1. Introdução
Na série Transformando o Direito trazemos as principais transformações tecnológicas no contexto jurídico. Hoje, falaremos de um tema em constante expansão e que tem se consolidado no Brasil: O Direito Espacial.
O ano de 2020 foi marcado por vários acontecimentos no âmbito espacial, como por exemplo a missão Chinesa Chang’e-5, que em dezembro pousou uma nave não tripulada na Lua para coletar amostras de rochas e solos; a recente cápsula da Agência de Exploração Aeroespacial do Japão (JAXA), que retornou à Terra após ter capturado rochas de um asteroide; e o lançamento da nave “Crew Dragon Resilience”, da SpaceX, uma das empresas protagonistas da exploração espacial privada.
Quando combinados, esses acontecimentos levantam uma reflexão sobre a suficiência dos regramentos de direito espacial para lidar com desafios originados do desenvolvimento tecnológico.
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2. Direito espacial: Inovações e tendências para o futuro
Apesar da pandemia, 2020 foi um ano importante para a indústria espacial comercial. No ano passado, atingimos um marco importante: pela primeira vez na história, os humanos chegaram ao espaço através de um veículo construído e de propriedade de uma empresa privada, a SpaceX[1]. Foi o primeiro passo significativo para a construção de uma economia voltada completamente ao espaço sideral. As implicações – para os negócios, a política e a sociedade em geral – são difíceis de mensurar.
Fundada em 2002 por Elon Musk, a SpaceX tornou-se a mais famosa empresa espacial privada em 31 de maio, quando sua nave espacial, a Crew Dragon, levou dois astronautas para a Estação Espacial Internacional (ISS). Espera-se que a SpaceX comece a fazer esse tipo de viagem espacial de forma rotineira. Outro grupo de astronautas deve ser lançado ao espaço a bordo de um Crew Dragon no primeiro semestre de 2021.[2] Embora a SpaceX tenha projeções de operar inteiramente para o público privado, suas atividades atuais têm sido em resposta à demanda dos clientes do governo: NASA.
Neste ano, a Boeing planeja realizar o primeiro voo tripulado de sua espaçonave Starliner, que está sendo desenvolvida sob o mesmo programa da NASA do Crew Dragon da SpaceX.[3] E, com sua recente saída da direção da Amazon, Jeff Bezos planeja acelerar a Blue Origin, empresa voltada para o desenvolvimento de viagens espaciais.[4]
Na década de 1970, pesquisas encomendadas pela NASA[5] previram o surgimento de uma economia espacial que supriria as demandas de milhares de seres humanos vivendo no espaço, superando a economia espaço-terra (e, eventualmente, toda a economia terrestre também). A concretização de tal previsão mudaria a forma como todos nós fazemos negócios, vivemos nossas vidas e governamos nossas sociedades — mas até hoje, nunca tivemos mais de 13 pessoas no espaço ao mesmo tempo[6].
Hoje, no entanto, há razões para pensar que podemos finalmente estar chegando aos primeiros estágios de uma verdadeira economia espacial. As recentes conquistas da SpaceX (em cooperação com a NASA)[7], bem como os próximos esforços da Boeing e outras empresas privadas, marcam a abertura de um novo capítulo da economia espacial.
A perspectiva também é promissora no processo de desenvolvimento espacial do Brasil. Nesse sentido, a construção da Missão Espacial Completa Brasileira (MECB) foi muito importante para o início dos debates sobre um veículo lançador de satélites, o VLS-1. Pode-se dizer que alguns outros marcos chamaram a atenção de investidores para o país: a criação do Centro de Lançamento de Alcântara para lançamentos, assim como o desenvolvimento, pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de dois satélites para realizar a coleta de dados ambientais, e outros dois de sensoriamento remoto.
Inclusive, o Amazonia-1, primeiro satélite de observação da Terra completamente projetado, integrado, testado e operado pelo Brasil, foi colocado em órbita em fevereiro do ano de 2021. Segundo o Inpe, as informações que serão fornecidas pelo Amazonia-1 consistem em imagens ópticas que, em conjunto com outros satélites lançados, mapearão o território brasileiro a cada dois ou três dias, melhorando significativamente as informações disponibilizadas ao público[8]. Esse mapeamento, promovido pelo setor público, pode ser interessante para investidores que entendem que tais iniciativas representam valiosas fontes de dados para investimentos futuros no território. Nesses casos, questões como propriedade intelectual ganham grande importância, para compreender de quem seria a propriedade de tais informações, por exemplo.
A economia espacial
Em uma pesquisa recente conduzida pela Harvard Business Review, foi examinado como o modelo de atividade espacial dirigida pelo governo deu lugar a um novo modelo, no qual iniciativas públicas no espaço compartilham cada vez mais o palco com empresas privadas. Programas espaciais centralizados e liderados pelo governo inevitavelmente se concentrarão em atividades espaciais para a Terra que são de interesse público, como segurança nacional e desenvolvimento da ciência.
Em 2019, 95% dos US$ 366 bilhões estimados em receita obtida no setor espacial foram provenientes da economia espaço-terra[9]: ou seja, bens ou serviços que se desenvolvem no espaço, mas são voltados para a Terra, como telecomunicações e infraestrutura de internet e satélites de segurança nacional.
Em contraste, a economia espaço-espaço — ou seja, bens e serviços produzidos no espaço para uso no espaço, como a mineração da Lua ou asteroides visando a aquisição de materiais para construir bases no espaço ou fornecer depósitos de reabastecimento — tem lutado para sair do solo. Hoje, o mercado espacial está limitado ao suprimento das pessoas que já estão no espaço: ou seja, alguns poucos astronautas empregados da NASA e de outros programas governamentais.
A mineração espacial pode ser definida como “a exploração de matérias-primas de asteroides e outros planetas menores no espaço”[10]. Algumas das matérias-primas encontradas na mineração de asteroides incluem: prata, ouro, platina, ródio, níquel, alumínio, manganês, ferro e cobalto.[11] De acordo com estimativas da NASA, esta indústria poderia gerar receitas de US$ 700 quintilhões.[12] e se tornar cada vez mais valorizada, uma vez que os recursos naturais na Terra tem se tornado escassos.
Atualmente, o custo da mineração de asteroides e transporte de materiais estão dificultando essa prática. De acordo com estudos realizados pela NASA, a estimativa de custo para minerar um asteroide de 500.000kg é de aproximadamente US$ 2,6 bilhões.[13]
A oportunidade trazida pela economia espacial é enorme — mas poderia facilmente ser perdida. Para aproveitar este momento, os entes políticos devem formular regulações que permitam o desenvolvimento e a inovação necessárias para uma economia espacial que possa ser desenvolvida tanto pelo setor público quanto privado.
3. Regulação e aspectos jurídicos
Assim como em outros setores do mercado, o desenvolvimento de uma economia espacial estável depende de uma regulação apropriada. O espaço sideral é entendido como um bem comum pertencente a toda a humanidade, como o alto mar, regiões polares e a atmosfera.[14]Desta forma, o direito público internacional e os tratados internacionais são os instrumentos legais que primariamente governam as atividades espaciais.[15]Isso, é claro, requer que um Estado aja em conformidade, assinando e ratificando as convenções internacionais e observando seus regramentos.
O instrumento legal mais importante do direito espacial internacional até hoje é o Tratado do Espaço Exterior, de 1967[16], ratificado por 107 países, incluindo o Brasil. O documento traz princípios gerais como: os corpos celestes são bens de uso comum; e a impossibilidade de os Estados exercerem soberania sobre o espaço, abordando o princípio básico da não apropriação para a proteção do ambiente e impedindo qualquer potencial invasão ou pretensão de colonização.
O tratado não especifica explicitamente se a extração e o consumo de recursos naturais não renováveis, incluindo minerais e água em corpos celestes, está de acordo com suas disposições, o que deixa margem ao debate. As disposições trazidas pelos Tratados e as lacunas existentes motivaram países a criar regramentos nacionais regulamentando a atividade de mineração espacial.
Com a possibilidade de mineração espacial ficando cada vez mais concreta, a atenção voltou-se para a criação de um marco legal para a mineração de recursos no espaço sideral. O Commercial Space Launch Competitiveness Act, lançado pelos EUA em 2015, encoraja empresas privadas a minerarem recursos no Espaço.
O regramento amplia o período em que as empresas privadas podem explorar asteroides e outros planetas menores antes de reportar aos governos nacionais, e lhes dá o direito de reivindicar recursos extraídos no Espaço.
Fundamentando-se nesta legislação, em abril de 2020, o ex-presidente Donald Trump promoveu uma Ordem Executiva, trazendo o seguinte:
Os americanos devem ter o direito de se envolver em exploração comercial, recuperação e uso de recursos no espaço sideral constante na legislação atual. O espaço sideral é um domínio legal e fisicamente único da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum.[17]
O recente compromisso[18] da NASA e do Departamentos de Comércio e Estado dos EUA é um bom sinal de que o governo está em um caminho de colaboração contínua com a indústria. O acordo objetiva “criar um ambiente regulatório em órbita terrestre que permita que as atividades comerciais americanas prosperem”. [19]
Em 2016, Luxemburgo lançou o programa SpaceResources, baseando-se no precedente legal estabelecido pelos EUA no ano anterior. O projeto reúne uma série de organizações públicas e privadas para auxiliar na exploração espacial, incluindo o Governo de Luxemburgo e o Ministério da Economia do estado, ao lado de empresas privadas como a American Planetry Resources, Inc., e a japonesa ispace Inc.
Quanto a experiência brasileira, tem-se que a Agência Espacial Brasileira (AEB) é a autoridade civil brasileira responsável pelo programa espacial do país. Ela opera na base de Alcântara, possuindo um ponto de lançamento de foguetes. A agência deu ao país um papel de destaque na política espacial da América do Sul, e fez do Brasil um parceiro de cooperação na Estação Espacial Internacional.[20]
A AEB pretende iniciar, a partir de 2021, projetos associados à exploração da Lua, que servirão para inspirar e promover a participação brasileira no desenvolvimento de uma espaçonave lunar internacional. As iniciativas integrarão missões internacionais, como o Programa Artemis, e servirão para aprimorar as habilidades brasileiras no setor espacial, além do desenvolvimento de um programa de educação espacial voltado para diferentes níveis escolares no Brasil.[21]
No entanto, o Brasil ainda carece de uma legislação específica espacial. Apesar da falta de estatuto geral, o país conta com alguns regramentos, como a Lei nº 8.854, de 10 de fevereiro de 1994, que institui a AEB; o Decreto nº 1.332, de 8 de dezembro de 1994, que estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (PNDAE), e o Decreto nº 1.953, de 10 de julho de 1996, que cria o Sistema Nacional de Desenvolvimento das Atividades Espaciais (SINDAE). É importante salientar que o PNAE não foi instituído por um instrumento jurídico, tendo apenas sido publicado.
Desta forma, mostra-se necessária uma legislação brasileira espacial específica, a fim de fomentar a construção de um ambiente operacional previsível, juridicamente seguro e moderno, promovendo a concorrência e o crescimento sólido e sustentável da indústria espacial do Brasil.
Apesar dos recentes regramentos nacionais, ainda há um longo caminho a percorrer. A crescente economia espacial possui um grande potencial de geração de riquezas — mas é importante que os governos mundiais criem regramentos que facilitem o investimento no setor, e permitam um desenvolvimento consciente de atividades econômicas no Espaço.
4. Conclusão
Visões de uma economia espacial existem desde o início da Era Espacial, na década de 1960. Até agora, essas esperanças não foram atendidas em grande parte — mas tudo indica que o setor está se desenvolvendo como nunca. Pela primeira vez na história, o capital do setor privado, a tolerância ao risco e o incentivo ao lucro estão sendo canalizados para explorar recursos espaciais e enviar pessoas para o Espaço.
Se aproveitarmos essa oportunidade, poderemos de fato iniciar o desenvolvimento de marcos regulatórios para viabilizar uma sociedade no espaço, para o espaço.