/ Introdução
Produtos e serviços inovadores buscam solucionar determinadas demandas da sociedade de forma bastante satisfatória. Por outro lado, muitos empreendedores decidem tomar riscos conscientes em relação à fatores paralelos que sustentam um modelo de negócio tradicional.
Quando a plataforma Uber foi criada, seu objeto era mediar o contato motoristas de alto padrão e prováveis clientes. Inicialmente, buscava-se estabelecer uma espécie de “carona remunerada” que apresentaria vantagens econômicas para ambas as partes e auxiliaria na diminuição de congestionamento nos grandes centros urbanos.
Uma das principais polêmicas jurídicas envolvendo essas plataformas é de ordem trabalhista. O Direito do Trabalho, tal qual como o conhecemos, surgiu para regular a rotina de trabalho abusivo demandado pela Revolução Industrial, no século XVIII, e sofreu grande influência de movimentos socialistas.
A partir daí, principalmente nos países mais desenvolvidos, grande parte da população economicamente ativa se inseriu em relações trabalhistas. Nessa “nova” realidade, o trabalhador tem menos liberdade para gerir sua rotina e a condução de seu trabalho, mas por outro lado, o direito lhe garante algumas garantias perante o empregador que se diferenciam de acordo com as normas vigentes em cada país.
Uma análise interessante pode ser realizada observando, na Idade Média a figura do jornaleiro, que era quem realizava as atividades extras das oficinas, eram demandados quando havia oferta de trabalho maior que a habitual e ganhavam a partir do que produziam. É esse o tipo de trabalho que agora é oferecido grande escala por startups notórias e bastante disruptivas. Importante destacar também que as condições de trabalho da maior parte da população dos países emergentes ou em desenvolvimento, como o Brasil, seguiram nesses parâmetros com os conhecidos “bicos”, de onde se originou a chamada “Gig Economy”.
Porém, no período pré-revolução industrial as pessoas viviam predominantemente no campo, em uma realidade bem menos complexa que a enfrentada pela sociedade contemporânea, que ainda enfrenta uma crise econômica global com altos índices de desemprego ou subempregos.
Nessa perspectiva, plataformas como Uber propiciam a renda principal de muitas pessoas com tempo para se dedicarem integralmente ao serviço de transporte de pessoas. Logo, há alguns anos, e especialmente em 2016, a Uber tem sido frequentemente questionada sobre o tratamento e remuneração dispensados aos seus motoristas.
Não obstante, já existem decisões da justiça nacional e internacional favoráveis ao reconhecimento de vínculo empregatício entre a Uber e seus motoristas. A empresa defende que seu serviço é distinto dos tradicionais, embora sirva para o mesmo fim, o que não tem resolvido a questão.
/ Processos
Estados Unidos
Os primeiros processos envolvendo a Uber e seus motoristas aconteceram nos Estados Unidos. Em maio de 2015, o estado da Flórida decidiu que o motorista Darrin McGrill e o Uber mantinham uma relação de subordinação durante os 7 meses que ele operou na plataforma, tendo ele, portanto, direito à benefícios oferecidos à desempregados, depois que deixou a plataforma.
Após a Uber apelar sobre a decisão, ela foi alterada a favor da empresa em outubro do mesmo ano[1]. No entanto, a partir dessa primeira decisão, vários processos de motoristas contra a Uber começaram a surgir nos Estados Unidos. Em setembro de 2015, um juiz da Califórnia autorizou que motoristas entrassem em conjunto contra a Uber, em um processo de negociação[2] de forma favorável a empresa, que fez algumas concessões aos motoristas. No entanto, em agosto esse acordo foi rejeitado pelo juiz, que o julgou injusto[3].
Reino Unido
Em uma decisão de grandes repercussões, no final de outubro de 2016, o tribunal trabalhista de Londres decidiu que os motoristas da Uber são empregados da companhia. Analisando o funcionamento da empresa, o tribunal chegou à conclusão que a principal função da empresa é transportar pessoas e não apenas gerir uma plataforma online, e que essa justificativa foi vista como uma tentativa da empresa de escapar de encargos trabalhistas impostos a empresas tradicionais de transporte privado.
Vários detalhes do modo de operação da empresa foram apresentados para demostrar que a Uber, embora não estabeleça relações trabalhistas, escolhe (por meio de processos de recrutamento e seleção tradicionais) quais motoristas irão participar da plataforma e o modo como eles irão realizar seu trabalho, quando por exemplo:
- não compartilha com o motorista qualquer informação pessoal do passageiro;
- pune motoristas que deixem de aceitar viagens quando conectados à plataforma ou que recebem notas inadequadas de passageiros, detendo para si as queixas realizadas aos motoristas;
- orienta a rota padrão do motorista e modo como ele deve tratar seus passageiros;
- não permite que o motorista negocie um valor maior, pela viagem, que o determinado pela empresa;
- altera de maneira unilateral os termos contratuais da empresa com seus motoristas;
Desse modo, seria possível dizer que o motorista é totalmente dependente da plataforma para conseguir passageiros, vislumbrando-se aí um típico vínculo trabalhista.
Brasil
No país, questões trabalhistas contra a Uber começaram a serem levadas à Justiça do Trabalho em 2016[4], tanto por parte dos motoristas quanto por iniciativas do próprio Ministério Público.
Os motoristas começaram a se mobilizar em São Paulo e Minas Gerais solicitando reconhecimento de vínculo trabalhista anotado na carteira de trabalho, o que lhes dariam todos os direitos trabalhistas de praxe, como férias, décimo terceiro e seguro-desemprego em caso de desligamento da plataforma. Já os promotores públicos abriram inquéritos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
Devido aos desafios impostos ao Direito do Trabalho na análise dessas questões, o Ministério Público do Trabalho[5] estabeleceu, em 2016, um grupo que irá estudar se a Uber e seus motoristas têm vínculos trabalhistas.
No início de 2017, duas decisões judiciais relativas à solicitação de vínculo empregatício entre a Uber e dois motoristas outrora vinculados à plataforma, ocorreram em Belo Horizonte, Minas Gerais.
A primeira decisão[6], do dia 30 de janeiro, foi da 37ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. Nesse caso, não houve reconhecimento de vínculo empregatício entre a Uber e o motorista afastado da plataforma em novembro de 2016.
No entanto, a decisão[7] da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, do dia 13 de fevereiro, reconheceu o vínculo empregatício entre a Uber e um motorista afastado deste dezembro de 2015. Nessa sentença, o juiz se espelhou bastante na decisão do tribunal trabalhista de Londres.
/ Requisitos formais de vínculo empregatício no Brasil
Para analisar a incidência ou não de vínculo empregatício entre a Uber e os respectivos motoristas, os juízes de ambas as decisões observaram os requisitos formais estabelecidos para uma relação de emprego nos parâmetros da CLT, em seu artigo 3º: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Conforme se lê na decisão do dia 30 de janeiro, “Apenas o somatório de todos esses pressupostos tem por consequência a caracterização do vínculo de emprego (pág. 6). ”
Pressuposto de Pessoalidade
Para a caracterização inicial do vínculo de emprego, é necessário que a prestação do serviço seja realizada pela pessoa empregada, sem sua substituição por outra pessoa.
Conforme analisado pela segunda decisão, essa característica está presente nos motoristas cadastrados na Uber, sendo uma condição requerida pela própria empresa. O usuário, sem dúvida, não escolhe o motorista que irá lhe atender, mas esse fator não é relevante em um possível vínculo empregatício entre a Uber e seus motoristas.
Pressuposto de Exclusividade
Embora quando conectados à plataforma os motoristas precisam estar disponíveis para atender exclusivamente passageiros da Uber, a exclusividade do motorista não é um requisito determinante para o estabelecimento de um vínculo empregatício. Mas, como bem explicitado na primeira decisão brasileira, isso pode reforçar a ausência ou presença de subordinação jurídica.
O trabalhador empregado pode ter mais de um vínculo de emprego simultaneamente a outro, contanto que os horários entre eles não conflitem. Logo, os motoristas podem fazer uso de diferentes plataformas concorrentes do Uber, como Cabify, WiillGo, Fleety, 99 e Easy Taxi, em diferentes horários, sem que isso afaste o estabelecimento de vínculo trabalhista.
Pressuposto de Habitualidade
Como já mencionado, há uma crescente desaceleração da economia mundial, que também impacta o Brasil gerando uma de suas piores crises. A Uber facilitou o exercício da atividade remunerada de motorista, que muitas pessoas têm disponibilidade para exercer em período integral.
A habitualidade é um fator importante para a caracterização de vínculo trabalhista e está presente na relação entre a Uber e muitos seus motoristas. Entretanto, essa não é a regra para a utilização da plataforma e vários dos motoristas exercem essa atividade apenas eventualmente.
Pressuposto de Onerosidade
A Uber que é a responsável por remunerar seus motoristas, definindo inclusive as variáveis para o estabelecimento do preço final da corrida. Também é a empresa que decide a porcentagem do valor da viagem que irá reter ou repassar ao motorista.
Logo, não se pode afastar o pressuposto da onerosidade, presente entre a Uber e seus motoristas, conforme exposto na decisão da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte.
Pressuposto de Subordinação jurídica
A subordinação jurídica é requisito essencial para o estabelecimento do vínculo empregatício no ordenamento jurídico brasileiro, sem o qual não é possível estabelecer a relação de emprego. Nesse ponto há unanimidade tanto na jurisprudência quanto na doutrina. Foi justamente nesse pressuposto tão essencial que as decisões do início de 2017 divergiram.
Conforme destacado na decisão do dia 13 de fevereiro, o conceito de subordinação jurídica não é tão simples de ser entendido, sendo um “critério natural e historicamente elástico que com o passar do tempo precisou se expandir para se adaptar às mudanças ocorridas no mercado de trabalho (pág. 21) ”.
No entanto, após afirmar que a subordinação jurídica é um conceito historicamente elástico, o próprio juiz ressalta que levou em consideração a matriz clássica desse pressuposto, que avalia a “intensidade de ordens” da Uber para com o motorista.
Não obstante, a decisão do dia 30 de janeiro lembra que “Não se confunde com a subordinação jurídica a mera existência de obrigações contratuais – o que é comum em todo tipo de contrato (pág. 6). ”
Nas palavras do ilustre Maurício Godinho, que foi também citado em ambas as decisões, o conceito de subordinação jurídica é o seguinte[8] :
“A subordinação, como se sabe, é aferida a partir de um critério objetivo, avaliando-se sua presença na atividade exercida, no modo de concretização do trabalho pactuado. Ela ocorre quando o poder de direção empresarial exerce-se com respeito à atividade desempenhada pelo trabalhador, no modus faciendi da prestação de trabalho. A intensidade de ordens no tocante à prestação de serviços é que tenderá a determinar, no caso concreto, qual sujeito da relação jurídica detém a direção da prestação dos serviços: sendo o próprio profissional, desponta como autônomo o vínculo concretizado; sendo o tomador de serviços, surge como subordinado o referido vínculo”.
Como é possível auferir, a ausência ou presença de subordinação jurídica se avalia no modo como à prestação de serviços é realizada, se com autonomia suficiente ou se submetido às ordens e controle por parte do empregador para qual uma pessoa presta determinado serviço, dentre as possibilidades de controle por parte do empregador podemos citar: controle de horário de trabalho; controle da produtividade; fiscalização de método de trabalho e da própria rotina do empregado.
Os motoristas que utilizam as plataformas Uber têm autonomia para trabalharem como e quando quiserem. Por exemplo: se algum dia, ou em determinado horário, eles optam por não prestar esse serviço, basta não se conectar a plataforma; não é necessário dar nenhuma justificativa pela ausência à Uber. Essa flexibilidade é confirmada nos testemunhos pessoais dos reclamantes de ambos os processos.
Embora muitos motoristas desse tipo de plataforma encarem essa função como sua principal, a Uber não exige o comprometimento dessas pessoas, desse modo as enxerga como parceiras.
/ Conclusão
É possível auferir do relacionamento entre a Uber e os motoristas que operam nessa plataforma algumas características que propiciariam a caracterização do vínculo trabalhista entre eles, como: a pessoalidade; a habitualidade (em alguns casos) e a onerosidade.
No entanto, falta a essa relação o elemento essencial de subordinação jurídica, sem o qual não é possível estabelecer vínculo empregatício entre a Uber e seus motoristas.
Atualmente, a atividade de motorista da Uber é vista como exercício profissional. Muitos motoristas realizam investimentos consideráveis para ingressar na plataforma. Infelizmente, essa situação é resultado das altas taxas de desemprego da população brasileira. A Uber se apresenta como uma opção viável de sustento, principalmente em épocas de crise. Um cenário que exige maior flexibilização do Direito Trabalhista diante dos novos paradigmas apresentados pelas tecnologias disruptivas.