O presente texto aborda questões atinentes à inexecução contratual, a onerosidade excessiva e as excludentes de responsabilidade fundadas na força maior, tudo no contexto de crises de saúde pública como o Coronavírus.
1. Contexto Fático
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a existência de uma pandemia em razão da disseminação global do Coronavírus. Presente em todos os continentes e com mais 150 mil casos confirmado e cerca de 7 mil mortes, a pandemia já causa impactos nos mercados globais e tem resultado em reiterados questionamentos por inexecuções e desequilíbrios contratuais.
Dentro deste contexto, os questionamentos transitam na (ir)responsabilidade pela eventual inexecução decorrente dos imprevisíveis efeitos da doença, bem como sobre a possibilidade de revisão dos termos contratuais pela surpresa na mudança de todo o contexto mercadológico.
Obviamente, as linhas seguintes não esgotam o tema, tampouco tem a pretensão de abordar todas as possibilidades contratuais, mas servem de caminho às dúvidas dos contratos comerciais comuns à atividade empresarial em geral.
2. Teoria da Imprevisão e Onerosidade Excessiva: resolução ou Revisão
A teoria da imprevisão não é novidade no campo do direito, surge em decorrência dos devastadores impactos da Primeira Guerra Mundial na Europa como evolução da consagrada cláusula rebus sic stantibus, tudo com vistas a revisão dos contratos afetados pela Grande Guerra.
No direito brasileiro, encontra-se positivada nos artigos 317[1]e 478[2]do Código Civil, segundo a qual, na vigência de um contrato de execução continuada ou de duração, que seja oneroso e comutativo, ocorrendo acontecimentos posteriores à celebração do contrato, que sejam extraordinários e imprevisíveis, e que causem a excessiva onerosidade da prestação de uma das partes em benefício da outra, que, por sua vez, experimenta um enriquecimento correspondente, poderá o contratante prejudicado pleitear a resolução do contrato.
Em seguimento, o artigo 479[3]do Código Civil, estabelece que a resolução poderá ser evitada na hipótese de o contratante beneficiado oferecer a revisão do contrato, a fim de reequilibrar as prestações e manter o vínculo.
Estatui, ainda, o artigo 480 que “se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”
Mas quando se pode invocar a teoria da imprevisão e a onerosidade excessiva a justificar a resolução ou revisão contratual?
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacifico no sentido de que “a intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes das circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) e de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva), que comprometam o valor da prestação, demandando tutela jurisdicional específica, tendo em vista, em especial, o disposto nos arts. 317, 478 e 479 do CC/2002[4].
Nesse passo, constitui pressuposto da aplicação das referidas teorias, a teor dos artigos 317 e 478 do Código Civil, como se pode extrair de suas próprias denominações, a existência de um fato imprevisível em contrato de execução diferida, que imponha consequências indesejáveis e onerosas para um dos contratantes.
A aplicação da teoria da imprevisão ao contrato somente é possível se o fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação, o que pode ser facilmente invocado no atual cenário econômico. Veja-se que uma pandemia em escala global não é declarada desde 1968 com a Gripe de Hong Kong[5], o que evidentemente torna o evento atual extraordinário e completamente imprevisível à maioria esmagadora dos contratos comerciais.
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Em resumo, a aplicação da teoria da imprevisão, apesar de independer de previsão contratual, fica sujeita à caracterização de uma série de requisitos:
a. vigência de um contrato de execução diferida, oneroso e comutativo, não sendo aplicável nos contratos aleatórios[6];
b. a alteração de circunstâncias fáticas relevantes, considerando o momento da celebração do contrato e o momento do cumprimento de pelo menos uma das prestações, decorrente de evento extraordinário e imprevisível;
c. a constatação de desproporção entre a prestação e a contraprestação, ou seja, a excessiva onerosidade de uma das prestações que resulte no enriquecimento sem causa da outra parte; e
d. o nexo de causalidade entre os fatos imprevisíveis e o resultado onerosidade excessiva/enriquecimento sem causa.
A consequência da aplicação da teoria da imprevisão a um contrato é a possibilidade de sua resolução ou da revisão de seus termos, sendo que a revisão contratual como corolário do princípio da conservação dos negócios jurídicos, não somente com olhos na teoria da imprevisão, mas também na aplicação dos princípios da boa-fé, é certamente o melhor campo para manutenção da estrutura econômica das empresas.
3. Inexecução e as Excludentes de Responsabilidade
Obviamente nem sempre é possível e disponível a revisão contratual com amparo na teoria da imprevisão. Igualmente, nem sempre há movimento para se buscar a resolução contratual com base na onerosidade excessiva. Por vezes a inexecução ocorre e a judicialização por parte da parte prejudicada é realizada.
Neste caso, além da teoria adrede abordada, é possível, dentro do contexto fático da crise de saúde pública instalada, invocar uma excludente de responsabilidade pela inexecução fundada na quebra do nexo de causalidade pela presença de caso fortuito ou força maior.
Neste caso está-se diante de inadimplemento fortuito da obrigação ou involuntário, sendo que as excludentes de responsabilidade vêm expressamente previstas no artigo 393[7]do Código Civil, que estabelecem que a inexecução decorre de fato não imputável ao devedor e cujos efeitos não eram possíveis de prever, evitar ou impedir.
Se verificada a imprevisibilidade e a inevitabilidade/irresistibilidade, o devedor não responde pelos danos causados ao credor, desde que expressamente não tenha sido acordado em sentido contrário no contrato.
Uma vez que expressamente afastada pelas partes a possibilidade de invocação dos casos fortuitos e/ou força maior, a parte inadimplente será responsabilizada pela inexecução contratual, ainda que no inadimplemento involuntário. Essa é a clara dicção do artigo 393 em sua parte final: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”.
Ou seja, não há necessidade de previsão expressa do caso fortuito e/ou força maior no contrato, contudo imprescindível para sua invocação que as partes não tenham se responsabilizado pela inexecução ainda que diante do inadimplemento fortuito da obrigação.
4. Conclusão
Em tempos de crise global, ocasionada por uma série de fatores capitaneados pela pandemia de Coronavírus, é importante conhecer os caminhos para os debates contratuais duramente afetados pelo contexto fático em debate.
Entretanto, para uma recuperação saudável de toda conjuntura afetada, importante ter em mente o princípio da conservação dos negócios jurídicos, da boa-fé e da função social dos contratos, buscando sempre que possível um caminho de reequilíbrio e continuidade.
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