No Brasil, entre 2015 e 2016, o faturamento da indústria de brinquedos cresceu, aproximadamente, 7%[1]. No mesmo período, o crescimento do setor de licenciamento foi de 5%[2], sendo as marcas mais licenciadas aquelas voltadas ao público infantil[3]. Esses são alguns exemplos de como o mercado de produtos voltados ao público infantil continuam crescendo.
Apesar da expansão desse setor, a publicidade voltada ao público infantil se mostra um tema delicado no Brasil, tendo em vista que no país há legislação e autorregulação publicitária sobre o tema[4].
Existe, inclusive, a resolução nº 163 de 13/03/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que afirma em seu art. 2º que o direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica para crianças é abusiva[5]. Sendo que publicidade abusiva é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) e, portanto, a publicidade infantil estaria proibida no país, segundo a resolução.
Além disso, as atuais dinâmicas de publicidade, como o uso de influenciadores digitais para veiculação de propaganda, apresentam novos desafios no contexto da publicidade infantil. Dessa forma, é essencial verificar se a utilização de influenciadores mirins para fins publicitários está de acordo com a legislação e autorregulação.
No presente artigo, buscaremos apresentar um breve panorama geral da legislação e autorregulação sobre a publicidade infantil no país, incluindo algumas considerações sobre a utilização de influenciadores digitais mirim em campanhas publicitárias.
/ Uma visão geral das normas aplicáveis
No presente item apresentaremos as legislações e as autorregulamentações sobre publicidade infantil.
Constituição Federal
A Constituição Federal apresenta diversos dispositivos referentes à proteção da criança, do adolescente e do jovem. Entre esses dispositivos, destacamos o art. 227:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Dessa maneira, o artigo sintetiza os direitos e salvaguardas concedidos e, também, as figuras que devem garanti-las. Para fins do presente artigo devemos nos atentar aos direitos à dignidade e ao respeito que devem ser observados pela sociedade.
Além da proteção específica do público infantil, também merece destaque na seara da publicidade a defesa do consumidor. Sua promoção[6] e proteção estão previstas na Constituição, inclusive como um princípio da ordem econômica[7].
Após apresentarmos, de maneira resumida, as disposições constitucionais sobre o assunto, observaremos as normas infralegais relacionadas ao tema.
Código de Defesa do Consumidor (CDC)
O Código de Defesa do Consumidor estabelece as normas de proteção e defesa do consumidor[8]. Para efeitos legais, consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza serviços como destinatário final[9]. Ao se aplicar o recorte temático da publicidade infantil à legislação, algumas considerações devem ser feitas acerca do artigo 37 e o seu §2º:
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
…
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
Portanto, a norma tem como abusiva a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento da criança”. Dessa forma, entende-se que não há uma vedação para toda e qualquer publicidade infantil, mas apenas aquelas que se enquadrem na definição de publicidade abusiva.
Ainda sobre publicidade abusiva, o próprio CDC em seu artigo 67, define como prática criminosa a sua promoção e criação. A pena para esse delito é detenção de três meses a um ano e multa.
Além disso, a expressão “se aproveitar da deficiência de julgamento e experiência da criança” é bastante genérica, aproximando-se mais de uma limitação do que uma proibição concreta. Também é importante pontuar que não são apresentados elementos específicos que possam caracterizar esse aproveitamento indevido, de forma que a norma carece de regulamentação legislativa específica, papel que autorregulamentação se propôs a preencher como observaremos adiante.
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
O ECA dispõe sobre a proteção integral à criança, até 12 anos incompletos, e ao adolescente, dos 12 até 18 anos[10]. Dentro da regulamentação não existem normativas específicas sobre publicidade, no entanto, são apresentadas normas que podem limitar o conteúdo publicitário para este público. Por exemplo, o dever de prevenção, que se trata da obrigação de todos de prevenir ameaças ou violações aos direitos da criança e do adolescente[11].
Ainda nessa linha, o art. 71 do estatuto apresenta mais uma importante limitação:
A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
A condição de pessoa em desenvolvimento[12], que deve ser aplicada na interpretação de todas as normas do ECA[13], confere limitações como a obrigação de apenas disponibilizar conteúdo que respeite à faixa etária por meio da classificação indicativa[14] e à vedação da inclusão de menção a produtos impróprios para crianças, como bebidas alcóolicas e armas[15]
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda)
O ECA estipula como diretriz da política de atendimento à criança e ao adolescente a criação de conselhos municipais, estaduais e nacionais[16]. Nesse contexto, por meio da Lei 8.242, de 12 de outubro de 1991, foi criado o Conanda, que possui as seguintes competências:
Art. 2º Compete ao Conanda:
I – elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);
II – zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente;
III – dar apoio aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, aos órgãos estaduais, municipais, e entidades não-governamentais para tornar efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos na Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990;
IV – avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente;
VII – acompanhar o reordenamento institucional propondo, sempre que necessário, modificações nas estruturas públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente;
VIII – apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou violação dos mesmos;
IX – acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente;
X – gerir o fundo de que trata o art. 6º da lei e fixar os critérios para sua utilização, nos termos do art. 260 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;
XI – elaborar o seu regimento interno, aprovando-o pelo voto de, no mínimo, dois terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente.[17]
Em resumo, podemos observar que o Conanda, de forma geral, deve fiscalizar, apoiar e executar a política nacional de atendimento dos direitos de criança e do adolescente, e possuí poder para editar normas gerais sobre essa mesma política.
Resolução Conanda nº 163 de 13/03/2014
A presente resolução do Conanda trata da abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica[18] à criança e ao adolescente[19].
Em resumo, a Resolução busca considerar como abusiva toda e qualquer publicidade[20] ou comunicação mercadológica direcionada à criança[21],independente do veículo ou mídia em que seja divulgada[22].
Além disso, a Resolução, em seu artigo 2º, apresenta um rol exemplificativo de quais estratégias seriam compreendidas como abusivas pelo Conselho:
I – linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;
II – trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;
III – representação de criança;
IV – pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;
V – personagens ou apresentadores infantis;
VI – desenho animado ou de animação;
VII – bonecos ou similares;
VIII – promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e
IX – promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.
Dessa maneira, segundo a Resolução nº163 do Conanda, qualquer publicidade direcionada ao público infantil seria abusiva. No entanto, o Conselho teria competência para dispor sobre normas consumeristas e penais?
Como afirmamos anteriormente, as atribuições normativas do Conanda se limitam à elaboração de normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente. Importante apontar que não há nenhuma linha de ação no artigo 87 do ECA que permita que o Conanda legisle sobre o tema.
A Constituição Federal, em seu artigo 24, inciso V, aponta que legislação envolvendo produção e consumo é de competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. Dessa forma, o Conanda, um órgão ligado ao Executivo, não teria competência para classificar uma publicidade como abusiva, tendo vista ser um reservado ao direito do consumidor.
Ainda, tendo em vista que a criação e promoção de publicidade abusiva é crime, enquadrar determinada conduta como tal seria legislar sobre matéria penal. No entanto, a competência para legislar sobre direito penal é de competência privativa da União[23]. Portanto, o Conanda não poderia legislar sobre tema.
Além dos problemas de competência, o enquadramento de toda e qualquer publicidade voltada para o público infantil como abusiva teria impactos bastante negativos em diversos setores da economia voltados para esse nicho[24].
Por fim, temos que a Resolução Conanda nº 163 13/03/2014 não é válida, pois o órgão não possui competência para regular matérias consumeristas e penais.
Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR)
O CONAR é um órgão privado formado por publicitários e outros profissionais com o objetivo de autorregulamentar a publicidade no país. O órgão possuí um Código que apresenta as normas éticas aplicadas à publicidade e propaganda[25].
O Código demonstra uma preocupação especial com a figura da criança e do adolescente no contexto publicitário, reservando, inclusive, uma seção sobre o assunto[26]. A ideia de proteção à crianças e jovens é concentrada no artigo 37:
Os esforços de pais, educadores, autoridades e da comunidade devem encontrar na publicidade fator coadjuvante na formação de cidadãos responsáveis e consumidores conscientes. Diante de tal perspectiva, nenhum anúncio dirigirá apelo imperativo de consumo diretamente à criança.
Além de normas de caráter principiológico, o Código contém também outras normas mais concretas. Por exemplo, o item 1 do artigo 37 apresenta uma série de vedações gerais e o item 2 prevê uma série de deveres que devem ser observados nos anúncios de produtos direcionados à crianças e adolescentes.
No Código também temos a vedação de vinculação da imagem de crianças e adolescente à produtos incompatíveis com a condição de pessoal em desenvolvimento, como arma de fogo, bebidas alcoólicas, cigarros, fogos de artifício, loterias e outros produtos legalmente vedados[27].
Outra importante proibição se encontra no artigo 37, 3, do Código prevendo a vedação explícita ao uso de meios indiretos – não é admitida a publicidade ou ação de merchandising indireta que contenha quaisquer elementos destinados a captar a atenção do público infantil. Isso inclui a contratação de crianças e o uso de elementos infantis.
Ainda, o artigo 37, item 4, afirma que é permitida a publicidade apenas nos intervalos comerciais – não sendo cabível a publicidade infantil ao longo da programação.
Ao final do Código são apresentados Anexos dedicados à publicidade de áreas específicas. A preocupação com a proteção de criança, como consumidor ou até figura integrante da peça publicitária, surge de maneira constante.
Portanto, a autorregulação do setor publicitário, além de estar de acordo com a legislação voltada à criança e ao adolescente, apresente diversas medidas que tornam mais concretos os limites e ditames infralegais sobre o assunto.
/ A questão dos influenciadores digitais mirins
Hoje, os influenciadores digitais são um dos veículos mais importantes para a publicidade. O caráter pessoal (e por vezes até amador) dos conteúdos criados por influenciadores digitais acaba por dar uma maior ideia de proximidade do público, de forma que a mensagem transmitida possa ter mais impactado do que aquelas transmitidas por meio de veículos mais tradicionais.
Anunciantes e publicitários já veem utilizando os influenciadores digitais como veículo de seus anúncios. Além da proximidade do emissor da mensagem com o público, outra vantagem de se utilizar influenciador digital em campanhas publicitárias se dá pelo nicho de atuação do influenciador. Por exemplo, empresas de jogos eletrônicos procuram influenciadores “gamers”, empresas de cosméticos buscam influenciadores de maquiagem, etc. Dessa maneira, a publicidade atinge de maneira mais exata o seu público alvo.
Essa nova dinâmica publicitária, no entanto, poderia ser direcionada ao público infantil sem infringir os limites legais e criados pela autorregulação apresentados?
Antes de abordamos os problemas direcionado ao público infantil, trataremos do influenciador criança e adolescente.
Ao se tratar de influenciadores mirins, temos dois direitos constitucionais aparentemente conflitantes: a liberdade de expressão[28] a proibição do exercício de qualquer atividade laboral para menores de 14 anos[29], salvo na condição de aprendiz.
O conflito é aparente, pois, além da exceção do jovem aprendiz, menores de 14 anos podem realizar trabalhos artísticos desde que condições de proteção à criança e ao adolescente sejam cumpridas, nos termos do artigo 8 da Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho[30], da qual o Brasil é signatário.
Nesse mesmo sentido, o ECA em seu artigo 149 caput e inciso II, afirma que compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará a participação de criança e adolescente em atividades artísticas. Esse entendimento é corroborado pelo Ministério Público[31].
Além das questões legais, também é preciso estar atento se os termos de uso do aplicativo utilizado pelo influenciador digital mirim permitem que usuários menores de idade o utilizem e, em caso positivo, quais condições devem ser observadas para tanto.
Portanto, quando o influenciador digital mirim protagoniza seus conteúdos de maneira espontânea, se o aplicativo utilizado permitir, não haverá qualquer problema. No entanto, caso o conteúdo se trate de uma publicidade, é preciso obter alvará para cada contrato publicitário realizado com o influenciador.
Por outro lado, outros problemas se evidenciam quando observamos a questão pela perspectiva do público infantil.
Um deles é a falta de indicação publicitária nos conteúdos postados por influenciadores digitais, ou seja, a falta de clareza se a mensagem transmitida pelo influenciador é espontânea ou se trata de uma propaganda.
A identificação publicitária é um dever previsto no CDC, de forma que o consumidor possa, de maneira fácil e imediata, identificar a propaganda[32]. A inobservância desse dever pode gerar responsabilização administrativa nos termos do artigo 51 do CDC.
O artigo 28 do Código do CONAR também afirma a necessidade de identificação publicitária. No ano de 2017, por exemplo, 11,5% dos casos julgados pelo Conselho se tratavam de identificação publicitária, sendo o 4º assunto mais debatido em seus casos[33].
Outro problema decorrente da falta da identificação publicitária quando tratamos do público infantil é a prática de publicidade indireta, expressamente vedada pelo CONAR.
Essas estratégias já são problemáticas em face do consumidor comum, mas são mais preocupantes quando se trata do público infantil[34] e a sua condição de pessoa em desenvolvimento. Elas poderiam, inclusive, ser consideradas abusivas, pois se aproveitam da falta de julgamento da criança na compreensão de que o conteúdo apresentado se trata de uma publicidade nos termos do artigo 32, inciso II, do CDC.
/ Conclusão
O presente artigo teve como objetivo apresentar, de maneira breve, as principais normas relacionadas à publicidade infantil e alguns pontos sobre a legalidade do papel da criança e do adolescente na questão da publicidade veiculada por meio de influenciadores digitais.
Dessa maneira, identificamos a dinâmica da proteção integral da criança e do adolescente respeitando suas peculiaridades de individuo em desenvolvimento na legislação e autorregulção aplicáveis. Portanto existem limites que devem ser observados na produção e promoção de conteúdo publicitário voltado para o público infantil. Além disso, também foi possível observar que a Resolução nº 163 do Conanda possuí problemas de competência, de forma que toda e qualquer publicidade voltada ao público infantil não pode ser considerada abusiva.
Ao abordamos a questão do papel da criança e adolescente no dinâmica dos influenciadores digitais, foi possível observar que há possibilidade deles atuarem, desde que estando de acordo com as normativas e possuindo alvará para promoção de publicidade. Enquanto que a publicidade promovida por qualquer influenciador digital voltada para o público infantil deve seguir os limites legais, principalmente quanto aos problemas de identificação publicitária e publicidade indireta.