Baptista Luz

03/03/2021 Leitura de 24’’

Governo e Inovação: O projeto de Lei que pode mudar as compras públicas de Inovação

03/03/2021
  • 24’’
  • / Escrito por:

    Juan Acosta

Historicamente, o modelo de compras públicas brasileiro[1] dificultou a contratação de inovação pela Administração Pública. Não é difícil notar que gestores públicos evitam estabelecer contratos de risco em compras públicas, seja pela jurisprudência das Cortes de Contas relacionada aos contratos com objetos incertos e/ou de altos riscos associados, seja pelos precedentes judiciais considerando tais contratos nulos e responsabilizando pessoalmente os administradores.

Verdadeiramente, embora o Brasil tenha uma vasta gama de leis escritas, a aquisição de pesquisa e desenvolvimento (P&D) só foi positivada em 2004, com o advento da Lei de Inovação (Lei nº 10.973). Após muito tempo, tal Lei fez conexão com a Lei de Geral de Licitações e Compras Públicas, estabelecendo que “a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento, que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto ou processo inovador” poderia ser contratada via dispensa de licitação1.

O dispositivo acima da Lei de Inovação foi aprimorado de forma tímida em 2016, para prever o instrumento da Encomenda Tecnológica (ETEC). A ETEC consiste em contratação “visando à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador”2.

Se há base legal para contratação, por que não há efetiva utilização do instrumento? E aí que reina o imbróglio jurídico: realmente, é praticamente inviável, para não se dizer impossível, contratar inovação via modelo licitatório ordinário. Mas o uso de dispensa sem o mínimo de lastro de pesquisa, testes, diálogo republicano, dentre outros fatores de impessoalidade e transparência, acabavam permitindo que a contratação fosse questionada, inclusive sob a ótica de desonestidade. Gestores, principalmente municipais, são alvos constantes de acusações de desonestidade por simplesmente contratarem via dispensa de licitação, fato que, a nosso ver, tornava pouco efetiva a previsão de compra de ETEC.

Fato é que compras originadas no setor público precisam ter uma gestão guiada por princípios como transparência, equidade, integridade e a fiscalização, como forma de assegurar o melhor uso dos recursos tributários, visto seu grande peso econômico e o elevado impacto social. Este mesmo peso econômico e impacto social, de outro lado, detém grande potencial como instrumento de política pública que pode visar vários fins, como geração de empregos locais, fomento à inovação, sustentabilidade ambiental, desenvolvimento de micro e pequenas empresas, apoio a minorias e também a promoção e a difusão de inovações locais (MCCRUDDEN, 2004). Ou seja, no curto prazo, contribui para a formação da estrutura de custos e qualidade dos recursos utilizados pelos Estados na implementação das políticas públicas. No longo prazo, por representar uma parcela relevante da demanda doméstica de determinados bens e serviços, afeta diretamente a estrutura e a dinâmica dos mercados em questão (DIMITRI; PIGA; SPAGNOLO, 2006)

Os contratos públicos representam uma porção significativa da demanda geral de bens e serviços. Entre 2007 e 2017, as compras públicas movimentaram mais de R$ 510 bilhões, considerando apenas os entes do Governo Federal que utilizaram o Sistema do Governo Comprasnet. Embora o interesse no uso de compras públicas como política industrial não seja novo, seu potencial para estimular a demanda por produtos e serviços inovadores, criar incentivos para a inovação empresarial e acelerar a difusão de novas tecnologias tem recebido muita atenção política nos últimos anos

Por isso, é interessante acompanhar o Projeto de Lei (PL) nº 4.253 de 2020, aprovado pelo Congresso Nacional e com expectativas de breve análise pela Presidência da República, que abre uma nova perspectiva para a contratação de compras de inovações no Brasil e aumenta a segurança jurídica, deixando de lado o mito de que não há efetividade ou eficiência em concorrência por contratações de inovação pelo Poder Público.

Entre os princípios propostos pelo PL nº 4.253 de 2020 para a futura lei, está o de ratificar a promoção do “desenvolvimento nacional sustentável” (art. 5º), assim como um dos objetivos do processo licitatório é o de incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável (art. 11). Ou seja, a lei reconhece o caráter estratégico da compra pública como um instrumento para promover desenvolvimento, que pode ser concretizado também pela aquisição de inovação governamental.[2] Quem mais se beneficia das mudanças propostas pelo PL são as startups – e consequentemente seu ecossistema de negócios – por conta de quatro instrumentos de estímulo à inovação pelo lado da demanda descritos no PL: i) as margens de preferência adicional; ii) o procedimento de manifestação de interesse restrito a startups; iii) o diálogo competitivo motivado pela inovação; e iv) os prêmios para inovação na modalidade de licitação do tipo concurso.

Como veremos, o texto do PL preserva o tratamento especial (dispensa de licitação) dado às compras públicas pré-comerciais, porém aprimora a estruturação do projeto de forma a dar segurança jurídica e deixar claro, de uma vez por todas, que dispensa de licitação não significa ausência de competição. O PL, por consequência, também cria grande estímulo às compras públicas de inovação, envolvendo objetos já introduzidos no mercado ou prestes a serem

Como brevemente indicado acima, a compra pública de inovação é diferente da aquisição ordinária e tradicional de bens e serviços. A compra pública de inovação também é diferente da compra pré-comercial, que é a contratação pública de P&D para soluções inovadoras antes de estarem disponíveis comercialmente. É a compra de um serviço de P&D (até o protótipo ou primeiro lote limitado) com base em uma necessidade da agência ou uma necessidade social de forma mais ampla (com aumento da demanda geral). O relatório “Spurring Innovation-led Growth in Latin America and the Caribbean through Public Procurement”, do Banco Internacional do Desenvolvimento (BID), cita-se dois exemplos que envolvem citação à estrutura dos

Estados Unidos e do Reino Unido, com uma série de outros países (ou seja, Países Baixos) e a própria UE, tendo agora adotado esquemas de compra pré-comercial. Eles têm características diferentes, mas compartilham a ideia básica de competições de P&D baseadas nas necessidades, onde os riscos são compartilhados entre as empresas e a agência.

O desafio é construir a estratégia de Governo Digital, atendendo anseios dos cidadãos. Este ponto, se correta e republicanamente debatido, tem força para aumentar a segurança jurídica para o gestor público ter tranquilidade em promover o bem social, sem perder o valioso espaço que já foi conquistado com a transparência, competitividade, economia e eficiência do gasto.

Afinal, por que o PL nº 4.253/2020 beneficia startups? 

 

Dispensa de licitação 

 

Não é novidade que as compras públicas previstas na Lei de Inovação estão, assim como na Lei nº 8.666/93, dispensadas de licitação e devem seguir regramentos próprios nela já definidos. Por outro lado, o próprio processo licitatório foi revisto, atualizado e readequado às novas possibilidades tecnológicas e dinâmicas de mercado. Mesmo assim, preservou-se a dispensa de licitação para a maior parte das atividades de pesquisa científica e de desenvolvimento tecnológico, dada a presença da incerteza (chamada de risco tecnológico[3] pela legislação).

Entre as compras previstas na Lei de Inovação, a encomenda tecnológica (ETEC) – art. 20 – talvez seja a mais robusta, ainda que sub utilizada, em termos de possibilidades de transformação da economia. Elas continuam dispensadas de licitação e os respectivos processos deverão ser instruídos na forma do art. 71 do PL nº 4.253/2020, mas no geral não se subordinarão ao regime da nova lei, e sim à legislação específica (art. 3º, inciso II). Mas fique claro que a encomenda tecnológica não é novidade (no Brasil e nem no resto do mundo). Ainda na década de 30, próximo ao início da II Guerra Mundial, os Estados Unidos precisavam de um veículo militar para transitar em diferentes terrenos. Sem uma solução prontamente disponível no mercado automobilístico, o governo estabeleceu critérios para, sem seguida, convidar empresas a participarem do desenvolvimento do projeto. O resultado foi os primeiros protótipos dos jipes.

 

Margens de preferência adicional 

 

Assim como na legislação anterior, o legislador manteve a possibilidade de que o Poder Público estabeleça uma margem de preferência para bens e serviços produzidos no país de até 10% nas licitações. Ou seja, a margem de preferência constitui uma forma de política pública de incentivo à produção nacional. Caso estes sejam resultantes de desenvolvimento e de inovações do país, a margem pode ser de até 20% frente ao concorrente estrangeiro. Isto não é novidade.

No caso das margens de preferência adicionais – o que não vale para as margens de preferência normais, citadas acima – o Estado pode exercer o papel de primeiro comprador de inovações que nasceram em solo nacional. É mais uma forma de política pública – enquanto as margens normais, citadas acima, beneficiam a produção nacional, as adicionais, ora descritas, estimulam e fomentam P&D nacional. Ao sinalizar a existência de um mercado consumidor para inovações nacionais, mesmo que elas sejam ligeiramente mais caras que os concorrentes estrangeiros, o Estado estimularia, assim, o desenvolvimento e a introdução de inovações por parte de empresas privadas que, de outra forma, poderiam não optar por realizar tais investimentos.

 

Procedimento de manifestação de interesse (PMI) restrito a startups 

 

Já imaginou ter uma ideia que o Poder Público poderia explorar ou aprimorar via inovação? O PMI permite que a iniciativa privada bata à porta do Poder Público, iniciando um processo público de estudos de viabilidade e potencial exploração futura, via competição e/ou seleção pública. O PMI já era previsto em outras legislações, notadamente ligadas a concessões de serviços públicos[4]. O art. 80 do PL incorpora tal procedimento nas licitações e contratações administrativas em geral para a busca por soluções inovadoras. Excepcional avanço para a iniciativa privada!

Tal como previsto no PL, o PMI permite que potenciais fornecedores façam, por sua conta e risco, estudos, levantamentos e projetos destinados a demonstrar a viabilidade de uma determinada solução e, principalmente, a viabilidade do modelo de negócios associados a essa solução. Assim, nos casos em que a administração não possui recursos e nem competência técnica para fazer projetos básicos e executivos – que são necessários para uma contratação futura – ela publica um PMI.

O uso do PMI nos estudos preliminares para concessões ou parcerias é extremamente vantajoso para a administração, uma vez que ela não precisa remunerar o serviço de elaboração do estudo. No entanto, aquele que foi autorizado a estudar o objeto em potencial, após ter entregues os estudos e caso estes venham a ser utilizados para publicação de uma compra pública via edital, por exemplo, não fica a ver navios. Caso este autorizado participe da licitação e outro concorrente vença a contratação ensejada pelo PMI, este deve reembolsar o fornecedor autor do estudo. Claro, apenas entidades dispostas a realizar contratos com a administração seriam estimuladas a realizar estes estudos.

Com isso, a administração pode se manter atualizada em relação às soluções mais tecnologicamente avançadas e aos modelos contratuais e de negócios que estas últimas ensejam,[5] mesmo na ausência de recursos materiais para a realização daqueles estudos. Consequentemente, o art. 80 garante uma saída, economicamente eficiente, por meio de exclusividade de relacionamento (lock-in) em tecnologias e modelos contratuais antigos e defasados, mesmo que a Administração Pública não tenha capacidade para elaborar projetos relacionados a eles. Além disso, o § 4º do art. 80 permite restringir o PMI a startups [6]e, assim, apresenta a primeira definição deste tipo de empresas na lei brasileira – se sancionada pela Presidência da República.

Ou seja, o procedimento de manifestação de interesse pode ser empregado para os casos em que a Administração Pública queira identificar potenciais soluções inovadoras, mesmo que o PMI não vincule qualquer comprometimento da administração. A startup apresentaria um modelo teórico ou um protótipo inicial com o objetivo de demonstrar a aplicabilidade da solução e permitir que a administração tenha elementos suficientes para conduzir um processo de contratação mais bem fundamentado e, consequentemente, mais eficiente. Mesmo assim, a realização do PMI não garante que a administração realizará qualquer contratação.

 

Diálogo competitivo motivado pela inovação 

 

Segundo analisa André Tortato Rauen, do IPEA, o texto do PL apresenta, de forma inédita, uma nova forma de licitação: o diálogo competitivo (DC). Este instrumento de compra pública se destina a situações nas quais a Administração Pública julga necessário consultar as melhores soluções disponíveis no mercado – ou prestes a estarem disponíveis – no sentido de selecionar aquelas que mais gerarão valor ao longo do tempo.

São situações complexas, nas quais inovações podem trazer retornos sociais superiores em relação às formas tradicionais já empregadas anteriormente.[7] Para evitar cometer um erro de escolha e selecionar uma opção de menor valor, a Administração Pública constrói um edital com as definições da melhor solução para um caso concreto conduzindo um diálogo com fornecedores pré-selecionados. A partir destas definições, a ela faz a seleção do fornecedor. Ou seja, o processo é feito em duas etapas: primeiro se dialoga e, depois, com base no que foi discutido, se seleciona.

Rauen também considera que o Diálogo Competitivo, principalmente na sua fase inicial de diálogo, se assemelha com o PMI por ambos serem instrumentos de diminuição de assimetrias de informação entre o mercado e a Administração. Eles se diferenciam, no entanto, porque o DC já constitui em si uma modalidade licitatória e os fornecedores pré-selecionados para as consultas serão os licitantes aptos a entregar propostas na fase competitiva subsequente. O DC não necessariamente exige a entrega e estudos ou projetos. A seu turno, o PMI é um procedimento auxiliar prévio à licitação e/ou à contratação propriamente dita que se esgota com a realização de estudo, investigação, levantamento ou projeto.

A legislação proposta pelo PL para os diálogos competitivos é explícita quanto à necessidade de observar a presença de inovações como potenciais soluções. O estudioso do Ipea lista três situações em que se permite o uso do DC de acordo com o art. 32 do PL:

  1. i) quando a resolução do problema pela Administração Pública exige uma solução inovadora do ponto de vista tecnológico cujas especificações não podem ser definidas antecipadamente com precisão suficiente pela administração (inciso I);
  2. ii) quando o problema for de tal natureza que exija ou recomende da administração o diálogo com o mercado para definição e identificação dos melhores meios e alternativas para resolução do problema, com destaque para aspectos como a solução técnica mais adequada, os requisitos técnicos aptos a concretizar eventual solução já previamente mapeada e a estrutura jurídica ou financeira do contrato (inciso II); e

iii) quando os modos de disputa aberto e fechado não são adequados à análise das soluções propostas pelos licitantes (inciso III).

A primeira situação está ligada ao fomento à inovação destinada a uma demanda concreta. Ela só pode ser aplicada quando nenhuma outra solução – tradicional e conhecida – exista e esteja prontamente disponível no mercado, pois as alíneas do inciso I são condicionantes cumulativas:

Art. 32. A modalidade diálogo competitivo é restrita a contratações em que a Administração:

 

I – vise a contratar objeto que envolva as seguintes condições: 

  1. a) inovação tecnológica ou técnica;
  2. b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e
  3. c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela administração (Brasil, 2020, grifo nosso).

De forma geral, a sequência lógica dos diálogos competitivos se inicia com o lançamento de um edital com os problemas e necessidades da Administração Pública, bem como os critérios objetivos de pré-seleção. Aquele que preencher os critérios deverá ser admitido e ouvido.

Durante a fase de diálogos, a Administração Pública apresenta suas necessidades de forma que estas estimulem novas combinações, adaptações e incrementos a partir de produtos e serviços já disponíveis no mercado. Com isso , as inovações podem ser ofertadas com base na demanda pública ou que a melhor solução seja encontrada. Esta fase de diálogo poderá ser mantida até que se julgue suficiente e pode acontecer em forma de funil. Ou seja, pode-se selecionar as soluções a serem discutidas ao longo do tempo até que as opções sejam limitadas àquelas que melhor atendam a Administração Pública.

É preciso explicitar que ser pré-selecionado e participar dos diálogos não garante qualquer remuneração ou compensação aos potenciais fornecedores. Nesta fase, ainda, o fornecedor precisa estar preparado para arcar com gastos de desenvolvimento de produto e/ou serviço que seja destinado a demonstrar a viabilidade de sua solução por conta própria. O diálogo competitivo fomenta a inovação garantindo que novas soluções possam surgir a partir das especificações da demanda da administração.

Finalmente, com base nas informações coletadas na fase de diálogo, a Administração Pública prepara novo edital, agora com as especificações precisas da solução. Todos os pré-selecionados que participaram da fase de diálogo podem concorrer. A seleção deve ser pautada pelos critérios estabelecidos em edital a partir do conceito de contratação mais vantajosa.

 

Prêmios para inovação 

 

Não é novidade deste PL trazer a ideia de um prêmio de inovação. Um dos cases mais antigos de prêmio de inovação no ocidente, do qual temos registro, é o do prêmio oferecido pelo Rei Felipe II, da Espanha, a quem apresentasse um método confiável para definir a latitude para que a hegemonia espanhola na era das grandes navegações se mantivesse. Os prêmios para inovação acontecem no mundo ocidental há séculos; talvez o caso mais antigo com alguma documentação seja aquele referente ao prêmio oferecido pelo Rei Felipe II (séc. XVI), da Espanha, a quem conseguisse encontrar um método confiável para definir a latitude e com isso garantir a hegemonia espanhola na era das grandes navegações. Este tipo de prêmio foi especialmente popular no século XIX e agora foi revisitado para que sirva de instrumento de fomento à inovação pelo lado da demanda. Alguns cases conhecidos de sua utilização contemporânea vem dos Estados Unidos,  como o Google Lunar X Prize e os Grand Challenges, da Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA).

Voltando a falar do contexto brasileiro, as possibilidades descritas aqui já eram previstas na Lei no  8.666/93. Contudo, há uma alteração significativa do ponto de vista de propriedade intelectual, já que o PL avança no uso do concurso como instrumento de inovação na medida em que não obriga que o vencedor transfira ou ceda para a Administração Pública contratante a titularidade dos direitos patrimoniais sobre a criação resultante de atividade de P&D.[8]

O  PL altera a estrutura de incentivos na cadeia de investimentos público-privados em inovação[9], incentivando a participação do setor privado nas contratações públicas de inovação ao autorizar que as empresas ou instituições contratadas se tornem proprietárias ou licenciadas de tecnologias desenvolvidas por elas com recursos públicos. Nesse sentido, o PL facilitará a utilização dos prêmios públicos para inovação. Se na lei anterior o vencedor do concurso tinha de ceder à Administração Pública todos os direitos relacionados ao objeto do concurso, agora não mais.

A ideia central do instrumento é a de premiar com recursos financeiros aqueles que encontrarem a melhor solução para um determinado problema de interesse do Estado. Assim, estimula-se empresas, instituições de ensino e pesquisa e mesmo inventores independentes a empregar recursos próprios já disponíveis na proposição e/ou desenvolvimento de soluções concretas a serem escalonadas em momento posterior.

É uma forma de usar uma demanda pública para promover o surgimento, sem que haja a obrigatoriedade de sua difusão ou emprego, de inovações pelo Estado. Isto porque o PL não faz nenhuma referência a permissão de aquisição de produtos e serviços em escala comercial a partir de uma seleção feita por concurso. No entanto, o próprio concurso pode financiar o primeiro protótipo ou resultado e ainda estimular sua visibilidade. Se o resultado em questão já estiver em condições de emprego em larga escala, então outro modelo de compra deve ser utilizado para que isso aconteça (talvez os diálogos competitivos ou mesmo a inexigibilidade de licitação.

 

Instrumento de compras públicas para inovação no Brasil

 

Vale, ainda, olhar com atenção o estudo “Spurring Innovation-led Growth in Latin America and the Caribbean through Public Procurement” do BID que identifica um conjunto de instrumentos de política para melhorar a compra pública da inovação, com propostas que vão desde a correção de deficiências no ambiente de negócio e adoção de recursos para cobrir custos adicionais até compras pré-comerciais com efeito de demonstração e metodologias para considerar os custos do ciclo de vida dos produtos no lugar do menor preço.

 

Mais que aventureiras, startups já atendem o governo 

 

O Brasil é atualmente o país da América Latina que possui o maior número de GovTechs, ou seja, startups que vendem para governos. Os dados são do relatório “As Startups GovTech e o Futuro do Governo no Brasil”, lançado no final de setembro pela aceleradora BrazilLab e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). 

“Para se ter uma boa solução, é preciso ter um bom problema. E o Estado brasileiro ainda é muito ineficiente, o que gera boas oportunidades” — explica Guilherme Dominguez, co-fundador e diretor do Programa de Aceleração do BrazilLAB, responsável pela elaboração do estudo.

 

Mesmo despontando frente aos pares dos países vizinhos, as startups brasileiras ainda têm muito espaço para crescer no segmento governamental. Apenas 80 das mais de 12 mil startups de todos os setores em atuação no país atualmente são GovTechs consideradas como mais relevantes. Ou seja, aquelas que vendem de maneira consistente para governos ou atuam em parcerias com o setor público de forma recorrente. O relatório ainda identifica que até 1.500 teriam potencial para atuação no mercado Business to Government (B2G) caso desejassem ofertar suas soluções tecnológicas para os governos.

O ecossistema GovTech enfrenta gargalos para se fortalecer e, entre eles, destaca-se o financiamento: não há um único fundo de investimento para apoiar a atuação de GovTechs, seja ele privado ou até mesmo público, a despeito dos investimentos recordes em startups nos últimos anos em outros segmentos. Essa baixa propensão dos investidores traz resultados concretos: 90% das startups que atuam com o setor público iniciaram sua operação com recursos próprios do sócio fundador. Soma-se a isso os valores considerados modestos dos investimentos para início da operação, já que dentre as 135 startups entrevistadas para o estudo, 38% delas começaram com uma verba de R$ 100 a R$ 200 mil.

“Somente o Governo Federal empenhou ao longo de 2018 mais de R$ 4,4 bilhões em gastos com tecnologia de informação, incluindo equipamentos e serviços. Além disso, há estimativas de que o mercado GovTech possa representar $ 1 trilhão de dólares até 2025 no mundo todo. Precisamos avançar no entendimento, entre empreendedores e também investidores, de que estamos falando de um mercado de alto potencial de retorno econômico, além do evidente impacto social dessas empresas”, disse Dominguez.

 

 

Mas, afinal, como uma startup pode fazer uma abordagem para vender para governos? Segundo Érico Vasconcelos, CEO da UniverSaúde – negócio acelerado pelo Quintessa, apesar de tudo, a abordagem é semelhante a qualquer venda. Normalmente, uma contratação acontece envolvendo a secretaria da pasta (segurança, educação, saúde) e o financeiro. Por exemplo, mesmo que se convença um secretário de educação, via PMI, em fazer uma chamada ou edital, ainda haverá uma negociação com o financeiro que nem sempre é óbvia e muitas vezes pode inviabilizar a contratação.

Outro desafio importante para quem anseia pela aproximação com governos passa pelo diálogo da lógica de startup com as bases legais que amparam o seu processo de compra. É preciso conhecer em detalhes esta legislação para que o modelo de negócio não só faça sentido aos governos como “pare de pé” para o empreendedor.

Já existe uma diversidade de outros instrumentos de fomento e subvenção para startups, não apenas os que são tratados na Lei nº  8.666/1993 e no PL nº 4.253/2020. Além das medidas federais, válidas para todo o território nacional, há outras locais e regionais, executadas em diferentes formatos, voltadas para diferentes perfis de empresas. O Distrito, em parceria com a Leme, publicou o ebook “Medidas de fomento e subvenção para startups”, material que traz um panorama sobre diversos instrumentos governamentais de fomento à inovação.

 

Entenda sobre as medidas do governo

Fonte: Distrito

 

Uma mudança de paradigma 

 

O PL aprimora muitos pontos da legislação, como demonstrado acima. Fica claro que a compra de inovação demanda competição – por procedimentos mais eficientes e inteligentes. E também fica claro que o diálogo, a pesquisa, a competição e a escolha da melhor solução não é violação ao princípio da impessoalidade, que deve nortear as condutas dos servidores públicos. A mudança de paradigma passa pela correta compreensão da nova estrutura procedimental de compra de inovação. Com isto, gestores terão um “guia” ou “manual” mais simples de se seguir; a iniciativa privada cobrará a conformidade com o procedimento e, por fim, órgãos de controle terão mais facilidade para fiscalizar o cumprimento da lei, evitando idas e vindas ao já tão atarefado Poder Judiciário – quiçá até pela previsão de arbitragem para resolução dos conflitos.

Ainda há muito a se explorar e analisar na evolução do PL nº 4.253/2020, ainda mais pensando em como ele pode atuar em sinergia com outros instrumentos de fomento à inovação. Ainda é possível relacionar outros componentes interessantes para este contexto também do ponto de vista da grande empresa, que pode se interessar pelo capital intelectual em operações de Corporate Venture Capital. Além disso, outras startups que não trabalham diretamente com o governo – como uma GovTech – também podem participar de formas mais indiretas do processo de inovação em demandas públicas, possibilitando ou facilitando o acesso a serviços e soluções de origem pública para o público geral, participando de parte da cadeia operacional do 1º setor.

A oportunidade foi lançada, mas há muito o que fazer.

 

Quer saber mais?

Entre em contato com os autores ou visite a página da área de Direito Público e Regulatório

NOTAS E REFERÊNCIAS:

https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/210209_nt_diset_80_compras_publicas.pdf

https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=37500&catid=9&Itemid=8

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/02/15/nova-lei-de-licitacoes-abre-caminho-para-concursos-de-inovacao-diz-diretor-do-ipea.ghtml

https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/compras-publicas-de-inovacao-tecnologica-para-onde-estamos-caminhando/

https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/16080/1/PRTese214143_Parcerias%20para%20o%20desenvolvimento%20produtivo%20de%20medicamentos_compl_P.pdf

https://www.profisco.ms.gov.br/compra-publica-de-inovacao-em-tres-eixos/

https://publications.iadb.org/publications/english/document/Spurring-Innovation-led-Growth-in-Latin-America-and-the-Caribbean-through-Public-Procurement.pdf

https://www.sollicita.com.br/Noticia/?p_idNoticia=15244&n=compras-p%C3%BAblicas-para-inova%C3%A7%C3%A3o:-onde-estamos-errando?#:~:text=As%20compras%20p%C3%BAblicas%2C%20processo%20pelo,potencial%20de%20incentivo%20%C3%A0%20inova%C3%A7%C3%A3o.&text=%C3%89%20o%20que%20a%20teoria,Compras%20P%C3%BAblicas%20para%20a%20Inova%C3%A7%C3%A3o%E2%80%9D.

https://extra.globo.com/economia/brasil-o-pais-com-maior-numero-de-startups-vendendo-para-governo-na-america-latina-24682880.html

https://blog.quintessa.org.br/negocios-de-impacto-e-governo/

[1] condensado na Lei nº 8.666/93

[2] Estes objetivos já estavam na matriz de compras públicas – intrinsecamente na CF, na L 8.666, lei do pregão, concessões, lei de inovação, entre outras

[3] Segundo o Decreto Federal no 9.283/18, risco tecnológico é definido como “(…) possibilidade de insucesso no desenvolvimento de solução, decorrente de processo em que o resultado é incerto em função do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide pela realização da ação” (Brasil, 2018). Disponível em: https://bit.ly/39LiNdI

[4] art. 21 da Lei no 8.987/1995

[5] Art. 80. A Administração poderá solicitar à iniciativa privada, mediante procedimento aberto de manifestação de interesse a ser iniciado com a publicação de edital de chamamento público, a propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública, na forma de regulamento (Brasil, 2020).

[6] §4ºO procedimento previsto no caput deste artigo poderá ser restrito a startups, assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas de pequeno porte, de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto, exigida, na seleção definitiva da inovação, validação prévia fundamentada em métricas objetivas, de modo a demonstrar o atendimento das necessidades da administração (Brasil, 2020, grifo nosso).

[7] O inciso XLII do art. 6º  do PL define assim o DC: (…) modalidade de licitação para contratação de obras, serviços e compras em que a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos (Brasil, 2020).

[8] No art. 111 da Lei no 8.666/1993, que se pretende substituir, cita-se a titularidade da propriedade intelectual como sendo da administração pública, dificultando a formação de parcerias entre o poder público e as empresas ou instituições inovadoras, especialmente quando a empresa ou instituição já empregou recursos financeiros e humanos no desenvolvimento de dada tecnologia

[9] § 2º do art. 92

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