As autoridades da concorrência do mundo todo têm realizado inúmeros estudos sobre o funcionamento das plataformas digitais.
A União Europeia, o Reino Unido e os Estados Unidos estão, naturalmente, mais avançados na análise do tema. Na Europa, foram propostas duas novas legislações sobre mercados digitais[1], que buscam, dentre outras coisas, estimular inovação e competitividade, proteger consumidores e evitar que gatekeepers[2] abusem de sua posição dominante. O Reino Unido, por sua vez, propôs uma análise distinta para as aquisições envolvendo empresas com “status de mercado estratégico”[3]. Já nos Estados Unidos, o Subcomitê de Direito Antitruste, Comercial e Administrativo publicou um relatório sobre a concorrência em mercados digitais, que contém, inclusive, recomendações para restabelecer a concorrência nesses mercados[4].
O CADE, até o momento, se limitou a publicar um estudo revisando relatórios especializados elaborados por autoridades internacionais[5], buscando tão somente sintetizar a análise de outras autoridades e aprimorar a política interna da autarquia. Como o próprio documento explica, o estudo não reflete, necessariamente, a visão da autarquia.
Espera-se, contudo, que surjam cada vez mais casos envolvendo mercados digitais[6], o que certamente exigirá um posicionamento da autoridade brasileira acerca da necessidade ou não de adequar as regras de defesa da concorrência no país. É nesse contexto que trazemos a análise de um setor que cresceu ainda mais com o aumento do uso de aplicativos na pandemia: as plataformas e aplicativos de entrega e, mais especificamente, a forma como estruturam suas cláusulas de concorrência frente a seus parceiros.
No dia 10 de março, a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) impôs medida preventiva contra o aplicativo de delivery iFood: a empresa não poderá celebrar novos contratos que contenham cláusula de exclusividade, nem alterar contratos já celebrados nessa esfera até a decisão final do caso. A decisão do órgão demonstra que, de fato, existem particularidades nos mercados de plataformas digitais que precisam ser analisadas de forma cautelosa e, sobretudo, que condutas unilaterais[7] estão recebendo maior atenção por parte da autoridade concorrencial brasileira.
Abaixo, elaboramos um resumo com os principais pontos do caso e possíveis consequências para plataformas digitais e mercado de tecnologia como um todo.
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CADE vs iFood, um resumo do caso:
A investigação se iniciou após representação da Rappi, uma das concorrentes do iFood, a qual alegou que a concorrente é a maior foodtech da América Latina e se valeu de sua “incontestável posição dominante no Brasil” para praticar, de forma reiterada, condutas anticompetitivas que incluíram a discriminação dos restaurantes parceiros por meio da celebração de acordos de exclusividade e imposição de condições comerciais diferenciadas (i.e. mecanismos para excluir ou dificultar o desenvolvimento de potenciais players ou de players já estabelecidos, que é o caso da Rappi).
Citando documentos relevantes emitidos pela Comissão Europeia, autoridade responsável pela defesa da concorrência na União Europeia e Competition Markets Authority, autoridade de defesa da concorrência do Reino Unido, a Rappi explicou algumas particularidades dos mercados de plataformas digitais, como a competição por ecossistemas, que poderia gerar monopolização e dificultaria a interoperabilidade entre os usuários e a tendência dos denominados tipping effects, que ocorrem quando há uma acirrada competição no início e, após, um período de redução da concorrência em que o player dominante passa a usufruir de seu poder de mercado.
A Rappi também elencou como principais estratégias supostamente anticompetitivas do iFood (i) a imposição de acordos de exclusividade a restaurantes-chave; e (ii) uma série de aquisições de concorrentes menores pelo iFood. A respeito do segundo ponto, a Rappi destacou que o CADE já havia reconhecido durante a análise de outros atos de concentração envolvendo o iFood que o mercado de pedido online se tratava de um mercado concentrado e que havia preocupações concorrenciais a serem observadas, que seriam justamente as aquisições de concorrentes menores pelo iFood e os contratos de exclusividade impostos aos parceiros[8].
Por fim, a Rappi solicitou a concessão de medida preventiva a fim de determinar a suspensão imediata das obrigações de exclusividade entre iFood e restaurantes parceiros e que o iFood se abstenha de adotar qualquer tratamento discriminatório com restaurantes parceiros.
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O que aconteceu depois do recebimento da representação?
Após o recebimento da representação, o CADE emitiu ofício ao iFood solicitando manifestação sobre a representação. A autoridade elaborou um questionário robusto solicitando informações sobre o mercado de pedidos online de comida, destacando a solicitação de dados para estimação de poder de mercado e a importância de base de dados de usuários entregadores para o sucesso da empresa.
Importante destacar, ainda, que o CADE também solicitou dados de vendas do iFood, especificando o percentual advindo de restaurantes vinculados a contratos de exclusividade, bem como os dez maiores restaurantes parceiros do iFood e respectivas receitas de vendas nos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Manaus.
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Qual foi a alegação do iFood em sua resposta?
O iFood apresentou manifestação alegando, dentre outras coisas, que a Rappi estaria utilizando o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para “fins privados” e que a empresa seria capaz de concorrer com o iFood já que desde o início das suas operações no Brasil foi apoiada “pelos maiores fundos de capital de risco e private equity mundiais, incluindo o Softbank, Andreesen Horowitz, DST Global e Sequoia Capital”. Também foi destacado que, diferentemente do iFood, a Rappi atua em diversos segmentos que não restaurantes, de modo que não depende exclusivamente dessas parcerias, podendo entregar pedidos “até mesmo daqueles que não estejam vinculados à sua plataforma.”
No que tange à cláusula de exclusividade imposta pelo iFood, a empresa alegou que houve indução à erro, na medida em que a Rappi teria apresentado disposições contratuais fora de contexto, “tomando situações particulares e justificadas como se fossem gerais e abusivas”. Ademais, a plataforma explicou que as cláusulas de exclusividades teriam duração limitada, permitindo uma concorrência periódica que seria saudável para o mercado, além de gerar eficiência aos seus parceiros e mercado em geral.
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Quais foram os demais desdobramentos do caso até a imposição da medida preventiva?
Após algumas manifestações de Rappi e iFood, uma representação da ABRASEL, proposta três meses depois da denúncia da Rappi, foi juntada aos autos do procedimento preparatório[9], por se tratar de denúncias similares. Alguns dias depois, a Uber solicitou habilitação como terceira interessada no caso, assim como o Sindicato de Restaurantes, Bares e Demais meios de Alimentação do Município do Rio de Janeiro – SINDIRIO.
Embora o iFood tenha defendido não haver plausibilidade do direito nem tampouco perigo de dano ou risco ao resultado que justificassem a concessão da medida preventiva, o CADE entendeu que, apesar de ser necessária uma instrução para verificar se a cláusula de exclusividade pelo iFood tal qual como utilizada configuraria conduta anticompetitiva, havia requisitos que indicavam potencial prejuízo aos concorrentes no mercado.
Com relação ao perigo de dano, o CADE entendeu que, ainda que o prazo de exclusividade dos contratos do iFood não sejam tão extensos, considerando o dinamismo dos mercados digitais e, principalmente, o contexto atual em que o crescimento do mercado de delivery de comidas foi enormemente impulsionado pela pandemia de Covid-19, a celebração de contratos de exclusividade poderia agravar a concentração e impor barreiras não só à entrada como permanência no mercado e até mesmo condições de rivalizar de forma efetiva por não ter acesso a parceiros comercialmente atrativos.
Nesse sentido, ainda que ao final do processo decida-se pela licitude das condutas, caso não seja adotada medida preventiva durante a instrução, há alto risco de que sejam gerados danos irreversíveis a um mercado que já está sofrendo os efeitos da pandemia. Para evitar o descumprimento da medida, foi estabelecida, ainda, multa de R$ 150 mil por dia de descumprimento.
O Ifood, alguns dias após a decisão que deferiu a medida preventiva, protocolou petição com pedido de reconsideração, alegando que tal medida resrtingiria a liberdade do iFood de continuar concorrendo com as demais plataformas, além de trazer efeitos “extremamente negativos para o mercado de entregas de comida”, como a diminuição de rivalidade e criação de ineficiências. O CADE ainda não se manifestou.
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O que esperar agora?
O caso em questão foi transformado em inquérito administrativo logo após o deferimento da medida preventiva. O inquérito administrativo é um procedimento investigatório para apurar supostas infrações à ordem econômica. De acordo com a Lei de Defesa da Concorrência, o CADE deverá encerrar o inquérito no prazo de 180 dias, contados de sua instauração – que o correu no dia 12 de março.
Após o fim do prazo, a autoridade poderá optar(i) pela renovação do prazo de investigação por até 60 dias; (ii) pela instauração de processo administrativo, caso existam fortes indícios de práticas lesivas ao mercado; ou (iii) pelo arquivamento da investigação.
Ainda é cedo para dizer se o CADE irá considerar a prática do iFood lesiva ao mercado de pedidos online de comida. Por outro lado, o que se vê é que o CADE está, de fato, dando maior atenção às supostas condutas anticompetitivas envolvendo plataformas digitais e, especialmente, às condutas unilaterais. De fato, de acordo com o Anuário de 2020 publicado pela autoridade[10], das 76 investigações instauradas pela autoridade, 30 se referem a condutas unilaterais.
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Essa medida pode afetar as plataformas digitais ou outras empresas de tecnologia?
O próprio CADE já declarou anteriormente, no primeiro caso de conduta unilateral em plataformas digitais analisado pela autoridade[11], que tais plataformas trouxeram novas complexidades à análise concorrencial. Isso porque, embora já existissem mercados de múltiplos lados antes da economia digital, “a nova era digital aumentou suas hipóteses de incidência e, sobretudo, a dinâmica competitiva constantemente afetada por inovações, por vezes disruptivas e destrutivas.”
De fato, a preocupação sobre o funcionamento peculiar dos mercados digitais vem crescendo cada vez mais: os denominados gatekeepers realizaram, na última década, mais de 400 aquisições de empresas de tecnologia[12], sendo que a maioria sequer atingia os critérios para notificação às autoridades concorrenciais e, portanto, não foram reportadas.
Essas aquisições significam, por si só, que Big Techs impedem o crescimento de futuros concorrentes e que existem condutas anticompetitivas a serem investigadas? Além disso, seriam os critérios utilizados para notificação de operações – sobretudo o critério de faturamento – adequados para esses mercados?
Com a instauração do inquérito em questão, estimamos que outras empresas com operações no Brasil se sintam mais encorajadas a delatar práticas correlatas em seus mercados digitais de atuação e pode ser que teremos, finalmente, algum posicionamento do CADE.
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