Baptista Luz

13/12/2016 Leitura de 29’’

Os desafios regulatórios da mídia programática

13/12/2016
  • 29’’
  • / Escrito por:

    Pedro Henrique Ramos

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o setor de publicidade online tem experimentado diversas novas tecnologias, com foco em expandir o ecossistema da publicidade online e criar novas cadeias de valor entre anunciantes, agências e publishers. Entre as principais tendências desse cenário, viu-se um crescimento na mídia programática, estratégia que se utiliza de diversas plataformas de tecnologia e complexas relações contratuais com o objetivo de automatizar a entrega de publicidade para a audiência-alvo e reduzir a perda de inventário de publishers.

Com a expansão dessa estratégia, surgem novos desafios e complexidades para a análise desses novos modelos dentro da moldura regulatória da publicidade brasileira. Ainda que haja uma preocupação geral do mercado em como lidar com esses novos desafios, até agora poucos analistas preocuparam-se em apresentar uma visão mais estruturada sobre esse tema. Duas escolhas estão na mesa: de um lado, introduzir essas novas tecnologias dentro dos conceitos e institutos já sedimentados em nosso modelo regulatório brasileiro; ou compreendê-las como modelos disruptivos em relação à regulação posta, colocando-se sob o desafio de discutir novas relações, institutos e bases principiológicas para a análise desse cenário.


Direito e tecnologia – Uma relação disruptiva

No campo do Direito, é comum a preocupação sobre os conflitos sociais gerados pelas novas tecnologias e o bloqueio normativo do Direito para responder a essas novas disputas. Por exemplo, foi comum que, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o Judiciário equiparasse plataformas de intermediação de produtos (marketplaces) a vendedores de mercadorias. Da mesma forma, redes sociais como Orkut foram considerados, por muitos juízes, como plataformas de conteúdo, equiparando-os a portais de notícias e mídias tradicionais no que se refere a sua responsabilidade civil.

Esse fenômeno é descrito por acadêmicos como o momento em que as condições econômicas e do ecossistema social levam a um momento disruptivo no direito posto (law of disruption), no sentido de uma “exaustão paradigmática”, em que as categorias jurídicas não mais refletem a complexidade das instituições sociais. Essa inadequação é, na verdade, própria da natureza do Direito: leis e regulamentos trazem o retrato de um determinado conflito anterior à sua aprovação, sendo o descompasso entre a inovação tecnológica e o tempo do processo legislativo enorme. Mesmo leis que regulam a internet passam por um longo processo: as primeiras discussões sobre o Marco Civil da Internet começaram no Brasil em 2007, mas a sua aprovação só veio em 2014 – sete anos em que a internet brasileira alterou-se drasticamente, e novas questões já surgem para desafiar a interpretação de juízes e reguladores.


O MODELO REGULATÓRIO DA PUBLICIDADE BRASILEIRA

A atividade publicitária no Brasil é regulada por uma moldura normativa específica, e que pode ser dividida em quatro níveis hierárquicos:

  • Constituição Federal – lei máxima dentro do sistema jurídico brasileiro, sua influência no sistema publicitário brasileiro é basicamente principiológica, ou seja, estabelece quais são as principais diretrizes que devem orientar os negócios de publicidade no país, tais como a liberdade de expressão, a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor;
  • Leis de aplicação geral são regras aplicáveis a todas as atividades empresariais exercidas no Brasil, e que influenciam direta e indiretamente no setor de publicidade, estabelecendo regras gerais de conduta. Nessa categoria, destacam-se o Código Civil, que estabelece regras como o princípio da boa-fé e da função social dos contratos; a lei n. 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial), que traz, junto com a lei n. 12.529/11, a regulamentação da livre concorrência; e a lei n. 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais), que regula a titularidade sobre a propriedade intelectual desenvolvida por agências em favor de anunciantes;
  • Regulamentos específicos seguindo modelos consagrados em outros países (especialmente na Europa), o Brasil possui regulamentos que tratam especificamente do mercado de publicidade, estabelecendo direitos e deveres dos atores desse setor, sendo os principais diplomas nesse sentido a lei n. 4.680/65 e o Decreto 57.690/66.
  • Autorregulação o modelo brasileiro de autorregulamentação é mundialmente reconhecido como um dos mais bem-sucedidos do mundo. Por expressa autorização legal, dois órgãos são responsáveis por disciplinar as relações específicas entre os atores do mercado de publicidade: o Conselho Executivo das Normas-Padrão (CENP), responsável por regular as relações técnicas e comerciais do mercado; e o CONAR, responsável por fiscalizar e julgar o conteúdo das ações publicitárias.

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O sistema acima descrito reconhece a existência de uma série de stakeholders que integram a cadeia de valor do setor. Uma análise das regras acima expostas revela que o ordenamento brasileiro reconhece três papéis como essenciais para o mercado de publicidade: o anunciante, o veículo e a agência de propaganda.

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Além dos atores acima, a moldura regulatória brasileira faz menção ainda a pelo menos outras duas figuras: a do   agenciador autônomo, pessoa física com a função de intermediar a venda de espaço/tempo publicitário, e que que encaminha publicidade por ordem e conta do Anunciante; e o representante de veículo, pessoa jurídica ou física que possui mandato de representação para negociar, em nome de determinado veículo, junto a agências e anunciantes.


bureaus de mídia

Outra figura comum nas discussões regulatórias na publicidade são os bureaus de mídia, também conhecidos como centrais de mídia fechada, e que começaram a surgir na França (centrales d’achat d’espace) a partir dos anos 1970, expandido-se por países como EUA, México e Argentina como uma resposta a dois problemas de mercado: a dificuldade de pequenas agências de publicidade em manter departamentos de mídia próprios e a questão de financiamento de pequenos veículos.

O modelo de bureau buscava superar esses problemas através do seguinte modelo: os bureaus compravam antecipadamente espaços publicitários em diversos veículos (em “atacado”, como se convencionou chamar) e, em seguida, oferecia esses espaços a pequenas agências, cobrando um sobrepreço equivalente a seu lucro (a venda no “varejo”). Assim, o representante de veículo deixava de ser um mero corretor e passava a ser um investidor. Ocorre que esse modelo traz também consequências adversas para o mercado, na medida em que pressiona para baixo os preços de tabela pagos aos veículos e, na outra ponta, aumenta o valor cobrado das agências. Ainda, agências full service perdem força em mercados em que centrais de compra centralizam e monopolizam a negociação com veículos, criando barreiras concorrencias para a ampla expansão do mercado, o que motivou setor de publicidade no Brasil a movimentar-se de forma contrária aos bureaus de mídia desde o 1° Congresso de Publicidade, em 1957.

Essa postura do mercado traduziu-se em 1998 em uma nova versão das Normas-Padrão do CENP, em que a preocupação concorrencial ficou claramente exposta ao definir bureaus como  entidades que se propõem a “substituir determinado(s) Anunciante(s) e suas marcas na negociação e compra de espaço/tempo ou serviço, desconsiderando a Agência(s) apta(s) ao seu pleno atendimento e reconhecida(s) pelo Veículo(s) como detentora(s) da(s) conta(s)” (art. 4.4.1), restrigindo expressamente qualquer compra e venda de espaços publicitários através dessas entidades (art. 4.3). Ainda que o CENP não tenha jurisdição para proibir determinada prática de bureau no país, as Normas-Padrão prevêm sanções às agências que, de qualquer forma, transacionarem com bureaus, estando sujeitas ao descredenciamento de suas atividades.


OS MODELOS DE PUBLICIDADE ONLINE

A inovação na entrega de mídia sempre foi guiada a partir de um objetivo principal: atingir, de forma eficiente, a audiência certa.

A segmentação entre conteúdo do publisher e audiência sempre foi uma estratégia eficiente na publicidade – em jornais, por exemplo, a inserção de anúncios de acordo com o público-alvo e o tema de determinado caderno sempre foi uma premissa de eficiência. Com o surgimento da internet comercial nos anos 1990, a publicidade contextual ganhou ainda mais importância: com sites de conteúdo cada vez mais especializados, agências e anunciantes buscavam prever o público desses sites através do conteúdo divulgado.

Com a evolução da tecnologia, agências, anunciantes e publishers buscavam métodos mais eficientes de publicidade contextual. Se o conteúdo de determinada página (como um portal de notícias) muda frequentemente, ou se o usuário consegue personalizar esse conteúdo através de sua interação com o site, como automatizar o processo de inserção de publicidade, evitando que agências precisem negociar pessoalmente, espaço por espaço, com cada veículo? Esse não parecia ser um problema na mídia tradicional, com poucos players em cada área, mas certamente tratava-se de um grande desafio na publicidade online: em 1997, a web já contava com mais de 1 milhão de sites, número que chegou a 17 milhões em 2000.

Como resposta a esse desafio, surgem ferramentas de tecnologia cujo objetivo principal é automatizar os processos de identificação de conteúdo nas páginas e entregar publicidade segmentada de acordo com o conteúdo identificado. Por meio de cookies, tags, gerenciadores de base de dados e outras tecnologias, essas ferramentas não buscavam redefinir o processo de negociação de publicidade, mas tão somente automatizá-lo. Agências e anunciantes continuariam a negociar diretamente com publishers a inserção de seus anúncios; todavia, essa tarefa homérica tornava-se inviável com a expansão da rede, e ferramentas de automação de processos passaram a ser essenciais para o mercado publicitário.

Esse modelo trazia algumas falhas. Como garantir que o usuário que está lendo uma notícia sobre o Louvre é, de fato, um potencial consumidor de pacotes de viagem para Paris? Esse sempre foi um risco na publicidade tradicional: por exemplo, se 20% dos telespectadores de jogos de futebol não bebem cerveja, então a publicidade de cerveja só irá atingir 80% de seu público-alvo. Reduzir esse percentual de perda foi o desafio de uma série de empresas que desenvolveram, ao longo dos anos 2000, tecnologias de publicidade comportamental, que permitem a identificação do histórico de navegação do usuário e o processamento dessas informações em grandes bases de dados, de forma a segmentar a entrega de publicidade especificamente para aquele usuário que atende ao perfil de determinado anunciante.

Há, nesse momento, uma mudança paradigmática em relação ao valor da publicidade – e que somente seria consolidada com a mídia programática. A qualidade do espaço publicitária disponibilizado por determinado publisher para a inserção de um anúncio (ex. a capa de um site, o banner central, etc.) perde cada vez mais importância em precificação. De nada adiantava um banner central entregue a uma audiência que não fosse o target do anunciante. Assim, cada vez mais publishers, agências e anunciantes passam a utilizar ferramentas de publicidade comportamental para aumentar a eficiência de suas campanhas, levando inclusive a uma mudança importante de apuração dos valores cobrados por publishers, com a emergência de modelos de monetização por clique (CPC) ou aquisição (CPA).

Uma importante ferramenta de tecnologia de publicidade online surgida nesse período são as adnetworks. Utilizando-se grandes bases de dados, que cruzavam diferentes plataformas e permitiam uma segmentação mais eficiente de publicidade direcionada, essas empresas surgiam com a proposta de automatizar ainda mais a entrega de publicidade comportamental em um período em que o número de sites e interessados em veicular publicidade online já ultrapassava, em 2005, 64 milhões. O tamanho desse mercado trazia então um novo desafio: anunciantes queriam atingir vários sites, mas nenhuma agência era capaz de contratar dezenas de milhares de veículos ao mesmo tempo; já sites menores, que já representavam um número gigantesco de acesso e tinham condições de agregar tecnologias de publicidade comportamental em suas páginas, precisavam encontrar meios de receber publicidade de anunciantes.

As adnetworks surgiram com o objetivo de resolver esse problema. Por um lado, são empresas de tecnologia, fornecendo ferramentas para automatização de processos de entrega de publicidade de acordo com o perfil de audiência identificado. Por outro, atuam de forma similar aos representantes de veículos tradicionais: a partir do momento em que fecha-se um contrato de adesão e a tecnologia da adnetwork é instalada em um site, essas empresas possuem um mandato para negociar espaços publicitários desses sites, perante agências e anunciantes.

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Em meados de 2007, novas tecnologias começaram a ser lançadas com o objetivo de automatizar ainda mais esse processo. Mesmo com o advento das adnetworks, notava-se ainda uma dificuldade de publishers em vender seus espaços menos atrativos – usando a nomenclatura da mídia tradicional, o problema aqui era reduzir o calhau desses sites. Nesse sentido, surgem as adexchanges – tecnologias que permitem a automação do canal de vendas entre publishers, agências e anunciantes, e que podiam ser usadas inclusive pelas próprias adnetworks.

O funcionamento dessas tecnologias é similar ao que acontece em uma bolsa de valores: a plataforma permite que compradores de espaços (agências e anunciantes) conectem-se com vendedores de espaços (publishers e adnetworks) em um mercado central (a adexchange). O valor dos espaços é definido através de algoritmos automáticos, baseados em regras de oferta e demanda.

Aos poucos, essas tecnologias agregaram ainda mais ferramentas. Com o objetivo de aumentar o resultado de conversões de anúncios, essas ferramentas passaram a identificar, em tempo real, o usuário que acessava determinado publisher e, somente após essa identificação, o mecanismo de “precificação” do anúncio passava a operar, surgindo assim o conceito que hoje é conhecido como real time bidding.

A lógica ainda lembra uma bolsa de valores, mas segue estritamente o modelo de um leilão: no ambiente de uma adexchange, a tecnologia identifica a entrada de determinado usuário (ex. usuário 1234) em uma página de determinado publisher, que está conectado na adexchange. A partir daí, começa o leilão: agências e anunciantes conectados à plataforma passam a analisar as informações que possuem sobre o usuário 1234 e se esse perfil é o target de sua marca ou produto, para em seguida dar um lance, ou seja, sugerir o preço que está disposta a pagar para entregar um anúncio para o usuário 1234. Uma vez que todos os lances são dados, a adexchange processa qual o lance vencedor, cujo anúncio será entregue diretamente para o usuário 1234. a enorme capacidade de processamento de dados das adexchanges permite que essa dinâmica ocorre de forma programada e automatizada, em frações de segundo que são imperceptíveis para o usuário.

Para otimizar a tomada de decisões sobre lances em adexchanges e permitir a conectividade com essas plataformas, outras tecnologias surgiram e passaram a tornar-se praticamente obrigatórias para a eficiente operação de estratégias de mídia programática por meio de adexchanges:

  • DSP (Demand Side Platform) é a ferramenta que conecta anunciantes e agências a diversas adexchanges, permitindo automatizar o processo de entrega de publicidade e programar como deverão ser realizados cada lance, de acordo com os perfis identificados. Às ferramentas DSP pode-se agregar informações sobre audiência, com o objetivo de otimizar as decisões sobre cada lance;
  • SSP (Server Side Platforms) é a tecnologia que permite a publishers gerenciar seus espaços publicitários e Ad Servers, conectando-se à adexchanges e oferecendo ferramentas para otimizar a conexão com DSPs e entrega final de publicidade para seus usuários;
  • DMPs (Data Management Platforms) são plataformas de software que processam enormes bases de dados sobre usuários e perfis de audiência identificados por meio de cookies e outras tecnologias semelhantes. DMPs podem fornecer relatórios de inteligência diretamente para agências e anunciantes, e ta   mbém podem “alimentar” automaticamente DSPs, otimizando a tomada de decisões sobre cada lance realizado em adexchanges.

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Percebe-se aqui que o canal de vendas proporcionado por uma adexchange reforça a mudança de paradigma da compra e venda de mídia  – mas que há muito tempo é perseguida por agências, anunciantes e publishers: a base da precificação não mais é a localização e formato do espaço publicitário, mas sim o perfil da audiência que será impactada pelo anúncio.

Ainda, não há mais uma compra e venda antecipada e uma reserva de espaços  – como acontecia com os bureaus. Tecnologias de real-time bidding fornecem um canal de vendas que permite a agências, anunciantes e publishers negociarem em tempo real, por meio de ferrnamentas de software e algoritmos que permitem a tomada rápida de decisões individualizadas, de acordo com cada usuário. Em outras palavras, os papéis permanecem os mesmos, mas há agora a utilização tecnologias que permitem a automação de processos e otimização de tomada de decisões, tornando o ecossistema da publicidade digital mais complexo e multifacetado.

A REGULAÇÃO DE NOVAS TECNOLOGIAS DE PUBLICIDADE: UM MODELO DE ANÁLISE

O contexto aqui apresentado mostra que a evolução dos modelos de publicidade direcionada não mais se baseia somente em informações de cookies, mas também se utiliza de complexas relações contratuais e de grandes bases de dados de informações sobre audiência. Como colocamos, essas técnicas, em conjunto com a estratégia de real-time bidding, não devem ser vistas somente como uma sofisticação do fluxo contratual, mas sim como uma mudança importante em um dos paradigmas basilares do sistema publicitário tradicional: em vez de um sistema em que os espaços publicitários possuem um valor definido pelos publishers, agora o custo de determinado espaço é dado em razão da audiência identificada. 

Dessa forma, a evolução tecnológica da internet permitiu que o mercado publicitário finalmente conseguisse mensurar os preços transacionais a partir do ponto de valor da cadeia, que é a audiência, o receptor da mensagem publicitária. Trata-se de um momento disruptivo em relação aos modelos tradicionalmente pensados quando das regulações do setor, e que altera drasticamente a forma como as instituições que coordenam o mercado de publicidade precisam encarar os novos desafios jurídicos que surgem dessa nova configuração.

E esse novo cenário não deve ser encarado pela regulação de forma estática. Parece-nos claro que as regulações vigentes do setor de publicidade não refletem com exatidão a complexidade desse ecossistema e, ainda que os princípios e orientações gerais mantenham-se importantes como norte para regular as relações entre os atores desse mercado, surgem novos desafios que devem ser encarados com novas lentes de análise,  e que não podem basear-se unicamente no exercício de tentar encaixar novas tecnologias em conceitos legais anteriores, com o risco de tornar essa análise improdutiva (diversos conceitos jurídicos desenvolvidos décadas atrás não resolvem satisfatoriamente os problemas surgidos com novas figuras contratuais) e limitar a experimentação tecnológica em um setor tão dinâmico – travar novas atividades econômicas que podem ser positivas para o mercado pelo único motivo de não serem expressamente previstas na regulação é impedir a livre iniciativa e o desenvolvimento tecnológico, valores preservados pela Constituição Federal.

Como forma de enfrentar esse desafio, esse trabalho propõe um novo modelo de análise para resolver os conflitos jurídicos que possam surgir com a expansão e consolidação das novas tencologias de mídia programática no país. Esse modelo reconhece a importância principiológica e orientadora do arcabouço regulatório da publicidade brasileira, conforme descrito na primeira parte deste trabalho, e baseia-se em quatro pilares que devem ser valorizados na elaboração de novas regulações do setor, e que também devem servir como bússolas para o estabelecimento de relações jurídicas entre os players do mercado:

  • Transparência nas relações comerciais

No sistema regulatório brasileiro, uma das regras basilares do relacionamento entre anunciantes, agências e publishers sempre foi a de que os publishers possuem liberdade para definir o preço de seus espaços publicitários; ainda que os preços precisem estar disponíveis em tabelas públicas, é lícito aos veículos negociarem com agências e anunciantes condições diferenciadas, desde que não gerem efeitos anticoncorrencias (artigos 2.2. e 2.3. das Normas-Padrão do CENP).

Mesmo com essa garantia de liberdade de definição de preços, a forma como os preços são definidos em negociações envolvendo plataformas de adexchanges nem sempre é clara para os contratantes. Enquanto algumas empresas de tecnologia cobram fees mensais ou anuais pelo licenciamento e operação de suas tecnologias, muitas vinculam sua remuneração ao volume de transações realizadas por meio da plataforma. Esse tipo de arranjo de pagamento não é ilícito, mas precisa ser bem definido contratualmente para que agências e anunciantes possam entender claramente como funciona a formação de preços das plataformas de real-time bidding.

Ainda, é preciso atentar se o fluxo de pagamentos e de formação de preços dessas plataformas prejudica a posição das agências de publicidade. Não há qualquer restrição para que anunciantes possam comprar espaços publicitários diretamente de veículos e por meio do canal de vendas proporcionado pelas plataformas de real-time bidding – as relações diretas entre anunciantes e publishers são inclusive expressamente permitidas pelas Normas-Padrão do CENP (artigo 2.3.1). Todavia, contratações diretas sem o intermédio de agências não podem basear-se em critérios mais vantajosos do que se houvesse a presença das agências na relação (art. 2.3.a das Normas-Padrão), o que levaria a práticas anticoncorrenciais. Dessa forma, os mesmos critérios e preços praticados por publishers em plataformas adexchanges precisam ser isonômicos independente se a contratação for realizada com ou sem o intermédio das agências, respeitando o papel essencial que essas empresas possuem na cadeia de valor da publicidade.

  • Fortalecimento das relações contratuais

Um dos problemas vistos na contratação de plataformas de tecnologia de publicidade é a obscuridade de seus contratos, que muitas vezes não definem adequadamente a natureza dos serviços que são prestados, as obrigações de cada parte e os limites de responsabilidade que são alocados a cada um dos contratantes. Ainda, muitas dessas plataformas baseiam suas relações em contratos de adesão (boilerplate agreements), e que geralmente utilizam como ponto de partida os modelos praticados pela sede de sua empresa (EUA e Reino Unido, por exemplo), e que simplesmente ignoram a legislação e prática contratual brasileira.

Além da clareza e detalhamento dos termos de contratação, é importante que esses contratos definam claramente qual o papel jurídico de cada uma dessas empresas. Boa parte dessas atividades relacionam-se como o licenciamento de tecnologia, especialmente licenças de acesso (Software as a Service), e cujos principais termos são regulados pelas leis n. 9.609/98 (Lei de Software) e 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais). Nesses casos, a responsabilidade da empresa é restrita à disponibilização da plataforma e suas ferramentas, sendo que a operação da plataforma é de responsabilidade das empresas contratantes.

Todavia, há modelos em que a própria licenciante da tecnologia oferece o serviço de operação dessa plataforma, através da prestação de serviços de consultoria em tecnologia. A prestação desses serviços também pode ser alocada para outras empresas, não detentoras da tecnologia, mas com o know-how e a estrutura humana necessária para a operação dessas ferramentas.

Essa distinção não é mero preciosismo: além das diferentes responsabilidades contratuais, há também importantes reflexos na esfera tributária, bem como diferentes isenções de responsabilidade contratual de acordo com a atividade empreendida.

  • Proteção dos dados pessoais

Com a aprovação da lei n. 12.965/14 (conhecida como o Marco Civil da Internet), a legislação brasileira sinalizou, pela primeira vez, uma preocupação regulatória com a questão da proteção dos dados pessoais na internet, estabelecendo requisitos e direitos dos usuários relacionados ao tema, incluindo:

  • os usuários devem ser informados de forma clara e completa sobre a coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais;
  • é vedado o compartilhamento com terceiros de dados pessoais do usuário, salvo se houver o seu consentimento prévio, livre e expresso;
  • o consentimento sobre a coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais deve ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais;
  • os dados pessoais somente poderão ser utilizados para finalidades legais, que estejam especificadas no contrato de prestação de serviço ou nos termos de uso, e cuja coleta possa ser justificada; e
  • ao término da relação entre as partes, os dados pessoais fornecidos pelo usuário deverão ser excluídos de forma definitiva, quando solicitado por este, exceto na hipótese de guarda obrigatória prevista no Marco Civil;

A complexidade jurídica do tema de proteção de dados pessoais e a urgência constitucional imposta para aprovação do projeto do Marco Civil foram determinantes para que o detalhamento das regras acima fosse deixado para ser regulado na forma de uma regulamentação específica a ser emitida a partir de 2015. Todavia, a redação genérica proposta pelo Marco Civil trouxe uma série de inseguranças para o mercado de publicidade online como um todo. Alguns desses desafios envolvem tópicos como o conceito de dados pessoais, e se este engloba somente informações pessoalmente identificáveis (PII) ou também meras informações de acesso capturadas por cookies; qual o limite de responsabilidade de publishers na obtenção do consentimento de seus usuários a respeito da coleta de dados; e que empresas estariam obrigadas a receber e direcionar solicitações de exclusões de dados pessoais de usuários. Para resolver esses desafios, é importante que o setor de publicidade participe ativamente das consultas públicas que envolverão o regulamento, e também posicionar-se através de manuais de boas práticas e códigos de autorregulamentação.

  • Respeito à livre concorrência e repressão a abusos

Concorrência é um dos motores da ordem econômica brasileira e um dos pilares principiológicos da Constituição Federal. Em um célebre julgado no TJ-SP, o desembargador Francisco Loureiro afirmou que “a concorrência agressiva, ainda que com a finalidade de desviar clientela alheia e arrogar-se uma melhor posição no mercado, não é reprimida pelo ordenamento, sendo, aliás, inerente ao próprio funcionamento do capitalismo. A entrada no mercado de novos concorrentes e o ataque à clientela alheia são antes incentivados pela própria Constituição Federal”. (Apelação n. 0011397-27.2011.8.26.0566).

Todavia, a livre concorrência não se confunde com a concorrência desleal. O ordenamento brasileiro, especialmente através das leis 9.279/96 e 12.529/11, reprime atividades e condutas empresarias que busquem limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa. Entre as condutas que caracterizam infração à ordem econômica no Brasil, destacamos exemplificativamente:

      • acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma, preços, produção ou comerciação ou divisão de segmentos do mercado:
      • limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;
      • criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;
      • impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;
      • utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros;
      • regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;
      • impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros;
      • impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia;
      • exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca.

Esse balanço também é explícito nas Normas-Padrão do CENP. Enquanto a plena concorrência é dos princípios norteadores do CENP (art. 2.1), as Normas-Padrão também dispõem que “é vedada a contratação de propaganda em condições antieconômicas, anticoncorrenciais ou que importem concorrência desleal, podendo o CENP, diante de tais condutas, aplicar as sanções previstas no art. 63 dos seus Estatutos, bem como representar à autoridade competente, para a imposição das sanções previstas na legislação aplicável” (art. 2.9).

No caso da mídia programática, esse mesmo balanço precisa ser observado de forma cuidadosa. Por um lado, criar obstáculos para as atividades de real-time bidding no país baseadas em análises pouco fundamentadas de seus modelos de negócio podem prejudicar o avanço tecnológico do setor. Por outro, ao mesmo tempo em que esses avanços possam trazer benefícios para anunciantes, suas práticas de fato, especialmente se não houver transparência em suas relações contratuais, podem eventualmente levar a abusos de concorrência que prejudiquem o funcionamento regular do setor.

Regular esse balanço através de normas genéricas e indistintamente aplicáveis nem sempre é o melhor caminho. No Brasil (assim como na maior parte do mundo), aplica-se o chamado controle posterior e incidental para a repressão da concorrência desleal: sendo a regra a livre concorrência, condutas consideradas antieconômicas precisam passar por um critério de análise e controle a posteriori pelas instituições reguladoras do setor, evitando-se assim que interpretações rígidas e precipitadas possam impedir avanços tecnológicos no setor. Dessa forma, instituições como o CENP e o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) fortalecem-se não como como órgãos de repressão a condutas antieconômicas, mas também como entidades organizadoras do mercado, estabelecendo diretrizes e melhores práticas ao mesmo tempo em que analisam criteriosamente e caso a caso cada uma das denúncias.

O CARÁTER GLOBAL DA PUBLICIDADE ONLINE

Com a separação da antiga Iugoslávia na década de 1990, o termo balcanização passou a ser usado com frequência na teoria política para referir-se a um processo de fragmentação política de nações e Estados. Juridicamente e especialmente no contexto de regulação da internet, esse termo também tem sido utilizado para designar regulações nacionais que, devido a suas particularidades, acabam por isolar determinado país do acesso a uma tecnologia ou produto.

A China é um bom exemplo: regulações balcanizantes têm impedido que chineses acessem alguns dos sites mais acessados do ocidente, como Google e Facebook. Outro exemplo é a Rússia: a partir de 2016, dados pessoais de usuários russos deverão ser necessariamente alocados em servidores localizados na Rússia – o que deverá limitar fortemente atividades de cloud computing e de mídia programática na região.

Ainda que cada país possua suas características de mercado próprias e soberanas, a lógica das relações comercias contemporâneas é global e em rede: o valor de uma determinada tecnologia é diretamente proporcional à quantidade de mercados acessíveis. Do ponto de vista de um empresário, essa característica também se manifesta na possibilidade de determinado produto ou serviço atingir um número cada vez maior e diversificado de usuários.

Esse é um cuidado importante que reguladores e aplicadores do Direito precisam ter em mente ao regular a mídia programática no Brasil. Com o aumento global do uso dessa estratégia, mais anunciantes vão buscar aplicar essas ferramentas no Brasil, e regulações que não tenham em mente essa lógica podem gerar como consequência o rápido isolamento do mercado brasileiro, desincentivando ainda o desenvolvimento de tecnologias nacionais e que também possam fazer frente às principais ferramentas estrangeiras.

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CONCLUSÃO

Esse trabalho buscou, ao longo de suas páginas, apresentar uma ampla lente de análise sobre como as estratégias de mídia programática devem ser interpretadas por reguladores e aplicadores do Direito, o objetivo deste artigo não é, de forma alguma esgotar as discussões sobre o tema.

É essencial que o mercado de publicidade realize uma discussão crítica e aprofundada sobre esse assunto, envolvendo empresas, associações, academia e governo. Futuros trabalhos sobre o tema devem ser incentivados, e acreditamos que estudos futuros sobre essa temática devem buscar superar discussões binárias sobre a mera legalidade ou não de novas tecnologias, reconhecendo a complexidade das relações contratuais envolvidas e a diversidade de custos e benefícios envolvidos entre os diferentes atores. Transformações tecnológicas são constantes e necessárias para assegurar a inovação, e análises que hoje são tidas como imutáveis podem ser sucateados com o surgimento de novas tecnologias, sendo necessário que futuros estudos sempre tenham como referencial uma constante simbiose entre a regulação vigente, as práticas contratuais e a forma como as transações são realizadas no mercado.

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Entre em contato com os autores ou visite a página da área de Mídia & Publicidade

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