Patentes essenciais, guerra das patentes e possíveis condutas anticompetitivas: análise de casos internacionais e visão do CADE sobre o tema
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Patentes essenciais: o que são?
Para que se possa verificar problemas anticompetitivos relacionados às patentes essenciais é imprescindível que se conceitue o instituto. O termo standard essential patent, traduzido como patente essencial, é uma evolução da doutrina de essential facility, que, por sua vez, pode ser caracterizada por uma estrutura essencial detida por um único agente econômico, que não é passível – seja física ou economicamente – de duplicação pelos concorrentes. Por serem essas estruturas essenciais para a prestação do serviço ou fornecimento de um produto, o detentor é obrigado a licenciá-la.
Na era da tecnologia da informação, passou-se a discutir também a necessidade de licenciar propriedades intangíveis, mais especificamente, patentes consideradas necessárias para que um agente econômico ofertasse um produto ou serviço no mercado.
Portanto, as patentes essenciais são, resumidamente, padrões tecnológicos, estabelecidas por standard setting organizations (SSOs) que facilitam o uso e troca de informações entre produtos de diferentes marcas, aumentando a interoperabilidade entre eles.
Padronizar componentes tecnológicos é importante principalmente porque sistemas incompatíveis poderiam dificultar o uso de determinadas tecnologias, como por exemplo, o wi- fi. Por essas razões, ainda que seja concedida a patente da invenção ao inventor, impõe-se a ele a obrigação de licenciar tais patentes a seus concorrentes por meio de termos justos, razoáveis e não discriminatórios (Fair, Reasonable and Non-Discriminatory – FRAND).
De acordo com memorando divulgado pela Comissão Europeia:
SEPs são patentes essenciais para implementar um padrão de indústria específico. Isso significa que é impossível fabricar produtos compatíveis com o padrão, como smartphones ou tablets, sem o uso de tecnologias protegidas por uma ou mais patentes essenciais (SEPs). As SEPs podem, portanto, conferir poder de mercado significativo aos detentores da SEP, o qual eles não teriam caso não houvesse o padrão no setor. Os padrões em questão são acordados por organizações normativas, como o ETSI (Instituto Europeu de Padrões de Telecomunicações), do qual participam detentores de patentes e fabricantes de produtos padrão.[1] (Tradução livre)
Assim, o desenvolvimento cada vez mais intenso de novas tecnologias padronizadas tem impulsionado as discussões a respeito dos termos do licenciamento das patentes essenciais – especialmente no setor de tecnologia da informação. Isso porque, o fenômeno da padronização é onipresente na tecnologia da informação, principalmente para que um concorrente seja considerado efetivo no mercado[2].
Nesse sentido, há um potencial problema concorrencial caso o detentor da patente essencial não licencie seu produto essencial, já que a recusa poderá causar danos ao mercado na medida em que a criação de um padrão alternativo poderia retardar a introdução de um novo produto, por exemplo, ou mesmo gerar custos adicionais aos fabricantes, que teriam que redesenhar componentes que já haviam sido desenhados considerando aquela patente essencial além de ter que subsidiar a migração do consumidor para uma tecnologia diferente do padrão.
Além disso, os termos do licenciamento também poderão gerar preocupações, pois quanto maior o custo para migrar para uma tecnologia diversa, mais caro poderá um detentor de patente essencial cobrar pelo licenciamento.
Diante dessas questões, um número cada vez maior de controvérsias relacionadas ao licenciamento de patentes essenciais vem sendo analisado pelas autoridades antitruste dos Estados Unidos e da União Europeia e, de forma mais tímida, do Brasil, culminando na famigerada “guerra das patentes”[3].
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Quando a detenção da patente se torna abuso de poder econômico: a guerra das patentes
Como explicado no item acima, o uso de tecnologias padronizadas tem sido cada vez maior no setor de tecnologia da informação, sobretudo quando se fala em notebooks, tablets e smartphones. Tecnologias padronizadas são imprescindíveis para fomentar a inovação, como já reconheceu a Comissão Europeia.
O que se tem visto, entretanto, é que empresas detentoras dessas patentes essenciais estão praticando condutas anticompetitivas, seja ao se recusar a licenciar essas patentes sob termos FRAND ou ao se valer da dificuldade de definir o escopo de suas patentes, ingressando judicialmente contra possíveis infratoras.
Há um número crescente de grandes players do setor de tecnologia da informação ingressando com ações contra concorrentes a fim de dificultar sua operação no mercado. Gigantes do mercado têm participado efetivamente da guerra das patentes, figurando não só como autoras como também rés em ações judiciais propostas por empresas detentoras de patentes.
Um exemplo disso é a Motorola (adquirida pela Google em 2012 e vendida para a Lenovo em 2014) que se valeu de patentes essenciais relacionadas às tecnologias essenciais 3GPP e 3GPP2, para recusar o licenciamento à Apple sob termos FRAND. Durante investigação realizada pela Comissão Europeia, as empresas entraram com ações judiciais uma contra a outra.
Embora a Comissão tenha explicado ser legítima a propositura de ações em casos de infração de direitos de patente, entendeu que a Motorola estava abusando de seu direito, porque que não haveria justificativa razoável para a recusa no licenciamento, já que a Apple havia tentado celebrar contrato de licenciamento com a companhia.
Decisão mais recente, nos Estados Unidos[4], envolveu o licenciamento de patentes essenciais da Qualcomm. De acordo com a Federal Trade Commission – FTC, a Qualcomm estava abusando de seu direito de patente relacionado a microchips utilizados em celulares e outros produtos – necessários para o uso 3G e 4G nos celulares.
A autoridade antitruste americana entendeu que a Qualcomm atuava prejudicando o mercado por meio de ações anticompetitivas para se manter como monopolista no mercado em questão. Dentre as ações descritas, destaca-se a imposição de termos e condições não razoáveis para o licenciamento e a recusa em licenciar patentes essenciais aos concorrentes[5].
Fato é que litígios relacionados à patente essencial vêm crescendo no mundo todo e estima-se que poderão crescer ainda mais para a implementação da tecnologia 5G. Um relatório publicado no Financial Times, por exemplo[6], explica que a demanda por conectividade tem aumentado a tensão entre inovadores e detentores de propriedade intelectual, especialmente no que diz respeito a garantir um lugar na famigerada “revolução 5G”.
A falta de clareza sobre o que seriam termos razoáveis e até mesmo sobre o que poderia ser considerado um abuso do direito de propriedade intelectual estão aumentando o número de impasses entre concorrentes.
Pode-se dizer, contudo, que os órgãos antitruste dos EUA e da União Europeia estão avançados na busca por uma solução: além de já terem analisado muitas ações relacionadas a patentes essenciais, os órgãos também elaboraram guias a respeito do licenciamento de propriedade intelectual[7], explicando como as autoridades antitruste devem analisar contratos desse tipo.
A autoridade americana FTC, inclusive, divulgou sua nova versão do guia sobre licenciamento de patentes alguns dias antes de processar a Qualcomm[8], deixando clara a preocupação do órgão com condutas relacionadas ao abuso do direito de propriedade intelectual. A Divisão de Antitruste do Departamento da Justiça dos Estados Unidos, por sua vez, publicou no final de 2019 declaração em conjunto com o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST) sobre a visão das autoridades com relação a licenciamento de SEPs[9].
No Brasil, o CADE já analisou alguns casos de propriedade intelectual, mas apenas um relevante sobre patentes essenciais e termos FRAND.
3. Licenciamento de propriedade intelectual e o CADE: perspectivas nacionais.
As patentes essenciais foram analisadas pelo CADE no caso envolvendo a Ericsson, detentora de patentes relacionadas à tecnologia 3G. A TCT, que comercializa a marca Alcatel no Brasil, acusou a Ericsson de abuso de propriedade industrial, negociação coercitiva e sham litigation.
A TCT acusou a Ericsson de iniciar disputas judiciais indevidas, “de cunho discriminatório e excludente” com vistas a coagir a TCT a celebrar contrato de licenciamento para o uso da tecnologia 3G de titularidade da Ericsson.
De acordo com o CADE, não havia indícios para determinar a abertura de um processo administrativo porque não havia racionalidade econômica para sustentar que a Ericsson estaria tentando excluir a TCT do mercado de telefonia móvel. Isso porque, na visão da autoridade, como a Ericsson não era concorrente da empresa, já que não mais atuava no mercado telefonia (mas somente na pesquisa e desenvolvimento de tecnologia na área de comunicação) não seria rentável dificultar o licenciamento[10].
Além disso, a autoridade concluiu que o impasse na determinação de valor razoável e não discriminatório a ser pago pelo licenciamento e o eventual uso indevido ou óbice à utilização “constituem questão comercial de propriedade intelectual e contratual, entre particulares, a ser discutida na esfera judicial, haja vista que pautada em elementos razoáveis sem claro intuito concorrencial”. Portanto, o que se vê nessa decisão é que há certa dificuldade da autoridade em vislumbrar preocupações concorrenciais relacionadas ao licenciamento de patentes quando as partes não são concorrentes, ao contrário de outras autoridades antitruste, sobretudo as americanas e europeias.
A Lei de Defesa da Concorrência estabelece como infração à ordem econômica “açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia”. Ora, ainda que a Ericsson não atue no mesmo mercado que a TCT, a recusa do licenciamento deve ser analisada pautando-se nos “ditames constitucionais da liberdade de iniciativa, da livre concorrência, da função social da propriedade, da defesa dos consumidores e da repressão ao abuso do poder econômico”, como o próprio CADE reconheceu em sua decisão.
Nessecontexto,oquesepercebeéqueoCADEchegouàessaconclusãoapenasporque as empresas não eram concorrentes, sem, contudo, verificar se os termos de licenciamento propostospelaEricssonobedeciam à legislação concorrencial eaosprincípiosconstitucionais:épossíveldizerqueafunção social está sendo preservada, já que a disputa judicial iniciada pela Ericsson busca, de certa forma, restringir o fluxo de criação e circulação de informação? Em que medida deve-se preservar os direitos exclusivos conferidos à Ericsson, se a recusa de licenciamento, ao prejudicar a atuação da TCT, prejudica também o desenvolvimento econômico decorrente da propagação da tecnologia e interessesocial?
Uma análise mais adequada pelo CADE poderia ter utilizado como base a legislação nacional acima mencionada vis-à-vis a jurisprudência estrangeira: a Comissão Europeia, por exemplo, já declarou que detentores de patentes dominantes não podem se valer de medidas protetivas quando se discute o licenciamento de patentes essenciais e o licenciado em potencial deseja negociar um licenciamento com condições justas e não discriminatórias.
Ademais, com a implementação da tecnologia 5G, é provável que sejam levadas ao CADE novas questões envolvendo o licenciamento de patentes, semelhantes ao caso envolvendo Alcatel e Ericsson. A Comissão Europeia, mais uma vez, já se antecipou e publicou comunicado explicando que o panorama do licenciamento de patentes essenciais se tornará ainda mais complexo com a implementação da tecnologia 5G[11].
Para solucionar possíveis problemas, a autoridade europeia vem desenvolvendo há alguns anos um plano de ação que promova “transparência e previsibilidade no licenciamento de SEPs”, considerados pela autoridade elementos-chave para a transformação digital. Dentre as ações já realizadas, destaca-se a elaboração de inúmeros estudos relacionados à padronização e patentes, criação de um grupo de especialistas que analisaram, dentre outros temas, termos de licenciamento de SEPs, com foco especial em patentes relacionadas à internet, e consulta pública sobre patentes e padrões.
Conclusão
O estudo demonstrou que o licenciamento de patentes essenciais ainda vem sendo amplamente discutido pelas autoridades concorrenciais, especialmente nos Estados Unidos e União Europeia.
Embora os impactos anticompetitivos relacionados a esse tipo de licenciamento tenham sido pouco analisados no Brasil, a tendência é que a economia globalizada e, sobretudo, a implementação da tecnologia 5G, possa trazer mais casos em que se discute a validade de direitos de patentes essenciais e os termos de contratos de licenciamento.
Fato é que a guerra de patentes está apenas começando e se intensificando cada vez mais. Até o momento, não há soluções definitivas acerca da validade de determinados direitos de propriedade intelectual – sobretudo os direitos relacionados às patentes essenciais – mas as autoridades estrangeiras estão muito mais avançadas que o Brasil, tendo inclusive criado guias a respeito do licenciamento desse tipo de patente.
Pela análise da jurisprudência do CADE, vê-se que a autoridade brasileira possui certa dificuldade em identificar o abuso do direito de propriedade intelectual como infração à concorrência, tendendo a tratar as disputas relacionadas ao licenciamento de patente essencial como um mero impasse entre particulares, que nada tem a ver com a ordem econômica.
A perspectiva, entretanto, é que esse problema possa ser atenuado, já que a autoridade tem se voltado à investigação de condutas unilaterais – em 2020, por exemplo, foram instauradas 76 investigações, sendo que 30 delas foram referentes a condutas unilaterais[12] – e, ainda, o CADE firmou em 2018 um Acordo de Cooperação com o INPI[13], o que poderá facilitar a análise de condutas unilaterais relacionadas a temas que envolvam propriedade intelectual e concorrência.
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