A disseminação do Coronavírus impactou diversos setores de mercado de diferentes maneiras. Uma delas, contudo, é comum a muitos deles: o cancelamento ou adiamento de grandes eventos. Conforme já amplamente noticiado por especialistas e autoridades, a formação de aglomerações de pessoas é um fator determinante para a alta propagação do vírus[1], razão pela qual a reunião de grandes grupos para fins corporativos, acadêmicos, religiosos, esportivos ou de entretenimento, de forma geral, deve ser evitada.
No início de abril de 2020, após a decretação do estado de calamidade pública concomitante com as recomendações para que aglomerações fossem evitadas, o Governo Federal publicou a Medida Provisória n. 948/2020 visando atenuar os impactos iminentes nos setores do turismo e da cultura. A medida fixava regras para o cancelamento de eventos em razão da pandemia, tendo sido posteriormente transformada na Lei n. 14.046/2020.
Além de instruções sobre este tema a nível federal, alguns Estados também adotaram iniciativas locais, como o Estado de São Paulo que, por meio do Decreto n. 64.482, declarou suspensos os eventos com público superior a 500 pessoas no âmbito público e privado. Outros decretos também trataram sobre o tema, sendo alguns mais específicos, com disposições sobre eventos esportivos e cultos religiosos, por exemplo[2].
Esse cenário foi flexibilizado em alguns locais, devido à diminuição dos números diários de novos casos de COVID-19 durante o final de 2020. Um exemplo é o município de São Paulo, que publicou em outubro de 2020 a Portaria n. 1.041/2020, autorizando a retomada da presença de público em cinemas, teatros, casas de espetáculo e similares e alguns outros eventos, com exceção de festas.
Contudo, mais de um ano após o início da pandemia no Brasil, muitos eventos antes vistos como distantes continuam sendo adiados ou suspensos e, com a nova alta dos casos após os feriados de fim de ano, carnaval e a segunda onda de contaminações, medidas restritivas vêm sendo adotadas novamente em todo o país em 2021[3].
Como consequência da manutenção deste cenário, no dia 18 de março deste ano, foi publicada a Medida Provisória n. 1.036/21, que alterou a Lei n. 14.046/2020 já mencionada, estendendo e adaptando seus efeitos à atual conjuntura.
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Sintomas da crise e seus reflexos
Como alternativa para mitigar os prejuízos com as alterações nos cronogramas, muitos eventos migraram para o ambiente digital, como espetáculos, congressos, ciclos de palestras, eventos institucionais, entre outros. Em substituição aos shows, foram realizadas diversas lives em redes sociais, que se tornaram muito populares e transformaram a indústria musical – esse fenômeno foi especialmente forte durante o início do período de isolamento, possibilitando a aproximação entre os músicos e os fãs, além de trazer significativo retorno financeiro –[4].
Mas nem todo o setor de eventos conseguiu se adaptar. Pesquisas apontam que mais de 350 mil eventos deixaram de ser realizados em 2020, sendo 81,2% adiados e 77,4% cancelados. O resultado é relevante: o setor deixou de faturar R$90 bilhões de reais[5].
Os prejuízos gerados por este cenário se relacionam não apenas às obrigações de empresas e instituições perante consumidores, mas também às relações firmadas com fornecedores, como trataremos adiante.
Qual é o direito do consumidor?
Com o prolongamento da pandemia, foi se consolidando o entendimento sobre os direitos garantidos aos consumidores afetados pelas alterações nos eventos a que iriam comparecer. A Lei n. 14.046/2020, por exemplo, prevê que, na hipótese de adiamento ou cancelamento de eventos[1] até dezembro de 2021, o prestador de serviços não será obrigado a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que:
- remarque os serviços, reservas e os eventos adiados; ou
- disponibilize crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.
De acordo com esta Lei, o fornecedor fica desobrigado de ressarcir o consumidor, caso este não faça a solicitação em qualquer data a partir de 1º de janeiro de 2020, pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado da comunicação do adiamento ou do cancelamento dos serviços, ou 30 (trinta) dias antes da realização do evento, o que ocorrer primeiro.
A recente MP n. 1.036/2021, por sua vez, alterou a Lei n. 14.046, estabelecendo que o crédito conferido aos consumidores poderá ser utilizado até 31 de dezembro de 2022 e, pensando também nos profissionais deste setor que foram impactados pelo adiamento dos eventos, a MP determinou que os profissionais “não terão obrigação de reembolsar imediatamente os valores dos serviços ou cachês, desde que o evento seja remarcado, respeitada a data-limite de 31 de dezembro de 2022 para a sua realização.”
[1] A lei menciona adiamento ou cancelamento de serviços, reservas e eventos, incluídos shows e espetáculos. Para fins deste artigo, nos referimos a todos como “eventos”.
Quem leva o prejuízo?
As alterações no planejamento de grandes eventos demandaram a realização de verdadeiros planos gestão da crise, tendo como principal medida a identificação e análise dos contratos impactados pelo imprevisto. Isto, pois diversos fatores envolvidos nessa análise podem ser determinantes neste momento, como multas rescisórias, obrigações de notificação e, especialmente, a existência de uma cláusula sobre caso fortuito e força maior.
O último fator é especialmente relevante pois tem-se observado a tendência nos tribunais de interpretação da pandemia como um evento de força maior, isto é, um fato externo ao contrato, decorrente de um fenômeno natural imprevisível, que independe da vontade humana.
Assim, conforme prevê o artigo 393 do Código Civil[7], o devedor, neste contexto, não precisará responder pelos prejuízos resultantes desse evento natural, mas deverá demonstrar que a pandemia é a causa do descumprimento da obrigação para que não seja responsabilizado. Uma possível exceção é o caso de contratos que contêm disposições excluindo a aplicação dessa excludente de responsabilidade – nesta hipótese o devedor, mesmo se for declarada situação de força maior, terá que assumir os prejuízos gerados pelo imprevisto.
Note-se, que o Código Civil fala em “devedor”, isto é, qualquer um que tenha obrigações em aberto perante a outra parte, de forma que tanto o organizador quanto o fornecedor podem fazer uso desta garantia. Considerando que ambas as partes contratantes podem ser consideradas devedoras de alguma obrigação ao mesmo tempo, esse cenário requer daqueles afetados um grande esforço de negociação e conciliação para minimizar os impactos da situação e evitar que somente uma parte suporte todos os prejuízos.
Embora o evento de força maior seja uma situação passível de rescisão contratual, em certos casos será preferível buscar uma solução consensual, em detrimento do encerramento do contrato, para evitar prejuízos maiores a ambas as partes, renegociando ou postergando a execução das obrigações.
Neste sentido, o mindset predominante nos tribunais nesse momento tem sido o de buscar flexibilizar as obrigações contratadas, de modo a equilibrar o prejuízo das partes, evitando um colapso de toda a indústria. O que se observa até agora é a predominância da análise dos efeitos caso a caso, buscando alternativas como extensão de prazos, descontos e parcelamentos, suspensão de obrigações, entre outras alternativas à extinção do contrato, quando possível.
Importa ressaltar, contudo, que os impactos legais aqui abordados dependem do momento em que o contrato foi firmado. Isto porque, relativamente aos contratos firmados antes da pandemia, não havia como prever o surgimento do vírus e, consequentemente, seus impactos nos negócios das partes, havendo, de fato, um elemento de imprevisibilidade presente. Contudo, nos contratos firmados durante a pandemia, esse fenômeno deixa de ser uma questão imprevista, ou seja, os riscos passam a ser, até certa medida, esperados pelas partes, não sendo aplicável essa a hipótese de força maior.
Conclusão
Considerando a atual situação da pandemia no país, a previsão é que os impactos no setor de eventos se prolonguem durante o ano de 2021, o que reforça a necessidade de adaptar as negociações em curso e as novas negociações à realidade que estamos enfrentando.
Para que não haja perdas ainda maiores neste setor, é essencial que cada decisão seja tomada com a assessoria necessária e comunicada de forma clara e transparente ao público. Para além de medidas contratuais a fim de mitigar riscos para as partes, a busca por alternativas conciliatórias nos parece o melhor caminho neste momento.