O esporte eletrônico, mais conhecido como e-sport, é definido pelo dicionário Oxford como uma competição multiplayer de jogos eletrônicos assistida por expectadores, normalmente praticada por jogadores profissionais[1]. Outra definição apresentada pelo dicionário Cambridge é a atividade de jogar jogos eletrônicos contra outros jogadores online, geralmente, por um prêmio em dinheiro, assistido por meio da internet e, por vezes, em eventos organizados[2]. No entanto, essas definições parecem simplificar em demasia o complexo cenário dos e-sports.
De fato, estes giram em torno de competições de diferentes jogos eletrônicos envolvendo premiações e audiência; contudo, o seu desenvolvimento vem se tornando tão complexo quanto outros setores desportivos tradicionais. Os Jogos Asiáticos de 2018, por exemplo, sediaram competições de 6 modalidades[3] de demonstração de e-sports. Além disso, o comitê responsável pelo evento sinalizou a possibilidade de tornar oficiais essas modalidades no ano de 2022[4]. Ainda sobre o crescimento do setor, no ano de 2016 a audiência mundial de e-sports foi estimada em 160 milhões e em 2018 a estimativa é de 215 milhões de expectadores[5].
A aproximação dos esportes eletrônicos às modalidades tradicionais não está apenas ligada ao reconhecimento legislativo, mas também à importância que exercem na prática. Pensando apenas no mercado norte americano (que comparativamente ao asiático ainda é bem menor) vemos que em termos de audiência e em valor de prêmios os e-sports tem se destacado mesmo que ainda fiquem atrás no que se refere a retornos financeiros. Falando em números, apesar dos campeonatos de esportes tradicionais terem prêmios muito altos, como Wimbledon (em 2018, US$ 43 milhões) ou U.S. Open Golf (em 2018, US$ 12 milhões) os jogos eletrônicos vêm alcançando patamares semelhantes como o International DOTA 2 Championship cujo prêmio foi de US$ 25,5 milhões em 2018 e o LoL Championship de 2017 com prêmio de US$ 4,5 milhões. No mesmo sentido, enquanto o Campeonato de Wimbeldon de 2018 teve uma audiência de 9,44 milhões, o LoL Championship de 2017 teve 106,2 milhões de expectadores.[6]
Apesar da crescente importância, o e-sport não parece ser uma matéria estudada pelo direito nacional[7]. Dessa maneira, o presente artigo pretende apresentar esse novo e crescente cenário desportivo e indicar alguns desafios jurídicos enfrentados pelo ecossistema.
E-sport como esporte
Muitos questionam se os e-sports poderiam ser considerados como práticas esportivas[8]. O Comitê Olímpico Internacional (“COI”) vem discutindo o tema[9], mas qual seria a importância de classificar essa prática como desportiva?
Considerar o e-sport um esporte não se trata de mero um capricho. Essa categorização da atividade permite enquadra-la na regulação desportiva, conferindo maior segurança jurídica à atividade dos times, dos atletas, das transmissoras, etc. Nos Estados Unidos, por exemplo, o reconhecimento de praticantes de e-sports como atletas profissionais permitiu a emissão de um tipo especial de visto para jogadores estrangeiros[10]. Por esta razão, buscar maior segurança jurídica para o setor permite que ele se torne mais atrativo, abrindo possibilidade para investimento ou para parcerias comerciais, ou seja, geração de recursos e crescimento do setor.
Em âmbito nacional, a Constituição Federal apresenta alguns dispositivos gerais sobre o desporto[11], sendo a Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, popularmente conhecida como Lei Pelé, a regulamentação específica sobre a matéria. O artigo 3° da lei apresenta as formas de reconhecimento do desporto por 4 manifestações:
“I – desporto educacional, praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer;
II – desporto de participação, de modo voluntário, compreendendo as modalidades desportivas praticadas com a finalidade de contribuir para a integração dos praticantes na plenitude da vida social, na promoção da saúde e educação e na preservação do meio ambiente;
III – desporto de rendimento, praticado segundo normas gerais desta Lei e regras de prática desportiva, nacionais e internacionais, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações.
IV – desporto de formação, caracterizado pelo fomento e aquisição inicial dos conhecimentos desportivos que garantam competência técnica na intervenção desportiva, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva em termos recreativos, competitivos ou de alta competição.”
Ao pensarmos que o cenário de e-sport envolve várias entidades privadas que organizam times de diferentes modalidades para competir nacional e internacionalmente, a classificação desporto de rendimento se mostra mais próxima da prática.
Dessa forma, a legislação brasileira não parece ser um obstáculo para o reconhecimento do e-sport como uma prática desportiva em território nacional. Inclusive o Ministério do Esporte certificou a Confederação Brasileira de Desportos Eletrônicos (“CBDEL”)[12] como entidade conveniada, podendo obter vantagens como a celebração de contrato de desempenho com o Ministério do Esporte[13]
Apesar dessa legitimação já existente, alguns projetos de lei[14] (“PL”) foram propostos com o objetivo de regulamentar a matéria e reafirmar o reconhecimento do e-sport como prática desportiva.
Atores envolvidos e as suas relações
A Lei Pelé institui o Sistema Nacional do Desporto, que tem a finalidade de promover e aprimorar as práticas desportivas de rendimento, congregando as pessoas físicas e jurídicas de direito privado – com ou sem fins lucrativos – dedicadas à coordenação, administração, normatização, apoio e prática do desporto[15].
Dentro deste Sistema, de maneira geral, o esporte de rendimento é praticado por Entidades de Prática Desportiva – como os clubes – ou por atletas sem filiação a uma entidade. Esses atores podem ou não se organizar em Entidades de Administração do Desporto, geralmente na forma de Federações Regionais, que podem se reunir em Confederações Nacionais. Tomando a estrutura de governança do futebol como exemplo: a Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”) é uma entidade nacional de administração do desporto que reúne as diversas entidades regionais, como a Federação Paulista de Futebol, a Federação Bahiana de Futebol, e as demais. Há também a possibilidade de criação de Ligas regionais e nacionais para regulamentar, promover ou organizar competições profissionais; como é o exemplo da Liga Nacional de Basquete.
Sobre a estrutura do Sistema Nacional do Desporto, é importante ressaltar alguns pontos:
- Os atletas e entidades de prática desportiva são livres para organizar a atividade profissional na forma que melhor entenderem, desde que respeitados os limites legais[16].
- A filiação a Federações ou Ligas – sejam elas regionais, nacionais, ou internacionais – não é obrigatória aos atletas e entidades de prática desportiva profissional.
- Não há qualquer limite para o número de Federações, Ligas ou outras entidades de organização da prática do esporte de rendimento. Assim, é plenamente possível que diversas federações e ligas paralelamente organizem competições profissionais da mesma modalidade.
Dessa forma, a prática profissional de um esporte não depende de uma estrutura de entidades específica; basta a organização de eventos competitivos com caráter profissional[17].
Como a organização da prática desportiva profissional não é exclusiva a entidades específicas, cada entidade tem liberdade para elaborar o regulamento das competições que promove, o que inclui as regras do jogo em si. Nesse ponto, fica evidente uma importante diferença entre os esportes tradicionais e os e-sports: estes últimos possuem proprietários.
Nenhuma entidade é “dona” do futebol, basquete, atletismo, ou qualquer outro esporte tradicional. Por outro lado, os jogos eletrônicos adotados como modalidades de e-sports são propriedade intelectual de seus respectivos desenvolvedores ou empresas publicadoras (“publishers”, como são comumente conhecidas). Essas entidades detêm controle sobre o uso e distribuição dos jogos, sendo as únicas legalmente capazes de alterar seus mecanismos internos de funcionamento.
Como a legislação não prevê a existência de entidades detentoras de direitos legais sobre as modalidades esportivas em si, a promoção da prática profissional de e-sports torna-se diferente, na medida que as entidades organizadoras de competições profissionais precisam de autorização das publishers para o uso da marca e do software dos jogos eletrônicos em seus eventos. No mesmo sentido, as organizadoras dos eventos competitivos e entidades desportivas administrativas não possuem liberdade para alterar as regras dos jogos.
Essa peculiaridade dos e-sports limita não somente a organização das competições, mas também o exercício de outros institutos do direito desportivo.
Outros desafios jurídicos
O direito de arena é um instituto próprio do direito desportivo, inserido no ordenamento jurídico brasileiro pelo artigo 42 da Lei Pelé[18]. Trata-se do direito das entidades desportivas e dos times de negociar, com exclusividade, a qualquer forma de captação, emissão, retransmissão, entre outras atividades comerciais, envolvendo as partidas das quais participem.
Ainda sobre o direito de arena, salvo se houver disposição coletiva de trabalho em contrário, 5% do valor do direito de arena deve ser repassado para o sindicato de atletas profissionais, que distribuirá o valor em partes iguais para todos os atletas presentes naquela determinada partida[19].
No entanto, até o presente momento, não foi encontrada nenhuma organização sindical por parte dos atletas de e-sport ou até mesmo sua inclusão em sindicatos existentes. Apesar da Associação Brasileira de Clubes De E-sports (“ABCDE”) atuar como uma entidade autorregulamentadora[20] de seus integrantes que participam do setor, não foram encontradas informações sobre esse repasse para os atletas.
Essa falta de representatividade dos jogadores na dinâmica do cenário desportivo também pode prejudicar os atletas na medida em que eles não possuem uma representação mais ativa na defesa dos seus interesses e direitos.
Uma manifestação desse problema pode ser exemplificada pelo fato de que o artigo 94[21] da Lei Pelé afirma que diversas normas da lei são de cumprimento obrigatório exclusivo dos atuantes no futebol. Uma série dessas obrigações exclusivas, presentes no artigo 28 da mesma lei, dizem respeito ao conteúdo do contrato especial de trabalho desportivo que confere direitos e garantias aos atletas[22].
Apesar dos membros da ABCDE se comprometerem a realizar contratos desse tipo com seus atletas[23], entidades desportivas não integrantes da Associação não possuem nenhuma obrigação de fazê-lo.
Outro ponto importante e específico do ecossistema é a atividade de stream que consiste na transmissão ao vivo de jogadores, atletas ou não, jogando ou interagindo com o seu público por meio de plataformas. Tal atividade acaba consolidando influenciadores digitais[24][25] (mais conhecidos nesse ramo como streamers) nesse ecossistema, independente da sua interação com a esfera desportiva.
Streamers de sucesso acabam firmando contratos com diversos atores, devido à sua situação de influenciador digital. A Twitch, plataforma de stream popular no meio, realiza contratos “de parceria”[26] com os streamers para mantê-los na plataforma. Diversas empresas também procuram esses influenciadores digitais para patrocina-los como forma de publicidade. Exemplos desses contratos são aqueles realizados por entidades desportivas do cenário, que visam cativar novos torcedores por meio desses influenciadores[27].
Nessas relações contratuais envolvendo influenciadores e diversas marcas diferentes é importante que eles destaquem o caráter publicitário da dessas parcerias em meio ao conteúdo dos streamers. A necessidade da identificação publicitária se encontra no artigo 36[28] do Código de Defesa do Consumidor (“CDC”).
Vale também pontuar que toda e qualquer menção, em âmbito publicitário, ao jogo eletrônico praticado deve ser previamente acordada com a publisher para não violar os seus direitos autorais[29] e marcários[30] sobre os jogos.
Conclusão
O cenário do e-sport ainda se encontra em crescimento e desenvolvimento. A novidade do tema apresenta desafios para institutos do direito, seja pelo papel único na cadeia desportiva desempenhado pelas publishers, seja pela relação da matéria com o direito esportivo.
No presente artigo nos limitamos à uma breve apresentação do setor e algumas questões jurídicas inerentes à sua prática. Assim, contribuímos para uma fase inicial desse debate no qual, futuramente, pretendemos observar alguns aspectos com maior profundidade.
Com isso em mente, incentivar o debate acadêmico e esclarecer aspectos jurídicos controversos sobre o tema pode ajudar a garantir segurança jurídica para um mercado com grande potencial de crescimento e que pode atrair investidores e parceiros como vem acontecendo em diversos países.