Baptista Luz

01/09/2021 Leitura de 10’’

Contratos em moeda estrangeira, uma visão atual

01/09/2021

INTRODUÇÃO 

 

Pensando nas mudanças que ocorreram recentemente no ambiente de comércio internacional, inclusive em decorrência da pandemia, resolvemos trazer à tona novamente o debate a respeito dos contratos estabelecidos ou vinculados à moeda estrangeira, abrangendo seu contexto histórico, normativo e jurisprudencial.  

 

CONTEXTO HISTÓRICO 

Em breve retrospectiva histórica, na década de 90, Itamar Franco assumiu a presidência do Brasil em um momento em que o país enfrentava altos níveis de inflação. Em 1993, os brasileiros viveram o índice máximo de inflação: 2.000% em 12 meses. Para controlar essa situação, Itamar Franco desenvolveu a política econômica do “Plano Real”, que culminou com a promulgação da Lei n. 9.069/95 (“Lei do Plano Real”).  

O Plano Real instituiu o curso forçado do Real no Brasil. Isso significa dizer que, por determinação legal, o Real passou a ser a única moeda aceita no território nacional e, assim, a moeda obrigatória para pagamento de operações constituídas e executadas no país. 

No entanto, com a globalização das cadeias produtivas e o desenvolvimento do trato internacional, muito se questiona acerca da possibilidade de uso de moeda estrangeira tanto para o pagamento como para a indexação de valores de pagamento em operações negociadas ou executadas no Brasil.  

 

PANORAMA GERAL 

Reanalisando o tema, em primeiro lugar, ressaltamos que não houve alteração legislativa recente com relação à possibilidade de celebração, no Brasil, de contratos que estipulem pagamentos em moeda estrangeira ou que tenham seus valores vinculados à variação de moeda estrangeira.  

Para além dos arts. 1º da Lei do Plano Real a obrigatoriedade do uso do Real também é tratado pelo Decreto-Lei 857/69, pela Lei n. 10.192/2001 e por dois dispositivos do Código Civil: (i) o art. 315, segundo o qual “As dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal” e (ii) o art. 318, que dispõe que “São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial”.  

Em relação à correção do valor a ser pago em função da variação de moeda estrangeira, não só a Lei do Plano Real afasta a eficácia de disposições neste sentido, mas também a Lei sobre o Programa de Estabilização Econômica (Lei 8.880/94), em seu artigo 6º, expressamente impõe que “É nula de pleno direito a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior”. 

Neste sentido, de acordo com a legislação ainda em vigor, os contratos exequíveis no Brasil não podem estabelecer pagamentos em moeda estrangeira ou vincular seus valores de pagamento à variação de moeda estrangeira, com exceção das hipóteses expressamente previstas em lei, conforme detalhamos a seguir.  

 

EXCEÇÕES 

 

As exceções que permitem a fixação de pagamento em moeda estrangeira ou a vinculação deste valor à variação de moeda estrangeira estão previstas no art. 2º do Decreto-Lei n. 857/69 e no art. 6º da Lei 8.880/94: 

 

  1. Contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias; 
  2. Contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens e serviços vendidos a crédito para o exterior; 
  3. Contratos de compra e venda de câmbio em geral;  
  4. Empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional; 
  5. Contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país;  
  6. Contratos de locação de bens móveis, após registro prévio no Banco Central do Brasil; e 
  7. Contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior.  

 

Nas hipóteses excepcionais mencionadas acima, ainda que o valor de pagamento seja definido em moeda estrangeira ou a sua definição seja vinculado à variação de moeda estrangeira, para fins do efetivo pagamento a residente no Brasil, o pagamento deverá ocorrer em moeda corrente nacional, por meio da conversão da moeda estrangeira em Real. 

 

 

MAS, E SE O CONTRATO NÃO SE ENQUADRAR NAS EXCEÇÕES ELENCADAS ACIMA? ELE SERÁ NULO?  

De acordo com a legislação aplicável, a rigor, sim. Imaginemos o exemplo de um contrato de prestação de serviços, celebrado por partes residentes no Brasil, a ser executado no Brasil, mas cujo pagamento foi estabelecido em dólares ou a definição do seu valor foi vinculado à variação do dólar. Por não possuir nenhum elemento internacional e por não se encaixar nas exceções legais, o contrato seria, em tese, nulo.  

No entanto, apesar de ser considerado nulo por lei, a jurisprudência majoritária dos nossos Tribunais Superiores tem confirmado a validade e os efeitos jurídicos destes contratos caso as partes já tenham auferido benefícios. Isso porque, entende-se que poderia haver o enriquecimento sem causa de uma das partes, caso tais contratos fossem considerados nulos. Nestes casos, o pagamento do valor devido é feito em Real mediante a conversão do valor estabelecido ou vinculado em moeda estrangeira.  

 

MAS, COMO SE DÁ A CONVERSÃO DA MOEDA ESTRANGEIRA PARA O REAL? 

 

Em relação ao momento da conversão para o Real do valor fixado em moeda estrangeira ou vinculado à variação da moeda estrangeira, conforme explicitado nos itens a seguir, a jurisprudência propõe dois momentos distintos para sua conversão: (i) a data do efetivo pagamento, caso o contrato se enquadre nas exceções legais, ou (ii) a data da celebração do contrato, caso o contrato não se enquadre nas exceções legais, mas seja considerado válido. 

 

(i) Data do Efetivo Pagamento 

Analisando o posicionamento mais recente do STJ, como, por exemplo, no julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Declaração do REsp nº 1.672.818 em 2020, observamos que, em um contrato envolvendo transporte marítimo internacional de mercadorias, a Terceira Turma entendeu ser legítimo o contrato firmado em moeda estrangeira, devendo sua conversão ocorrer no momento do pagamento da obrigação, que, neste caso, era uma taxa de sobreestadia de contêiner.  

Em 2015, o mesmo entendimento foi utilizado pela Quarta Turma do STJ no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 538.171: “Segundo a orientação jurisprudencial deste Tribunal Superior, são legítimos os contratos celebrados em moeda estrangeira, desde que o pagamento se efetive pela conversão em moeda nacional, que deve ocorrer na data do efetivo pagamento”.  

Dentre os tribunais estaduais, identificamos que o TJSP segue, em vários julgados, o juízo do STJ, no sentido que a data da conversão da moeda estrangeira deve ocorrer no ato de pagamento. Nesse sentido, no julgamento da Apelação Cível n. 0024394-54.2011.8.26.0562, a 19ª Câmara de Direito Privado em decisão de 2021 entendeu que, nas hipóteses das exceções legais, a legislação brasileira admite a celebração de contratos em moeda estrangeira, devendo a conversão da moeda ocorrer na data do vencimento.   

Da mesma forma julgou a 20ª Câmara de Direito Privado do TJSP no julgamento da Apelação Cível n. 1107967-59.2015.8.26.0100 em 2017. Nesse caso, concluiu-se que o contrato de transporte marítimo de mercadorias configura uma das hipóteses de exceção, devendo o valor das dívidas dele oriundas, constituídas em moeda estrangeira, ser convertidas ao real na data do efetivo pagamento com base no valor médio entre as cotações oficiais do dólar para compra e venda.  

Já no TJMT, recentemente a corte também seguiu a linha de entendimento do STJ. Na Apelação Cível n. 1002357-85.2016.8.11.0003, julgada em 2021 pela 1ª Câmara de Direito Privado, analisou-se um contrato de exportação de mercadorias firmado em moeda estrangeira. Nesse caso, o tribunal entendeu ser válida a contratação em moeda estrangeira, visto que o contrato se enquadra em uma das exceções legais, devendo a conversão da moeda em reais ser feita na data do pagamento. 

 

(ii) Data da Celebração do Contrato  

A possibilidade de contratação em moeda estrangeira fora das hipóteses legais já foi discutida algumas vezes pelo STJ. Em 2009, no julgamento do REsp n. 804.791, a terceira turma analisou a questão acerca da indexação em moeda estrangeira de dívidas oriundas de contratos que não se enquadravam nas exceções do art. 2º do DL n. 857/69.  

Neste caso, decidiu-se que, em havendo parcelas vincendas estipuladas em moeda estrangeira, estas deverão ser convertidas quando do seu pagamento com base na cotação da data da contratação, aplicando-se índice de correção monetária aceito no Brasil. Conforme entendeu a corte, caso fosse decretada a nulidade do contrato de mútuo firmado em moeda estrangeira, haveria enriquecimento sem causa de uma das partes, já que o objeto do contrato, tal seja o empréstimo de dinheiro, já havia ocorrido no mundo dos fatos. 

Em 2013, a terceira turma do STJ, no julgamento do REsp nº 1.323.219, manteve o entendimento de 2009, determinando que a conversão da moeda estrangeira em moeda nacional deveria ocorrer pela cotação do câmbio da data da contratação, atualizada de acordo com um índice oficial de correção monetária vigente no país. 

No mesmo sentido, a Terceira Câmara Cível do TJBA, no julgamento da Apelação Cível n.º 0116637-07.2009.8.05.0001 em 2017, também considerou a data de contratação para a conversão. Nesse caso, analisou-se a situação do autor que emprestou à sua ex-esposa (ré) valores em moeda estrangeira, os quais não foram por ela devolvidos. O TJBA entendeu que o valor deveria ser convertido ao Real com base na cotação da data em que se deu o empréstimo do dinheiro. 

 

CONCLUSÃO

A celebração de contratos exequíveis no Brasil e estabelecidos em moeda estrangeira ou cujo pagamento é vinculado à variação de moeda estrangeira é tema que merece atenção especial. Isso, porque é necessário analisar em cada contrato, dentre outros pontos, (i) o seu enquadramento ou não nas exceções legais; (ii) eventual nulidade em razão de previsão legal ou validade em razão do entendimento jurisprudencial; e, ainda, (iii) caso seja considerado válido, o entendimento jurisprudencial sobre a respectiva data de conversão do valor estabelecido em moeda estrangeira para o Real.  

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