Baptista Luz

23/08/2018 Leitura de 9’’

A possibilidade de integralização de capital social por criptoativos

23/08/2018

Os criptoativos são ativos relativamente novos no mercado, com possibilidades transacionais tão amplas que ainda se desconhece seu pleno alcance e, talvez por isso, mantenham-se populares apesar de todos os riscos e incertezas que os acompanham. Este artigo tem o objetivo de investigar a possibilidade de uso dos criptoativos para a integralização de capital social de empresas.

Em nossa investigação, concluímos não haver impedimento legal para que criptoativos sejam empregados dessa forma embora, conforme desenvolvemos a seguir, alguns detalhes importantes devam ser observados.

Em nossa análise, buscamos inicialmente identificar as principais características dos criptoativos, para então verificar a adequação de tal possibilidade às leis societárias e questões procedimentais decorrentes e, por fim, avaliar se tais ativos estão sob a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) ou do Banco Central do Brasil (“Bacen”).

/ Criptomoedas e blockchain

Criptomoedas são representações digitais de valor que não são emitidas e nem controladas pelo Bacen, ou qualquer outra autoridade monetária. Seu valor resulta da confiança depositada em suas regras de funcionamento, que se fundamentam na tecnologia de blockchain.

Um blockchain é, de maneira simplificada, uma rede de dados conectados criptograficamente que funciona como um “livro-razão”, na qual transações são registradas de maneira cronológica, praticamente irreversível, e compartilhadas com todos os seus membros. A tecnologia viabiliza um sistema descentralizado de validação das transações (o “proof-of-work”), em que qualquer integrante da rede pode dedicar poder de processamento à verificação de cada novo registro. Nos sistemas de criptomoedas, aqueles que se dedicam a essa tarefa são recompensados com a emissão de novas criptomoedas em suas carteiras[1].

Dessa forma, a tecnologia de blockchain garante às criptomoedas segurança e privacidade; a impossibilidade de replicação; e valor próprio (sujeito apenas às variações do mercado, uma vez que sua emissão e circulação não são atreladas a qualquer autoridade financeira).

Ressaltamos aqui que criptomoedas não são moedas em sentido estrito para o direito brasileiro. Moeda é a unidade ideal de troca de um Estado ou de vários Estados em união econômica; instituída como tal, dentro dos limites de sua soberania, pelo seu ordenamento jurídico. O Estado (ou a união econômica de Estados) garante o valor e impõe a circulação obrigatória da moeda local, tornando-a irrecusável como forma de pagamento[2]. No Brasil, a emissão de moeda é de competência exclusiva da União[3]. Além disso, o direito brasileiro não reconhece qualquer criptomoeda como moeda nacional, tampouco elas são irrecusáveis como forma de pagamento em território brasileiro. Por esses motivos, podemos dizer que criptomoedas não são moedas oficiais aos olhos do direito nacional.

ICO e tokens

Initial Coin Offerings (ICOs) são uma forma de arrecadação de fundos, na qual uma empresa faz uma oferta pública de tokens (ativos virtuais) que, de forma semelhante às criptomoedas, baseiam-se em blockchain. Os tokens geralmente garantem aos compradores direitos em relação à empresa, como de voto ou de participação nos lucros; ou então acesso a vantagens, produtos ou serviços que a empresa oferece. A natureza dos tokens das ICOs é semelhante à das criptomoedas: podemos defini-los como bens digitais, com relevância no mercado, dotados de certa liquidez, e baseados na tecnologia de blockchain. Como veremos em frente, porém, a conferência de certos direitos pelos tokens das ICOs pode caracterizá-los como valores mobiliários, sujeitos à regulação pela CVM.

Para os propósitos deste artigo, diferimos criptomoedas de tokens na medida que estes são necessariamente produto de uma campanha de ICO e geralmente garantem algum direito ao seu proprietário, enquanto as criptomoedas são desejáveis apenas pelo seu valor no mercado. Utilizamos o termo “criptoativo” para definir a categoria que reúne tokens e criptomoedas em geral.

A integralização do capital social de uma empresa

A integralização de capital ocorre quando os sócios aportam dinheiro ou bens na sociedade em pagamento pelas quotas ou ações dela (ato conhecido com “integralização”), com o fim de construir ou aumentar o seu capital social. É um dos atos que permite que a sociedade tenha patrimônio próprio para sua atividade, dissociado dos patrimônios pessoais de seus sócios. Há, contudo, questões a serem observadas quanto à forma como deve ser feita a integralização e quanto a quais tipos de recursos podem ser aportados. As contribuições podem ser feitas em dinheiro ou bens de qualquer espécie, contanto que sejam passíveis de avaliação em dinheiro[4]. Na qualidade de bens com valor apreciável no mercado, os criptoativos podem ser aportados na empresa para esse fim.

Enquanto nas sociedades limitadas basta o aceite dos sócios para a integralização de capital social com bens, a Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76) exige um procedimento mais complexo para as sociedades anônimas: antes do aporte, deve ser feita a avaliação dos bens por uma empresa especializada ou três peritos, que devem elaborar um laudo a ser aprovado pela assembleia geral e posteriormente aceito pelo sócio que pretende realizar a integralização (subscritor)[5]. Aqui reside um desafio: a volatilidade do mercado de criptoativos dificulta a sua precificação. Assim, a tarefa de identificar peritos competentes e um método satisfatório de avaliação pode ser complicada[6]. Uma saída possível seria pré-estabelecer a mecânica de avaliação no contrato social da empresa, evitando futuras controvérsias entre os sócios. Além disso, a instabilidade do mercado pode representar um risco à disponibilidade de capital da sociedade, uma vez que os criptoativos historicamente se mostraram suscetíveis a bruscas quedas em seu valor de mercado[7].

Outro potencial empecilho à operação seria a exigência legal de que os bens aportados a título de integralização de capital social sejam compatíveis com o objeto social da empresa[8], isso é, devem contribuir com o desenvolvimento de sua atividade econômica. Contudo, devido ao grau de liquidez dos criptoativos e sua utilidade – ainda que limitada – como meio de pagamento, podemos concluir que essa exigência não representaria um impedimento significativo ao procedimento.

Criptoativos no contexto regulatório brasileiro

Vimos que nossa legislação societária não apresenta obstáculos definitivos à integralização de capital social de empresas com criptoativos, mas ainda é necessário verificar se eles se há questões regulatórias que possam afetar essa possibilidade, o que faremos analisando o eventual enquadramento dos criptoativos em classificações referentes a bens cuja emissão e circulação são regulados.

Criptoativos como valores mobiliários:

 

Com a popularização das campanhas de ICO, surgiram questionamentos sobre a possível classificação dos criptoativos, em especial os tokens, no conceito de valor mobiliário. Todo ativo que se enquadre nessa caracterização é sujeito às normas e supervisão da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”).

A CVM se manifestou oficialmente em diversas ocasiões[9] a respeito do tema, expressando o entendimento de que, em alguns casos, os criptoativos podem ser caracterizados como valores mobiliários, nos termos do art. 2º da Lei 6.385/76: quando conferem ao proprietário direitos de participação, parceria, remuneração ou direito de voto em alguma empresa. Nesses casos, a emissão e negociação desses ativos virtuais estaria suscetível ao regime regulatório da CVM.

Criptoativos no contexto de arranjos de pagamento:

 

Arranjos de pagamento são conjuntos de regras e procedimentos voltados à prestação de serviços de pagamento ao público. O exemplo mais comum dessa categoria são os sistemas de pagamento por cartão de crédito. Em regra, os arranjos de pagamento operam sob a supervisão do Banco Central[10].

O Projeto de Lei 2.303/2015 (“PL 2303/2015”), em fase inicial de tramitação, prevê a inclusão de pagamentos realizados com criptomoedas e programas de milhagens aéreas no conceito de arranjo de pagamento, com o objetivo de colocá-los sob a supervisão do Banco Central e suprir o vácuo regulatório. Com a aprovação do projeto, o aporte de criptoativos para integralização de capital social poderia passar a ser regulado pelo Bacen.

Conclusão

Criptoativos são bens com relevância no mercado, suscetíveis a avaliação em dinheiro e dotados de certa liquidez, portanto não parece haver impedimento legal para seu uso como pagamento pela participação societária em eventos de constituição ou aumento de capital, contanto que sua compatibilidade com o objeto social da empresa seja defensável. É importante, contudo, ficar atento a novidades regulatórias e questões operacionais que possam afetar essa possibilidade.

Embora não haja regulação específica sobre os criptoativos, atualmente determinados tipos de tokens (quando se enquadrarem como valores mobiliários nos termos do art. 2º, IX da Lei 6.385/76) estão sujeitos à regulação pela CVM, e operações com criptomoedas podem vir a ser reguladas pelo Bacen, caso o PL 2303/2015 se torne lei. É necessário, ainda, atentar-se a novas propostas legislativas e regulamentares que possam vir a influenciar o enquadramento legal dos criptoativos de forma que comprometa a liberdade de realizar transações (inclusive societárias) com eles.

Por fim, ressaltamos que a volatilidade do mercado de criptoativos (i) dificulta a precificação dos criptoativos, o que pode dificultar a sua avaliação – necessária para a integralização em sociedades anônimas – e (ii) pode oferecer um risco à disponibilidade de capital da empresa, por conta de eventuais quedas bruscas do seu valor de mercado.

 

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NOTAS E REFERÊNCIAS:

 

Notas:

 

[1] A dedicação de esforço computacional à validação de transações de criptomoedas em troca de recompensa é o que se conhece popularmente como “mineração”, sendo esse o mecanismo que permite que esses recursos sejam emitidos de forma independente de qualquer instituição.

[2] COSTA, Luciana Pereira. Disciplina jurídica do câmbio e política pública. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009.

[3] Artigo 21, inciso VII, da Consituição Federal de 1988.

[4] Vide artigo 997, III, do Código Civil; e artigo 7º da Lei nº6.404/76, a “Lei das Sociedades por Ações”.

[5] Artigo 8º da Lei nº6.404/76.

[6] Diversas entidades têm levantado esforços para definir um método de precificação de criptoativos.  O diretor de pesquisa sobre alocação de ativos da T. Rowe Price Group, Stefan Hubrich, sugere que o preço de criptomoedas deve ser calculado a partir do seu valor de mercado frente ao volume em dólares das transações no blockchain, adotando para isso um período de quatro meses, ao invés dos doze meses normalmente utilizados para ações, devido à quantidade limitada de dados históricos. Nesse sentido: https://www.lexmachinae.com/2018/05/17/criptomoedas-integralizacao-capital-social/; https://www.valor.com.br/financas/5217243/o-que-esta-por-tras-da-precificacao-do-bitcoin. Acesso em 22.08.2018.

[7] A título de exemplo, podemos analisar a variação no valor do Bitcoin, que observou elevações e quedas significativas em curtos períodos, em especial entre outubro de 2017 e março de 2018. Disponível em: https://coinmarketcap.com/currencies/bitcoin/. Acesso em 17.08.2018.

[8] Artigo 117, § 1º, “h”, da Lei nº 6.404/76.

[9] FAQ da CVM a respeito de Initial Coin Offerings, de outubro de 2017. Disponível em: https://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2017/20171011-1.html. Acesso em 17.08.2018. Nota da CVM a respeito do tema, de novembro de 2017. Disponível em: https://www.cvm.gov.br/noticias/arquivos/2017/20171116-1.html. Acesso em 17.08.2018.

Ofício-Circular nº 1/2018/CVM/SIN, de janeiro de 2018. Disponível em: https://www.cvm.gov.br/legislacao/oficios-circulares/sin/oc-sin-0118.html. Acesso em 17.08.2018.

[10] São alheios à fiscalização do Banco Central os arranjos de pagamento que não ultrapassam R$ 500 milhões em valor total e 25 milhões em quantidade de transações por ano; além de algumas categorias de arranjos, como os cartões “private label”, exclusivos para uso nos estabelecimentos das redes comerciais que os emite; e os arranjos que servem apenas para pagamento de serviços públicos, como água e transporte. Para mais informações sobre arranjos de pagamento: https://goo.gl/SL1g6J. Acesso em 17.08.2018.

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