Os investimentos em startups são caracterizados por um alto grau de risco financeiro, que é assumido pelos investidores com o objetivo de obterem um retorno financeiro satisfatório em longo prazo. Os investidores reconhecem que as startups podem enfrentar desafios e obstáculos imprevistos que possam afetar seus desempenhos, e que os investimentos realizados não estão garantidos contra tais riscos, de modo que, ao mesmo tempo em que há possibilidade de obter grandes lucros, também existe a possibilidade de perda parcial ou total dos valores investidos.
Nesse contexto, a indústria do venture capital no Brasil se desenvolveu com a realização de investimentos por meio da utilização majoritária de instrumentos de mútuo conversível, nos quais os investidores (mutuantes) poderão optar em converter seus investimentos em participação societária, ou não. A lógica inerente aos investimentos é a de que (i) enquanto não há uma maior maturidade da startup para a definição de valuation fixo ou de estruturação de um governança corporativa mais substancial, os investidores não se tornam sócios, e se eximem de maiores riscos ou responsabilidades; e (ii) havendo a evolução e desenvolvimento da startup, a conversão em participação societária se torna interessante por viabilizar uma maior ingerência dos investidores, ao mesmo tempo em que possibilita sua posterior retirada da sociedade com múltiplos do valor anteriormente investido.
O maior problema inerente a esse sistema é que os mútuos conversíveis possuem natureza de dívida, de modo que, caso não haja a conversão em participação societária, os investidores deverão receber o pagamento do valor do mútuo, com as correções aplicáveis nos termos contratualmente previstos. Caso contrário, o valor não adimplido será considerado como perdão de dívida e deverá ser contabilizado pela startup como receita não operacional, levando à possibilidade de tributação no âmbito do imposto de renda e a discussões aprofundadas sobre a inclusão, ou não, desses valores na base de cálculo em caso regime de tributação do Simples Nacional.
Contudo, justamente em razão da ciência dos investidores quanto aos riscos inerentes à atividade, a lógica fundamental no âmbito dos investimentos em venture capital não comporta a devolução dos recursos investidos em caso de insucesso da startup. Desse modo, as questões contábeis e tributárias relacionadas aos mútuos conversíveis em startups sempre ensejaram elevada insegurança jurídica, que nem sempre é suplantada pelas minuciosas previsões contratuais.
De modo a evitar tais questões, em outros ecossistemas mais maduros já existem modalidades contratuais que permitem que os investidores aportem recursos em startups e que tais recursos sejam conversíveis em participação societária, sem que seja caracterizada a natureza de dívida. É o caso do Simple Agreement for Future Equity (“SAFE”), desenvolvido pela aceleradora Y Combinator e utilizado há anos pelos investidores nos EUA.
Buscando trazer ao Brasil um modelo contratual nesse sentido, o Senado Federal aprovou, no dia 10/04/2024, o Projeto de Lei Complementar nº 252/2023, que visa a alterar o Marco Legal das Startups (Lei Complementar nº 182/2021) (“PLP”) e criar uma nova estrutura de contrato de investimento para as startups, o Contrato de Investimento Conversível em Capital Social (“CICC”).
Como bem ressaltado pelo parecer do Plenário do Senado Federal, o objetivo do CICC é “criar um mecanismo de aporte de capital de risco em startups que evite a caracterização do valor investido como dívida da empresa startup ou participação social do investidor, bem como esclarecer o tratamento tributário da operação”. Nesse sentido, em sua versão inicial, o PLP previa que tanto (i) a extinção do CICC, seja por dissolução da startup, conversão em participação societária ou outras hipóteses contratuais, quanto (ii) os ajustes de atualização do saldo do investimento, não deveriam produzir efeitos tributários para os investidores ou para a startup.
Após sugestões de representantes do Ministério da Fazenda, com intuito de melhor esclarecer o tratamento tributário e contábil, o Senado Federal sugeriu a supressão de tais previsões e a inclusão de previsões expressas no sentido de que: (i) os recursos transferidos para a startup são um custo de aquisição do investidor, para a posterior subscrição de ações ou quotas de emissão da startup, mediante a ocorrência de eventos predeterminados no contrato; e (ii) a natureza do instrumento é patrimonial, não representando um passivo para a startup, nem um crédito para o investidor.
Aprofundando o tema de acréscimo patrimonial e eventual incidência de imposto de renda, acrescentou-se, ainda, que o CICC não terá seu valor atualizado e não renderá juros ou outra forma de remuneração ao seu titular, de forma que a apuração sobre eventual ganho de capital do investidor, e consequente incidência de imposto de renda, ocorrerá apenas quando o investidor alienar (i) o CICC em si; ou (ii) as ações ou quotas detidas por ele na startup. Portanto, sob essa redação, eventual ganho do investidor na conversão do CICC, resultante da diferença entre o valor da participação societária obtida e o valor inicialmente investido, é meramente contábil, e não seria tributado nesse momento.
A versão inicial do PLP também não sugeria alterações no art. 8º, I, do Marco Legal das Startups, cuja redação determina que o investidor “não será considerado sócio ou acionista nem possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa, conforme pactuação contratual”. Em suas sugestões de ajuste, o Senado Federal propôs alteração para que a frase final do referido dispositivo seja substituída para “sem prejuízo da atribuição de outros direitos ao investidor, conforme pactuação contratual”.
Sob essa redação, é conferida maior segurança para a concessão contratual de direitos econômicos e políticos sobre a startup ao investidor. Contudo, a manutenção da redação que menciona que o investidor não “possuirá direito a gerência ou a voto na administração da empresa” continua a gerar dúvidas quanto à possibilidade de inclusão contratual de prerrogativas usuais ao investidor, relacionadas aos órgãos da sociedade investida (ex: nomeação de membros do Conselho de Administração) ou à tomada de decisões (ex: direito de veto referente a novas rodadas investimentos em determinadas condições), uma vez que não é possível firmar um entendimento seguro sobre o que efetivamente se caracterizaria como “gerência na administração” ou “voto na administração”.
A manutenção do referido trecho do art. 8º, I, também enseja a persistência de outra questão, relacionada aos investimentos realizados pelos Fundos de Investimento em Participação Societária, uma vez que o art. 5º, §1º, do Anexo IV, da Resolução CVM nº 175/2022 determina expressamente que tais Fundos deverão obter “efetiva influência” sobre as sociedades nas quais realizarem investimentos. Desse modo, mantém-se o questionamento quanto aos limites sob os quais seria garantida tal influência, sem que se caracterize “gerência na administração” ou “voto na administração”, sob pena de o investimento realizado não ser considerado como CICC e, portanto, não ter o tratamento tributário nele previsto.
Não obstante os referidos apontamentos, são incontestes os avanços que seriam obtidos através da adoção de um modelo mais aderente ao sistema de investimentos em venture capital, por meio de uma maior segurança jurídica e consequente maior atratividade a tais investimentos em território nacional.
O PLP, nas próximas semanas, deverá ser analisado pela Câmara dos Deputados.