Com a globalização dos negócios e o desenvolvimento da tecnologia, verifica-se o aumento do número de contratos celebrados entre empresas estrangeiras e brasileiras, sendo natural que tais empresas vislumbrem a disposição do pagamento em moeda corrente de seu país de origem, uma vez que esses contratos estão ligados a investimentos estrangeiros. Entretanto, tal pretensão não nos parece que deverá ser considerada absoluta sem uma análise jurídica.
O que determina a Legislação?
Artigos 315 e 318 do Código Civil
De acordo com o artigo 315 do Código Civil, em vigor desde 2003, as dívidas em dinheiro devem ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal. Adiante, o artigo 318 determina que “são nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial” [1].
Artigo 6° da legislação
Do mesmo modo, o artigo 6º da legislação [2] que instituiu o Real, destaca que será considerada nula de pleno direito a contratação de reajuste vinculado à variação cambial, exceto quando expressamente autorizado por lei federal e nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior.
Isso significa dizer que, a rigor, a nossa legislação estabelece que as obrigações contratuais válidas em território nacional devem ser cumpridas em moeda nacional, e nesse contexto, também não é possível utilizar a moeda estrangeira como índice de reajuste, excetuadas as hipóteses previstas em lei [3].
Artigo 2° do Decreto-Lei nº 857/69 e artigo 6° da Lei 8.880/94
Tais exceções estão dispostas no artigo 2º do Decreto-Lei nº 857/69 [4], que substituiu a legislação anterior a respeito do tema, e na parte final do artigo 6º da Lei 8.880/94, autorizando algumas hipóteses à fixação de dívidas em moeda estrangeira:
(i) contratos e títulos referentes a importação ou exportação de mercadorias;
(ii) contratos de financiamento ou de prestação de garantias relativos às operações de exportação de bens e serviços vendidos a crédito para o exterior;
(iii) contratos de compra e venda de câmbio em geral;
(iv) empréstimos e quaisquer outras obrigações cujo credor ou devedor seja pessoa residente e domiciliada no exterior, excetuados os contratos de locação de imóveis situados no território nacional;
(v) contratos que tenham por objeto a cessão, transferência, delegação, assunção ou modificação das obrigações referidas no item anterior, ainda que ambas as partes contratantes sejam pessoas residentes ou domiciliadas no país.
(vi) contratos de locação de bens móveis, após registro prévio no Banco Central do Brasil;
(vii) contratos de arrendamento mercantil celebrados entre pessoas residentes e domiciliadas no País, com base em captação de recursos provenientes do exterior.
Contexto histórico
No entanto, nem sempre foi assim. A partir da década de 30, políticas macroeconômicas buscaram estimular o uso da moeda nacional [5]. Nesse cenário, surgiu o Decreto 23.501/33 [6], que declarou nula “qualquer estipulação de pagamento em ouro, ou em determinada espécie de moeda, ou por qualquer meio tendente a recusar ou restringir, nos seus efeitos, o curso forçado do mil réis papel (…)”.
Essa imposição do princípio de consagração da moeda corrente aos contratos válidos em território nacional é uma posição bastante restritiva da jurisdição brasileira. As legislações de Portugal e Espanha [7], por exemplo, dão prioridade ao princípio de autonomia da vontade entre as partes.
Portanto, apesar da nossa atual legislação determinar a nulidade do contrato, a jurisprudência tratou de amenizar tais consequências, com fundamento no princípio da conservação dos negócios jurídicos, positivado pelo art.184 do Código Civil [8], permitindo que o contrato produza efeitos, a despeito da invalidade da cláusula, mas impedindo o pagamento em moeda estrangeira. Ou seja, determina a conversão do débito fixado em moeda estrangeira para que o pagamento ocorra em reais.
Decisões do STJ
Com efeito, em 2006, o STJ já havia decidido [9] que um contrato, mesmo sem estar previsto entre as hipóteses legais de exceção, poderia ser celebrado em moeda estrangeira, desde que o pagamento fosse realizado em reais. A decisão também havia determinado que a conversão da moeda estrangeira em moeda nacional deveria ocorrer na data do pagamento e não em data anterior.
Em orientação mais recente do STJ [10], em 2013, determinou-se que a conversão da moeda estrangeira em moeda nacional deveria ocorrer pela cotação do câmbio da data da contratação e não a data de pagamento e, ainda, atualizada de acordo com um índice oficial de correção monetária vigente no país.
A justificativa para essa decisão foi evitar “o enriquecimento ilícito do devedor, em detrimento do credor” e respeitar a determinação do Código Civil vigente, que força o curso da moeda nacional para garantir a estabilidade monetária interna e a soberania nacional. Ou seja, refutou-se a conversão da moeda estrangeira em moeda nacional considerado o câmbio do dia do pagamento, pois considerou uma forma de indexação do contrato à variação cambial do dólar, o que infringiria o disposto no artigo 318 do Código Civil.
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
As decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entre agosto de 2014 a abril de 2017 [11] não consideraram os contratos nulos por serem acordados em moeda estrangeira, desde que os pagamentos tenham sido realizados em reais. O que não significa, no entanto, que não possa haver no futuro entendimento em sentido contrário com fundamento apenas na legislação vigente.
Mas, se por um lado há um certo consenso em relação a validade dos contratos estabelecidos em moeda estrangeira desde que o pagamento seja realizado em reais, por outro é certo que há maior insegurança jurídica em relação a data do câmbio a ser adotado para conversão dos valores monetários.
Apesar do mais recente posicionamento do STJ ser favorável a adoção do câmbio na data da contratação, a maioria das decisões analisadas adota o posicionamento de 2006, favorável à conversão da moeda de acordo câmbio da data do pagamento. Há também outras decisões com posicionamento minoritário, tais como a utilização da cotação oficial da moeda estrangeira no dia imediatamente anterior ao pagamento [12].
Uma recente decisão do TJSP [13], adota a orientação mais recente do STJ, favorável à utilização do câmbio da data da contratação para que a variação do câmbio não influa na obrigação, agindo, portanto, como indexador.
Nosso breve texto não tem a pretensão de aprofundar os aspectos históricos ou de Direito Comparado, mas tão somente apontar, com bastante objetividade, qual vem sendo o tratamento oferecido pelo nosso ordenamento, no que diz respeito à previsão legal, soluções práticas e entendimento jurisprudencial.
Mas no atual contexto, e especialmente considerando a jurisprudência do STJ e do TJSP, parece-nos incontroversa a orientação sobre a possibilidade de aplicação do “princípio da equivalência da moeda nacional”, ou seja, a aceitação de contratos com valores determinados em moedas estrangeiras, desde que o pagamento seja realizado em equivalente em moeda nacional.
Não obstante, a controvérsia parece residir na data do câmbio a ser utilizada na conversão dos valores da obrigação cujo pagamento fixado em moeda estrangeira a ser cumprida em moeda nacional (data da contratação vs. data do pagamento), destacando-se que a orientação mais recente do STJ determinou a conversão do valor em moeda estrangeira pela cotação da data da contratação, e não a data do pagamento, de modo a inviabilizar que a variação do câmbio influa na obrigação.
Contratos trabalhistas em moeda estrangeira
Em relação a validade de contratos trabalhistas acordados em moeda estrangeira, cabe observar que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [14] determina que a prestação do salário deve ser paga na moeda corrente do país, ou seja, em real. Não obstante, o pagamento do salário realizado em outra moeda é considerado como não feito.
Ao contrário de outros contratos, a determinação do pagamento de salário em moeda nacional é uma tendência internacional, visto que a Convenção nº 95 [15] da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 1956 [16], contém disposição semelhante ao ordenamento brasileiro, em vigor desde 1943.
A análise da jurisprudência trabalhista se mostra mais restritiva que as demais. Uma decisão [17] de 2011, da 3ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª região (TRT/DF e TO), não contestou o pagamento de remuneração mensal em reais com base no equivalente em moeda estrangeira, desde que não houvesse redução salarial, conforme disposições da CLT e da Constituição Federal [18].
Consequentemente, no caso analisado, o empregador teve que compensar variações cambiais do dólar em desacordo com o salário registrado em reais na CTPS, ainda que no documento também constasse a informação do salário baseado em dólar.
Por outro lado, também foi possível rever pagamentos mais favoráveis à reclamada.
Para evitar variações no salário recebido mês a mês, e a consequente possibilidade de prejuízo ao empregado, recomenda-se utilizar a taxa de câmbio da data de contratação, e não da data de pagamento, para a conversão da moeda estrangeira em real. Esse foi o entendimento [19] de 2014 do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT/SP), baseado em decisão de 2005 do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Portanto, reajustes ao salário do empregado, ao longo do tempo, devem ser feito por outros fatores como aumento ou antecipações salariais, e não em razão da variação cambial de uma moeda estrangeira em relação ao real.
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