalhistas é que cuidaram de situações de assédio no trabalho. Por isso, o que é esperado de relações de trabalho é diferente do que é esperado de outros tipos de relações. Isso auxilia a compreender o motivo de algo ser entendido como assédio no ambiente de trabalho que talvez não fosse em outro contexto.
No presente artigo vamos analisar hipóteses de assédio moral ocorridas no ambiente de trabalho, o qual, para ser reconhecido, exige a comprovação de dano moral, conforme expõe o professor Amauri Mascaro Nascimento:
“O dano moral é o efeito que tem três principais causas ou motivos que levam à lesão do direito de proteção à dignidade da pessoa: a agressão moral, o assédio moral e o assédio sexual (…)”.[5]
Para Amauri, a diferença entre agressão moral e assédio moral está na reiteração da prática. A primeira é um ato instantâneo, enquanto a segunda ocorre quando temos condutas recorrentes. Segundo ele, assédio moral é uma série de atos cuja tipificação[6] não é definida pela lei, mas que pode ser vista como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando o seu trabalho[7].
A Organização Internacional do Trabalho (“OIT”) já tratou deste assunto diversas vezes, principalmente nas discussões quanto à saúde do trabalhador, que inclui a saúde mental. Recentemente, mais um avanço ocorreu neste sentido. Em junho de 2019 foi lançada a Convenção n° 190 sobre violência e assédio (Violence and Harassment Convention, ainda sem tradução oficial para o português)[8]. Trata-se de instrumento de Direito Internacional que orienta, aos países signatários a adoção de boas práticas e mecanismos de combate e prevenção de violência e assédio no ambiente do trabalho, pelos países signatários.
Um ponto interessante desta nova norma é que ela reconhece a existência de grupos mais sujeitos a casos de assédio, chegando a definir no artigo 1° o termo “gender-based violence and harassment”[9], que em tradução livre para português seria “violência e assédio com base em gênero”. Ao longo da norma há indicações que mulheres e meninas estão em situação de maior vulnerabilidade a casos de violência e assédio, mas também reconhece que existem outros grupos sujeitos à maior exposição a este grave problema. Nesse sentido, o artigo 6° dispões que:
“Cada Membro adotará leis, regulamentos e políticas que garantam o direito à igualdade e à não discriminação no emprego e na ocupação, inclusive para trabalhadoras, assim como para trabalhadores e outras pessoas pertencentes a um ou mais grupos vulneráveis ou em situações de vulnerabilidade que são desproporcionalmente afetados pela violência e pelo assédio no mundo do trabalho.”
A definição de “violência e assédio” trazida por este diploma, também traduzida livremente para o português é:
“o termo ‘violência e assédio’ no mundo do trabalho refere-se a uma série de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou ameaças, sejam uma ocorrência única ou repetida, que visem, resultem ou possam resultar em ameaças físicas, psicológicas, dano sexual ou econômico e inclui violência e assédio com base em gênero;” [10] [11]
A Convenção nº 190 ainda precisa passar pelo procedimento de ratificação por parte dos países, inclusive no Brasil, para que possa ser exigível como norma. Contudo, a Convenção já é um instrumento útil para compreendermos em que pé estão os debates a respeito deste tema, em âmbito internacional, uma vez que estas convenções são elaboradas conjuntamente pelos países membros da OIT, podendo ser utilizadas como baliza para entrar em compliance com as melhores práticas desenvolvidas na atualidade.
Como ocorre o assédio moral? Como é possível identificá-lo?
A ausência de uma norma que delimite de forma clara o que é assédio moral impõe um desafio para os operadores do direito, principalmente, porque existem formas mais óbvias e formas menos óbvias do assédio moral ocorrer. Um dos principais desafios neste tema era a ausência de fixação de parâmetros de reparação do dano, já que não existiam critérios estabelecidos em lei para isso. Essa situação mudou com a Reforma Trabalhista, conforme explicaremos a seguir.
Vale ressaltar que o assédio moral pode ocorrer em vários ambientes, inclusive no ambiente de trabalho, sendo passível de indenização quando há uma relação de trabalho com profissionais de qualquer natureza, sejam eles empregados, temporários, estágios, aprendizes, terceiros e assim por diante.
Abaixo, apresentaremos uma lista de hipóteses que podem ser consideradas passiveis de indenização por configuração de assédio moral. Vale destacar que esta lista não é exaustiva, mas pode ser usada como balizadora para identificar casos preocupantes que mereçam atenção dos gestores e empregadores:
- Brincadeiras vexatórias e/ou apelidos humilhantes;
- Brincadeiras ou insinuações de cunho sexual, que a depender do caso, podem também ser enquadradas como o crime de assédio sexual;
- Tratamento de minorias com base em estereótipos (muito comum em casos de homofobia, racismo e sexismo, por exemplo);
- Quadro, lista ou classificação de trabalhadores “ruins” como forma de pressionar a equipe por desempenhos melhores;
- Indiretas e/ou insinuações constrangedoras;
- Imposição de pegadinhas ou prendas aos trabalhadores que não cumpriram a meta;
- Distinção de tratamento/discriminação motivado por características pessoais;
- Práticas abusivas mascaradas de atos lícitos, como ficar trocando o trabalhador de loja, exigir tarefas sabidamente impossíveis de serem feitas naquele prazo, dentre outras, para tentar fazer a pessoa se demitir;
- Propositalmente criar um ambiente hostil visando a demissão do trabalhador para deixar de pagar a integralidade das verbas rescisórias;
- Excluir um trabalhador da convivência e atividades praticadas pelos demais, limitando a convivência social das pessoas de forma injustificada;
- Perseguir e chamar a atenção de um trabalhador de forma ríspida e desrespeitosa na frente dos outros, provocando constrangimento;
- Usar características da pessoa como forma de tirar sarro ou envergonhá-la;
- Tratar o profissional com desprezo e desrespeito;
- Impor metas inatingíveis;
- Abuso de autoridade;
- Obrigar o trabalhador a passar por exames psiquiátricos por suspeitar que este seja portador de doença mental;
- Gerir a equipe com base no medo e ameaça de demissão;
- Desrespeito ao nome social e gênero de pessoas não-cisgêneras[12];
- Tratar trabalhadores de forma diferente sem dar a mesma oportunidade de crescimento e desenvolvimento a todos de forma igualitária;
- Atentar contra a liberdade religiosa de algum trabalhador;
- Exigências estéticas desproporcionais invadindo a esfera privada do trabalhador (ex: exigindo que a mulher use maquiagem, ou até que mulheres negras alisem o cabelo, o que pode eventualmente ser enquadrado como racismo);
- Revistas vexatórias na saída do trabalho insinuando que o trabalhador esteja furtando bens sem qualquer prova concreta;
- Tratamento diferente ou criação de barreiras para pessoas que engravidaram ou tiveram filhos recentemente, às vezes pressionando para que peçam demissão; e
- Difundir boatos inverídicos ou constrangedores sobre alguém com o intuito de lesionar a imagem ou moral de um trabalhador.
O que mudou quanto ao assédio moral com a Reforma Trabalhista?
Algumas mudanças ocorreram com a Reforma Trabalhista, promovida pela Lei 13.467, de 13 de julho de 2017[13] e, embora ainda não tenha sido inserido um conceito de assédio moral na legislação[14], a Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”) passou a explorar de forma mais clara a tema quando regulamenta o dano de natureza extrapatrimonial:
“Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.
Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.
(…)
Art. 223-E. São responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da omissão.
Art. 223-F. A reparação por danos extrapatrimoniais pode ser pedida cumulativamente com a indenização por danos materiais decorrentes do mesmo ato lesivo.” (grifos nossos)[15]
Os artigos acima transcritos, inseridos na CLT pela Reforma Trabalhista, demonstram que o tema dano moral e assédio moral passaram a ser melhor delimitados na CLT apesar da conceituação não ter sido feita especificamente como assédio moral. Além disso, foram criados critérios a serem analisados pelo juiz no momento de avaliar o dano e definir a reparação.[16]
O que provocou controvérsia, contudo, foi a criação de parâmetros para a reparação de danos de natureza extrapatrimonial[17], pois com a Reforma Trabalhista, as indenizações passaram a ser fixadas com base no último salário da vítima, gerando indenizações diferentes para indivíduos que foram assediados da mesma forma.
É por essa razão que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (“STF”) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADI”) 6069 para questionar essa parametrização quanto à reparação por danos morais decorrentes da relação de trabalho. Segundo a OAB, “os artigos 223-A e 223-G, parágrafos 1º e 2º, da CLT criaram uma espécie de tarifação para o pagamento de indenizações trabalhistas, o que pode gerar, por vezes, reparações injustas e desproporcionais se utilizado como base de fixação da indenização o último salário do ofendido”.[18]
Por fim, é importante lembrar que a construção do conceito de assédio moral foi feita com base em doutrina e jurisprudência. Diante destas importantes modificações promovidas pela Reforma Trabalhista, será necessário observar se serão mantidos os mesmos pressupostos. Uma dúvida possível, por exemplo, é se o requisito de reiteração da conduta ainda será necessário para configurar o assédio moral ou se atos isolados também poderão ser processados desta forma.
Assédio moral e sexual são a mesma coisa?
Não. Diferente do que ocorre com o assédio moral, o assédio sexual é crime e está descrito e delimitado na lei penal[19]. Além de poder ser processado na esfera criminal, em que se busca responsabilização penal do agressor, podendo levá-lo à prisão, o assédio sexual também pode ser discutido nas esferas trabalhista e cível, buscando uma indenização financeira à vítima.
Isso não significa que não possa haver casos em que a conduta do agressor configure, ao mesmo tempo, práticas de assédio moral e sexual, já que é possível que a vítima tenha sofrido diversos tipos diferentes de violência ou desrespeito no mesmo contexto.
Um exemplo comum de assédio sexual seguido de assédio moral ocorre quando um gestor faz investidas buscando trocas ou favores sexuais contra a vontade da vítima, que o rejeita. O gestor, então, ressentido, começa a boicotar o trabalho desta, sendo agressivo ou até manipulador, visando a demissão daquela pessoa que não consentiu com os seus avanços de cunho sexual.
O assédio sexual não precisa ser reiterado (pode acontecer uma vez isolada), e inclusive, pode vir acompanhado do assédio moral, conforme já falamos. O assédio sexual também pode ocorrer de formas mais ou menos visíveis, como insinuações, cantadas, brincadeiras, com o objetivo de obter vantagens ou favorecimento sexual.
Um dos principais pontos ligados ao assédio sexual é o fato do poder coercitivo dentro de uma relação hierarquizada interferir na externalização do consentimento da pessoa de grau hierárquico inferior.[20] Não se trata da lei proibir que relacionamentos sejam iniciados em ambiente de trabalho. O problema se dá pelo fato da utilização indevida do poder conferido pela posição profissional dentro da empresa para se fazer avanços que constranjam ou coloquem um(a) trabalhador(a) em situação de vulnerabilidade / fragilidade no exercício do seu consentimento em razão do medo de represálias.
Apesar do termo “assédio sexual” ser usado popularmente para descrever condutas impróprias (normalmente, contra mulheres) em diversos ambientes, é importante pontuar que o crime de assédio sexual só se aplica para casos ocorridos no ambiente de trabalho, enquadrados no Artigo 216-A do Código Penal[21].
Isso não significa que os chamados “assédios sexuais” ocorridos fora trabalho não possam ser processados, julgados e punidos civil e penalmente. O que acontece é que outras normas são usadas para enquadrar estas condutas a depender do contexto em que ocorram.
Vale lembrar também que os abusos de cunho sexual que venham a acontecer no ambiente de trabalho, mas que por algum motivo não possam ser enquadrados como “assédio sexual” poderão ser vistos como importunação sexual (Artigo 215-A do Código Penal[22] dentre outros, a depender do caso. O enquadramento da conduta dependerá da análise específica do caso concreto.
Abordaremos o tema do assédio sexual com maior profundidade em artigo específico.
Quais tipos de assédio moral existem?
Em geral, existem duas formas principais do assédio moral ocorrer: (1) interpessoal e (2) institucional. O interpessoal, como o próprio nome sugere, é aquele que ocorre entre pessoas, já o segundo, assédio moral institucional, costuma ocorrer de forma mais complexa e está ligado à cultura institucional da organização, perpassando pelas suas estruturas e não dependendo apenas da má conduta pontual de um ou alguns colaboradores. Trataremos com mais detalhe do assédio moral institucional no próximo capítulo deste texto.
Dentro da categoria de assédio moral interpessoal, encontramos duas situações diferentes:
- O assédio moral interpessoal horizontal, que ocorre entre pessoas do mesmo nível hierárquico. Seria, por exemplo, o caso de colegas que praticam brincadeiras constrangedoras frequentes com um colaborador com base em sua sexualidade, religião ou peso.
- O assédio moral interpessoal vertical necessariamente implica em uma diferença de hierarquia entre agressor e vítima. O assédio moral vertical descendente é aquele praticado por uma pessoa em cargo mais alto contra uma pessoa em cargo mais baixo e o ascendente é o contrário.
Um exemplo de assédio moral vertical descendente é aquele cometido por um chefe contra a sua secretária, após ela recusar investidas de cunho sexual e ele, então, passar a ser ríspido, grosseiro e publicamente desrespeitoso. Casos assim possibilitam a configuração de assédio sexual e moral, conforme já explicamos.
O assédio moral vertical ascendente, apesar de menos comum, é aquele que ocorre, por exemplo, quando um trabalhador é promovido a despeito de outros que, por sua vez, começam a boicotar os pedidos daquele que se tornou superior hierárquico.
Todos estes casos podem ser levados à Justiça e são passiveis de indenização, tanto do(s) agressor(es), como da empresa, que tem por obrigação fiscalizar as atividades de todos os empregados e promover um ambiente de trabalho sadio e seguro.
Assédio moral institucional existe?
O assédio moral institucional existe e é um assunto seríssimo com importantes consequências para todos os envolvidos. Para ilustrar a dimensão que este problema pode tomar, citamos um caso que tomou os noticiários do mundo todo.
Os executivos de uma grande empresa francesa estão sendo criminalmente processados pelo suicídio de, pelo menos, 35 de seus colaboradores. Trata-se de um caso de assédio moral em que a empresa adotava estratégias para pressionar pessoas a pedirem demissão, economizando com isso, segundo os promotores do caso, com o pagamento das verbas rescisórias.[23]
Foram encontradas cartas e e-mails em que estas pessoas explicavam que a razão de estarem cometendo suicídio era o grave assédio moral sofrido no ambiente de trabalho, além de outras provas que conectavam a empresa aos suicídios. Desde 2002, a França possui uma lei que tutela a “saúde física e mental” dos trabalhadores.[24]
Essa situação permite demonstrar o grau de seriedade que casos de assédio institucional podem ter. Nem todos resultam em consequências tão graves assim, mas o potencial lesivo desta conduta é preocupante e deve ser tratada com responsabilidade, seja do ponto de vista de preservação da saúde dos colaboradores, seja quanto à manutenção de um meio ambiente adequado ou até quanto à produtividade.
Existem psicólogos, profissionais de recursos humanos e até juristas que vêm estudando este fenômeno para melhor compreendê-lo, já que o assédio moral em sua modalidade institucional é um tema relativamente recente.
Há casos que são inicialmente processados como assédio moral interpessoal, contudo, ao longo do processo, o juiz percebe os contornos institucionais da conduta, podendo acionar o Ministério Público do Trabalho (“MPT”), levando em conta o interesse coletivo a ser protegido.
O fato deste tipo de assédio afetar uma coletividade permite que o MPT investigue a organização onde o assédio está supostamente ocorrendo, podendo resultar em autuação e multa, reparação e responsabilização pelos danos causados. Qualquer pessoa consegue acionar o MPT por meio de denúncia, que pode ocorrer de forma anônima, ou não, a depender da vontade do próprio denunciante. Isso, por vezes, resulta em acordos ou até em ações civis públicas, a depender do caso.
Uma forma de reconhecer a modalidade institucional do assédio moral é verificar que a prática está disseminada em diversas áreas da organização, tendo um caráter despersonalizado. Além disso, o comportamento nocivo é naturalizado pela cultura institucional e relativizado pelos profissionais que deveriam coibir a prática. Outra forma de perceber é pela adoção de estratégias de atingir metas usando terror psicológico, como práticas institucionais de ameaça ou humilhação àqueles que não corresponderem às métricas estipuladas.[25]
Quais são as consequências práticas do assédio moral na vida das pessoas e empresas?
Existem muitos estudos que apresentam os efeitos do assédio moral no ambiente de trabalho, seja para os trabalhadores, seja para as empresas. Abaixo, fizemos uma lista enxuta de algumas destas consequências, como forma de demonstrar a relevância do tema:
- Aumento nos casos de adoecimento mental dos colaboradores, havendo uma relação com aumento de casos de depressão e ansiedade, e em situações extremas, podendo chegar a idealizações suicidas;
- Faltas e afastamentos por questões médicas, inclusive afastamentos pelo INSS. Algumas pesquisas mostram que transtornos mentais são a terceira maior causa de afastamento do trabalho, no Brasil[26];
- Alta rotatividade dos profissionais que acabam buscando outras oportunidades de trabalho em ambientes menos nocivos;
- Dificuldade de cooperação e trabalho em grupo em locais onde o incentivo à competitividade é destrutivo;
- Impactos negativos na produtividade e perda de eficiência;
- Má reputação no mercado por ser um local onde estas práticas ocorrem, podendo provocar a perda de talentos e clientes;
- Comprometimento do trabalhador com a empresa é menor quando este não sente que existe um respeito mútuo; e
- Custos com processos judiciais e indenizações.
Como a empresa deve enfrentara situação caso o assédio moral ocorra?
A melhor forma de lidar com esta questão é implementação de práticas preventivas, contudo, nem sempre isso ocorre. Caso uma empresa identifique, ou desconfie, de caso(s) de assédio moral, existem mecanismos de minimizar as consequências e enfrentar o problema.
Se existir uma permissividade de condutas impróprias dentro do ambiente profissional, dificilmente será possível coibi-las de forma eficiente. É preciso que os colaboradores, gestores e sócios estejam cientes de que condutas assediantes não serão toleradas, havendo sanções.
É importante contar com formas graduais de disciplinar colaboradores que tenham comportamento inadequado. Isso também permite uma proporcionalidade nas sanções, protegendo a empresa de eventuais processos judiciais por aqueles profissionais que venham a ser demitidos em razão de suas condutas impróprias.
É possível demonstrar (processualmente) que o colaborador vinha sendo advertido e gradualmente punido pelas práticas que não condiziam com os valores da empresa. Isso também ajuda a confortar a pessoa lesada, mostrando comprometimento da empresa com o seu bem-estar. É claro que em casos graves de assédio comprovado é possível fazer a demissão por justa causa, sem que se faça uma gradação das sanções.
Uma outra forma de abordar o tema e demonstrar preocupação com o assunto é desenvolver manuais internos de boas práticas, além de treinamentos e palestras sobre o tema. Isso permite maior transparência na gestão de recursos humanos, informando os colaboradores do que é esperado deles em determinadas situações. Estas estratégias serão abordadas adiante quando falarmos de prevenção.
Ademais, em casos de assédio no ambiente de trabalho, ouvir a vítima e tratá-la com respeito é de extrema importância, porque o descrédito aprofunda a revitimização e pode aumentar os danos e os riscos para a empresa. Neste caso, o ideal é que a empresa esteja preparada para investigar a denúncia e, se constatada conduta inadequada de qualquer pessoa, tomar as medidas jurídicas necessárias, como, por exemplo, advertências, suspenção ou até dispensa por justa causa, a depender da gravidade do assédio identificado. Vale destacar, ainda, que tanto a intimidade das pessoas envolvidas, quanto o caso denunciado à empresa, devem ser tratados com sigilo para não potencializar as consequências.
Assédio moral e sexual são formas de violência que, infelizmente, não costumam ser levadas a sério. O fato da vítima buscar ajuda já é desafiador por si só e, a depender do lugar, a denúncia pode torná-la ainda mais exposta perante as outras pessoas, piorando, assim, as consequências do assédio. Com base nisso, é importante notar que poucos são os colaboradores que se sujeitam a passar por essa situação sem que algo de fato tenha ocorrido, sendo mais comum que guardem para si qualquer forma de desconforto. Portanto, acreditar e apoiar quem pede ajuda é uma das tarefas iniciais da empresa que quer solucionar casos de assédio de forma responsável.
Uma forma eficaz de abrir espaço para que a vítima descreva o ocorrido e seja dada oportunidade ao contraditório para o(s) acusado(s) é por meio da instauração de sindicância para apuração dos fatos. Para garantir a imparcialidade, muitas empresas preferem contratar profissionais externos para realizar esta atividade, apesar de ser possível estruturar uma sindicância interna com os profissionais da área de recursos humanos e outros responsáveis pela gestão da organização.
Além de permitir a coleta de provas (que pode ser útil em caso de judicialização), a Sindicância garante espaço para que todos os lados sejam ouvidos e decisões possam ser tomadas com base nos relatórios produzidos pelos profissionais responsáveis pela sindicância. É nesse momento que a versão da vítima é contraposta à do acusado, permitindo se chegar a uma versão mais próxima da realidade. Aqui também são ouvidas testemunhas, analisadas provas materiais, dentre outras diligências necessárias para a correta, justa e imparcial apuração dos fatos.
Por isso, a instauração de sindicâncias e a existência de mecanismos internos de denúncia sigilosa são formas recomendáveis de estruturar mecanismos de combate ao assédio moral e sexual nas organizações. As informações obtidas por meio destes mecanismos devem sempre ser analisadas para que melhorias sejam repensadas, visando a impedir a repetição dos problemas. É uma medida preventiva que deve ser continuamente reciclada e repensada, levando em conta a rotatividade de colaboradores e o aspecto dinâmico da cultura de cada empresa.
Como a empresa pode prevenir casos de assédio moral?
Os danos provocados por assédio não conseguem ser desfeitos. Com base nesse raciocínio, a melhor alternativa sempre será a prevenção ao assédio moral, e consequentemente, a prevenção do adoecimento mental dentre outras consequências nocivas tanto para a empresa como para os seus colaboradores.
Para que seja consultado o clima da organização e identificados focos ou possíveis riscos, existem meios de analisar as condições de convívio dos colaboradores, como pesquisas, questionários, dinâmicas dentre outros. Essa coleta de dados permite a criação de um “raio-x” da cultura institucional daquela organização. Instrumentos como esses também permitem a identificação de casos de assédio moral institucional.
Além disso, é importante criar canais de denúncia (com a possibilidade de denúncias anônimas) para que ocorrências sejam reportadas e cheguem ao conhecimento dos responsáveis pela organização. O ideal é ter um comitê responsável pelo recebimento e análise dessas informações, podendo ser composto pelos profissionais de RH ou até serviços externos especializados. Sem um canal seguro, as pessoas acabam tendo que lidar sozinhas com os casos, podendo gerar um efeito de “bola de neve”.
Aliado a isso e com base nos diagnósticos do clima e cultura organizacional, é possível adotar estratégias direcionadas e personalizadas para cada empresa. Exemplos: adotar manuais de boas práticas, códigos de ética e conduta, treinamentos para gestores e líderes, palestrar temáticas, atividades e comitês relacionadas a diversidade, dentre outros.
Apesar de úteis, estes documentos não geram efeitos se implementados isoladamente, sem qualquer treinamento ou mecanismo de sensibilização. É com base nisso que os treinamentos e programas de diversidade e inclusão devem ocorrer de forma periódica. É muito comum que a intolerância e o assédio sejam advindos da ignorância e desconhecimento sobre o(s) outro(s).
Por isso, criar a oportunidade das pessoas se conscientizarem de seus preconceitos e hábitos nocivos pode trazer resultados positivos para a organização e para os colaboradores. Há pessoas que não se dão conta dos efeitos que seu comportamento tem nos outros e espaços de aprendizado coletivo permitem aprimoramento humano e melhora do clima.
A criação de comitês de diversidade visando a coletivização de demandas de minorias também pode auxiliar a organização a se atentar a práticas discriminatórias internalizadas, mas que são sentidas por grupos minoritários. O assédio moral não é exclusividade de grupos minoritários, contudo, como existe uma maior incidência com estas pessoas, grupos de afinidade ajudam a projetar melhor as ideais e demandas desta natureza.
O exemplo também é uma ótima forma de aprendizado. Se uma organização tem pessoas em cargos elevados que praticam assédio moral é muito provável que isso acabe afetando os outros níveis hierárquicos. Um bom exemplo é sempre positivo para que as pessoas se espelhem em boas práticas, sem que pareça que o comportamento inadequado é algo institucionalmente tolerado ou que um comportamento assediante faz parte do perfil de sucesso da organização.
Uma outra forma de criar incentivos para bom comportamento e tolerância é via métricas de desempenho para crescimento dentro da empresa. É comum que os colaboradores sejam analisados pelo desempenho exclusivo de suas atividades profissionais, contudo, incluir nesta análise avaliações de comportamento e convívio ajuda a passar a mensagem de que o crescimento profissional também dependerá da capacidade de conviver de forma saudável e respeitosa com os outros.
A empresa demonstrará de fato que é vigilante com assédio moral quando coibir que colaboradores consigam se beneficiar profissionalmente e crescer na empresa às custas de comportamentos inadequados ou sabotadores a outros. Pode ser que, em curto prazo, pareça razoável promover e incentivar uma pessoa tecnicamente boa com comportamento sabidamente assediador, mas em médio e longo prazo esse indivíduo pode prejudicar o rendimento de outros e até causar riscos para a organização, sejam eles jurídicos, financeiros e até mesmo risco reputacional em larga escala.
O mundo corporativo está se transformando e com isso temos a intensificação dos movimentos pela diversidade e inclusão. Isso significa que a tendência é que cada vez mais os ambientes de trabalho reflitam a diversidade que já existe e é inerente ao ser humano. Trata-se de mais um desafio no que se refere à prevenção ao assédio moral.
Se as pessoas já se desentendiam em grupos cujas características eram em grande parte homogêneas (mulheres e homens, brancos, cis gênero, heterossexuais, classe média, etc.), como fica com a entrada de pessoas com diferentes origens, raças, identidades de gênero, orientações sexuais, religiões, deficiências? É um processo de adaptação aprender a conviver com o diferente.
Infelizmente, são comuns processos de assédio moral com base em ofensas sexistas, racistas, homofóbicas, transfóbicas, classistas, xenofóbicas, capacitistas, gordofóbicas, etaristas…mostrando a incapacidade de alguns de respeitar as diferenças. Para evitar isso, especialmente num contexto de prevenção ao assédio moral, é importante pensar em políticas de diversidade e inclusão para que a empresa possa se beneficiar da riqueza advinda de contribuições de pessoas com diferentes perspectivas e visões.
Neste sentido, estudos vêm demonstrando um vínculo cada vez maior entre desempenho financeiro e diversidade das equipes dentro de uma empresa. Um destes estudos foi promovido pela McKinsey & Company em 2014 e em 2017 e estes estudos mostram que empresas com composição variada de gênero, étnica e cultural nas equipes e nos cargos de liderança possuem performance financeira superior às demais.[27]
Para ter mais informações sobre como implementar programas de diversidade, acompanhe a Série Semeando Diversidade no nosso blog Espaço Startup.
Como ocorre a responsabilização jurídica do agressor e da empresa?
Havendo o assédio moral, a vítima poderá buscar a responsabilização diretamente do agressor na esfera civil, e da empresa na esfera trabalhista, com base no dano moral sofrido que, caso comprovado, enseja no pagamento de indenização. A fundamentação legal destes processos normalmente é com base no artigo 5° inciso, X da Constituição Federal , artigos 186 ,187 , 932, inciso III , e 933 do Código Civil e artigos 482 e 483 da CLT.
Contudo, a depender do caso concreto, é possível que, além do assédio moral, o agressor esteja incorrendo em crimes como: assédio sexual[28], importunação sexual[29], calúnia[30], difamação[31], injúria[32] e por vezes até injúria racial[33] e/ou racismo[34]. Nestes casos, além de processos nas esferas civil e trabalhista, a vítima poderá buscar a responsabilização penal do agressor.
O colaborador que sofreu – ou estiver sofrendo – assédio moral e conseguir comprovar o dano em juízo, também poderá fazer o pedido de rescisão indireta, solicitando as verbas rescisórias mesmo que ele/ela que tenha pedido demissão em razão do assédio.
A empresa que tiver que arcar com custos indenizatórios em razão de assédio moral por parte de um de seus colaboradores também poderá entrar com uma ação de regresso contra o próprio assediador, pedindo, judicialmente, que sejam restituídos os valores gastos pela empresa em razão dos atos de assédio praticados contra um colaborador.
Diferente do que ocorre com o assédio sexual, o assédio moral não é um crime em si, apesar do agressor poder cometer crimes (conforme os listados acima) enquanto pratica assédio moral. Com base nisso, existe um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional visando a criminalização do assédio moral, seguindo o mesmo modelo que foi feito com o assédio sexual.
Apesar do projeto já ter sido aprovado na Câmara dos Deputados e estar aguardando votação no Senado, muitos especialistas entendem que a delimitação da conduta não foi feita de forma adequada[35] [36] e que por isso, a criminalização não seria a melhor alternativa, somado ao fato de que alguns ainda questionam a eficácia de se combater a conduta com a mera criminalização de mais um ato[37].
Em termos de política criminal, talvez uma abordagem mais efetiva seria traçar os efeitos que a criminalização do assédio sexual trouxe, para apenas então, decidir se a criminalização do assédio moral seria de fato a melhor estratégia a ser adotada.
Conclusão
A prevenção e o enfrentamento ao assédio moral são tarefas contínuas dentro de uma organização, especialmente pelo fato do quadro de colaboradores estar em constante transformação. É normal que conflitos ocorram no decorrer das atividades de uma empresa, contudo, alguns casos podem deixar de ser conflitos pontuais e corriqueiros conseguindo configurar assédio moral.
Ignorar estes casos pode resultar em responsabilização e indenizações severas à empresa, além de, em casos extremos, colocar a saúde e a vida dos colaboradores em risco. Ademais, casos frequentes de assédio moral podem indicar a existência de assédio moral institucional, modalidade despersonalizada, e por vezes, mais complexa que o assédio moral interpessoal. Casos assim são, em regra, denunciados ao MPT, que poderá investigar, autuar e até imputar à empresa pagamento de indenizações altíssimas se restar configurado dano moral coletivo.
Existem diversos meios de prevenir e coibir práticas assediantes no ambiente de trabalho. Zelar e garantir uma cultura institucional que promova a diversidade e tolerância entre colaboradores não apenas auxilia na redução de riscos jurídicos, financeiros e reputacionais, como também melhora o clima, a produtividade e o ambiente de trabalho. Assim, é possível desenvolver um ambiente propício para melhores resultados e ganhos, com colaboradores motivados e alinhados com a visão e cultura da empresa.
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