Seria a telemedicina uma alternativa para hospitais superlotados evitarem a transmissão exponencial do Covid-19? Que cuidados devem ser tomados?
1. Introdução
O Coronavírus é o tópico do momento. Em terras brasileiras, a situação é alarmante: até o dia 05 de abril, havia pelo menos 9.056 casos diagnosticados como Covid-19, o que levou as autoridades a decretar, de norte a sul, isolamento social para reduzir o ritmo de propagação do contágio [1]..
Pacientes já infectados, se forem a hospitais, clínicas ou consultórios, exporão outros indivíduos ao contágio. Da mesma forma, pacientes não infectados podem se expor à contaminação ao tomarem a mesma medida.
Diante desse cenário, vamos falar sobre a telemedicina [2]como possível solução para o tratamento e contenção do Coronavírus. Além de definir este conceito, abordaremos como se dá a sua regulação no Brasil e no cenário internacional.
2. Telemedicina: definições e regulações nacionais e internacionais
/ O que é a telemedicina?
As discussões sobre Telemedicina não são novidade. Nos Estados Unidos, um dos primeiros movimentos favoráveis a esta prática ocorreu em 1993, com a criação da American Telemedicine Association, que teve como objetivo expandir o acesso à saúde de uma maneira segura e eficaz [3].
Os médicos e acadêmicos John Craig e Victor Patterson definem essa prática como “rápido acesso à experiência médica, por meio de tecnologias de telecomunicação e informação, não importando onde estejam localizados o paciente ou a informação”. Para eles, a Telemedicina pode ser classificada em dois tipos, com base (I) na interação entre o paciente e o especialista médico; e (II) no tipo de informação transmitida (se é por meio de texto, áudio, e/ou vídeo).
Além disso, Craig e Patterson apontam que a Telemedicina deve ser considerada especialmente quando não há a alternativa do tratamento presencial (por exemplo, quando ocorre um acidente em um local distante, sem médicos ou ajuda médica viável no momento), ou quando a Telemedicina se prova uma alternativa mais eficaz do que a dos serviços convencionais disponíveis (por exemplo, quando é melhor ter um atendimento por Telemedicina do que ir a um hospital com condições precárias) [4].
/ Definição de Telemedicina na regulamentação internacional
A Organização Mundial da Saúde (“OMS”) também já reconheceu e definiu a prática de Telemedicina. Segundo a OMS, trata-se do “uso de informação e de tecnologias de comunicação para saúde [5]”.
Ainda em 1998, a própria OMS reconheceu a importância da Internet e seu potencial de impacto na área da saúde, através da Resolução “Cross-border advertising, promotion and sale of medical products through the Internet”.
No ano seguinte, o tema foi debatido no cenário internacional e o uso da Telemedicina especificamente foi recomendado através da Declaração de Tel Aviv sobre responsabilidades e normas éticas na utilização da Telemedicina, adotada pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial.
Em 2005, foi aprovada a primeira regulação da OMS sobre Telemedicina, durante a 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde – a Resolução WHA58.28.
/ Definição de Telemedicina na regulação brasileira
No Brasil, a Telemedicina foi definida em um primeiro momento a partir daResolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.643 de 2002, como:
“o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em saúde [6]”.
A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.643/2002, além de definir o conceito de Telemedicina conforme acima pontuado, prevê que em caso de emergência, ou quando solicitado pelo médico responsável, o médico que emitir laudo à distância poderá, sim, prestar o devido suporte diagnóstico e terapêutico. Ainda, a norma prevê os seguintes requisitos de funcionamento da Telemedicina no Brasil:
(i) Os serviços prestados através da Telemedicina devem ter infraestrutura apropriada e obedecer às normas técnicas do Conselho Federal de Medicina sobre a guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional (art. 2º, Resolução CFM nº 1.643/2002);
(ii) As pessoas jurídicas que prestarem serviços de Telemedicina devem se inscrever no Cadastro de Pessoa Jurídica do Conselho Regional de Medicina do estado onde estão situadas, com a respectiva responsabilidade técnica de um médico regularmente inscrito no Conselho e a apresentação da relação dos médicos que são componentes de seus quadros funcionais (art. 5º, Resolução CFM nº 1.643/2002);
(iii) As pessoas físicas que prestarem serviços de Telemedicina devem integrar a classemédica. Além disso, a inscrição no Conselho Regional de Telemedicina também é obrigatória (art. 5º, parágrafo único, Resolução CFM nº 1.643/2002);
(iv) O Conselho Regional de Medicina deve estabelecer constante vigilância e avaliação das técnicas de Telemedicina sobre a qualidade da atenção, relação médico-paciente e preservação do sigilo profissional (art. 6º, Resolução CFM nº 1.643/2002).
Com o passar do tempo e o avanço da tecnologia, o Conselho Federal de Medicina editou uma Resolução mais atualizada sobre Telemedicina – a Resolução CFM nº 2.227/2018. Nela, a Telemedicina era definida como “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde [7]”, e havia previsão inclusive de teleconsultas, teleinterconsultas, telediagnósticos e até mesmo telecirurgias.
Contudo, apesar de ser mais robusta do que a norma anterior do Conselho Federal de Medicina, a Resolução CFM nº 2.227/2018 foi revogada um mês após a sua edição. Portanto, no Brasil, voltaram a valer as regras de Telemedicina previstas na Resolução CFM nº 1.643/2002.
É importante observarmos que, para além da Resolução do Conselho Federal de Medicina que atualmente está em vigor, a Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”) [8] brasileira terá um papel fundamental e complementar na regulação da Telemedicina no Brasil. Apesar de a LGPD não tratar diretamente do tema de telemedicina, determina quais são os requisitos legais que autorizam o uso (p. ex. obtenção de consentimento do titular, execução de políticas públicas, etc) e compartilhamento (p. ex. prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica, etc) de dados de saúde, independentemente de o tratamento ser online ou não.
A LGPD também reforça o dever dos responsáveis pela utilização dos dados de adotarem mecanismos de segurança da informação que garantam a sua integridade (proteção contra alterações indevidas), confidencialidade e disponibilidade (permitir que a informação esteja disponível sempre que for necessária).
Informações sobre a saúde de uma pessoa estão dentro da categoria de dados sensíveis, conforme previsto pela LGPD. Nesse sentido, a utilização desses dados da saúde deve ser ainda mais regulada, exigindo precauções mais robustas, principalmente porque devido ao risco de eles serem utilizados para fins discriminatórios – o que torna os padrões para o tratamento e armazenamento destes dados ainda mais altos [9].
3. A ampliação do uso de Telemedicina como resposta ao Coronavírus
Desde que a OMS declarou que a disseminação do Coronavírus se encaixa na categoria de “pandemia” [10], em 11 de março de 2020, umas das maiores preocupações do governo brasileiro reflete-se em como enfrentar esta crise – que, a par das repercussões econômicas, é, sobretudo, um monumental desafio de saúde pública.
O cenário de sobrecarga nos hospitais públicos e privados é evidente – e a Telemedicina pode ser a solução de tratamento para casos de contágio de Coronavírus que não apresentam sintomas mais graves(que levariam o paciente, por exemplo, a uma internação na UTI de hospitais). Esse tratamento à distância estaria em linha com a recomendação da OMS, de que as pessoas devem permanecer em suas casas e, mesmo que apareçam os primeiros sintomas de Covid-19, não compareçam imediatamente aos hospitais, mas sim entrem em contato com as autoridades médicas que indicarão os procedimentos a serem adotados, a depender dos sintomas relatados [11].
Como forma de seguir esta orientação, o governo brasileiro já implementou o programa TeleSUS para monitorar à distância a saúde da população e criou o aplicativo Coronavúrus, que permite que o Ministério da Saúde envie mensagens e alertas aos celulares e tablets da população. Para além disso, o TeleSUS pode indicar quais são os procedimentos a serem adotados em casos de suspeitas de Coronavírus [12].
O próprio Conselho Federal de Medicina, reconhecendo a importância e a necessidade de tomada de medidas mais contundentes no combate ao Coronavírus, enviou Ofício ao Ministério da Saúde reconhecendo a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina em caráter de excepcionalidade e enquanto durarem as medidas de enfretamento ao coronavírus. Neste documento, recomendaram-se a teleorientação, o telemonitoramentoe a teleinterconsulta.
O Ministério da Saúde levou em consideração a recomendação do Conselho Federal de Medicina e, recentemente, emitiu a Portaria nº 467, de 20 de março de 2020, que dispõe, em caráter excepcional e temporário, sobre as ações de Telemedicina, com o objetivo de regulamentar e operacionalizar as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia com o objetivo de reduzir a propagação de Covid-19.
/ A resposta do governo para utilização de Telemedicina em tempos de Coronavírus: entenda as disposições da Portaria nº 467/2020
Segundo a Portaria do Ministério da Saúde aqui referida, ações de Telemedicina passam a envolver, como forma de combate ao Coronavírus:
“Atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico, através de tecnologia da informação e comunicação, tanto no SUS como na rede privada de saúde. Este atendimento envolve diretamente médicos e pacientes, resguardados o sigilo, segurança e integridade das informações comunicadas.”
As obrigações impostas aos médicos, para que cumpram os requisitos e pratiquem a Telemedicina, são as seguintes:
(i) Atender aos preceitos éticos de beneficência, não maleficiência, sigilo das informações e autonomia;
(ii) Observar as normas e orientações do Ministério da Saúde sobre notificação compulsória;
(iii) Registro do atendimento realizado por médico ao paciente através de prontuário clínico, que deverá conter:
a. Dados clínicos necessários para a boa condução do caso, preenchido em cada contato com o paciente;
b. Data, hora, tecnologia da informação e comunicação utilizada para o atendimento; e
c. Número do Conselho Regional Profissional e sua unidade da federação.
Vale dizer, ainda, que médicos poderão emitir atestados ou receitas médicas em meio eletrônico. Estes documentos terão validade mediante:
(i) assinatura eletrônica, por meio de certificados e chaves emitidos pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras;
(ii) atendimento dos seguintes requisitos:
a. identificação do médico;
b. associação ou anexo de dados em formato eletrônico pelo médico; e
c. ser admitida pelas partes como válida ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento.
Especificamente sobre o atestado médico, ressalta-se que ele deve conter pelo menos a identificação do médico (nome e CRM) e dos dados do paciente, bem como o registro de data, hora, e duração do atestado.
4. Conclusão
Após percorrer as principais normas sobre o tema, entende-se que a Telemedicina deixará de ser um tabu, e com o avanço da tecnologia e a proliferação de health techs, acreditamos que esta é uma alternativa viável e necessária no contexto de pandemia que enfrentamos– especialmente como forma de desafogar nosso sistema de saúde e evitar a disseminação de Covid-19.
Caso você se interesse pela intersecção do Direito com a área da Saúde, não deixe de conferir nossos outros demais artigos: (i) “as repercussões legais do vazamento de prontuários médicos e as boas práticas em tempos de Coronavírus”; e (ii)“dados de saúde e a Lei Geral de Proteção de Dados: estudo de casos”.
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Veja também:
- As repercussões legais do vazamento de prontuários médicos e as boas práticas em tempos de Coronavírus;
- Deliberações societárias a distância em tempos de Coronavírus;
- Covid-19 e os contratos com a Administração Pública.