Em 27 de outubro de 2016, foi sancionada a Lei Complementar nº 155[1], que altera dispositivos da Lei Complementar nº 123[2] (o “Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte” ou, simplesmente, “Lei do SIMPLES”). Entre as principais inovações da LC 155, destaca-se a inclusão, na Lei do SIMPLES, dos artigos 61-A a 61-D, e que regulam o chamado investimento-anjo.
O investimento-anjo[3] é uma modalidade de financiamento para empresas nascentes que têm crescido exponencialmente nos últimos anos. O termo “anjo” surgiu na primeira metade do século XX para identificar indivíduos que financiavam produções teatrais na Broadway, de maneira semelhante aos patronos e mecenas que apoiavam artistas nos séculos anteriores.
Na atualidade, o termo tem sido utilizado para designar pessoas físicas que apoiam empreendimentos inovadores por meio de aportes de capital semente, isto é, contribuição financeira com o objetivo principal de apoiar os primeiros passos de uma empresa. Em contrapartida, os investidores-anjo possuem a expectativa de receber retornos financeiros da empresa no futuro, seja por meio de dividendos, seja por meio de ganhos de capital.
A atividade de investimento-anjo no Brasil tem se intensificado, especialmente por conta de grupos de investidores-anjo e associações, como a Anjos do Brasil[4], empenhadas em fomentar esse tipo de investimento no país. Evidente, a popularização desse modelo passa por desafios culturais, econômicos e jurídicos. Sobre este último ponto, a regulação brasileira até então trazia pouca segurança jurídica para que investidores-anjo pudessem investir em microempresas e empresas de pequeno porte.
A jurisprudência brasileira a respeito da desconsideração da personalidade jurídica em casos de “interesse público” (como, por exemplo, questões trabalhistas, consumeristas e tributárias) é notadamente enérgica no caso de sociedades limitadas, e esse aspecto traz riscos a investidores-anjo por conta da exposição de seu patrimônio pessoal em um negócio arriscado por sua própria natureza. Para contornar esse desafio, a prática de mercado tem buscado caminhos criativos, por meio da importação de instrumentos utilizados em outras jurisdições, como o mútuo conversível, mas que também trazem desvantagens, como o completo desconhecimento do Judiciário a respeito desse instituto e a criação de ônus excessivos para as empresas investidas.
Com a introdução dos artigos 61-A a 61-D na Lei do SIMPLES, a LC 155 buscou fincar as bases regulatórias de um modelo brasileiro de investimento-anjo. Utilizando conceitos já previstos no Código Civil e trazendo algumas inovações legislativas, a LC 155 trouxe mudanças importantes para o cenário jurídico, que passarão a ser vigentes a partir de janeiro de 2017.
A seguir, analisamos, ponto a ponto, as inovações trazidas pela LC 155, bem como endereçamos, ao final do artigo, recomendações para reguladores e aplicadores do direito, que irão lidar com os desafios propostos pela lei.
Análise – artigos 61-A a 61-D da Lei Complementar 123 (introduzidos conforme a LC 155)
Art. 61-A. Para incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos, a sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, nos termos desta Lei Complementar, poderá admitir o aporte de capital, que não integrará o capital social da empresa
O primeiro artigo relevante sobre o tema traz algumas características importantes:
(i) objetivo do investimento anjo: incentivo a atividades de inovação e investimentos produtivos;
(ii) quem pode receber investimentos anjo? Microempresas e empresas de pequeno porte que, de acordo com o art. 3o da Lei do SIMPLES, são sociedades empresárias, sociedades simples, empresas individuais de responsabilidade limitada e empresários, e que:
a. no caso da microempresa, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00; e,
b. no caso da empresa de pequeno porte, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00 e igual ou inferior a R$ 3.600.000,00(três milhões e seiscentos mil reais) e, a partir de 1o de janeiro de 2018, e igual ou inferior a R$ 4.800.000,00.
Além das previsões acima, a principal contribuição do caput do artigo 61-A é a indicação clara de que o aporte de capital do investidor-anjo não integrará o capital social da sociedade — questão que é melhor detalhada nos parágrafos seguintes.
- §1º: As finalidades de fomento a inovação e investimentos produtivos deverão constar do contrato de participação, com vigência não superior a sete anos.
Neste parágrafo, surge a primeira menção a um contrato de participação, isto é, o contrato de investimento-anjo que regula a realização do aporte previsto no caput do artigo. Ainda que esse tipo de contrato seja atípico em relação àqueles elencados no Código Civil, parece-nos que a LC 155 trouxe, especialmente nesse artigo 61-A, uma série de requisitos formais que aproximam esse contrato de participação de um contrato típico, isto é, com uma forma prescrita em lei.
Isso não significa que os contratos de participação de investidor-anjo não podem trazer disposições novas. A principal discussão que surge atualmente é se o contrato poderia prever a possibilidade de conversão da natureza do aporte especial realizado pelo investidor-anjo em capital social da sociedade. Na própria lógica do investimento-anjo, a principal expectativa do aporte é que haja um retorno financeiro extraordinário: diferente de investimentos em títulos de renda fixa ou investimentos em empresas consolidadas, o principal objetivo do investidor-anjo é entrar em negócios de altíssimo risco (empresas nascentes no setor de inovação) e que, por sua natureza disruptiva, trazem a possibilidade de um retorno muito maior do que as expectativas gerais de mercado.
Por conta dessa característica essencial do investimento-anjo e tendo em vista que não há qualquer previsão que conflite com essa natureza, a princípio, não nos parece ser impeditivo que os contratos de participação de investimento-anjo prevejam a possibilidade de conversão do aporte especial em capital social da sociedade. Essa possibilidade traz características que se vinculam diretamente com a questão de responsabilidade: enquanto os investidores-anjo forem detentores de um aporte especial, esses estão protegidos pela isenção de responsabilidade prevista no § 4o adiante, mas o seu retorno financeiro, no momento de resgate do valor investido, está limitado ao valor investido corrigido, conforme o § 7o. A partir do momento da conversão, parece-nos que a ampla isenção de responsabilidade do § 4o não mais seria aplicável mas, por outro lado, a limitação de retorno do § 7o também não se aplica. É um trade-off entre isenção de responsabilidade e teto para retorno financeiro.
Situação diferente surgiria caso determinado contrato inovasse em conflito com algum dos requisitos previstos na LC 155 (e.g., o prazo de 7 anos previsto neste artigo). Nesse caso, o contrato pode perder sua característica típica, o que poderia lhe valer a perda de alguns benefícios concedidos pela lei, notadamente a isenção de responsabilidade prevista no § 4o.
Colocadas essas características essenciais sobre a tipicidade do contrato, passamos a pontuar alguns requisitos contratuais trazidos pela LC 155 para os contratos de participação de investidor-anjo. A leitura deste § 1o traz de início dois requisitos:
(i) o objeto do contrato deverá prever que o aporte será realizado com a finalidade de fomento à inovação e investimentos produtivos; e
(ii) o contrato não pode ter uma vigência superior a 7 anos.
A limitação do objeto de contrato é relevante, e parece-nos uma das principais garantias de que o investimento não será utilizado para fins que possam ser considerados fraudulentos ou não compreendidos na proteção ao investimento-anjo concedida pela LC 155. Parece-nos, nesse sentido, que os próprios sócios-fundadores podem ser pessoalmente responsabilizados caso desvirtuem a finalidade do aporte, aplicando-lhes, nesse caso, o artigo 50 do Código Civil.
Já no que se refere ao prazo máximo de 7 anos, convém comentar que não nos parece, à primeira vista, que esse prazo traz qualquer prejuízo à prática já exercida atualmente pelos investidores-anjo brasileiros; em verdade, trata-se de prazo longo, quando se vê o mercado trabalhando com prazos inferiores a isso para, por exemplo, mútuos conversíveis, cujos termos de vencimento comumente variam entre 2 a 3 anos.
- §2º: O aporte de capital poderá ser realizado por pessoa física ou por pessoa jurídica, denominadas investidor-anjo.
Este parágrafo traz uma previsão importante: ao definir que o investidor-anjo poderá ser pessoa jurídica, há a garantia de que grupos de investidores-anjo poderão se reunir em torno de veículos de investimento para realizar aportes especiais ou, ainda, que investidores individuais poderão organizar sua estratégia de investimento por meio de pessoas jurídicas (sejam essas nacionais ou estrangeiras), fomentando modelos lícitos de planejamento patrimonial.
- §3º: A atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente por sócios regulares, em seu nome individual e sob sua exclusiva responsabilidade.
- § 4º: O investidor-anjo:
I — não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa;
II — não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil;
III — será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo prazo máximo de cinco anos.
O § 3o, § 4o e seus incisos seguintes trazem parte do racional da regulação do investimento-anjo. Estabelece-se nos incisos I a III do § 4o não só características essenciais do contrato de participação como também benefícios concedidos pela regulação a partir do momento em que o contrato de investimento-anjo completa todos os requisitos legais exigidos pela legislação, quais sejam:
(i) o benefício de não ser considerado sócio da sociedade — o que, por outro lado, retira o direito de gerência ou voto na administração da empresa, que é de exclusiva responsabilidade dos sócios regulares, na forma do § 3o;
(ii) a isenção de responsabilidade, sendo aqui um direito bastante amplo e intenso, especialmente pela referência ao artigo 50 do Código Civil; e
(iii) a possibilidade de remuneração pelos aportes, mas por um prazo máximo de 5 anos.
Dos pontos acima, merece atenção especial o inciso I. Em contratos de mútuo conversível em participação societária (tão comuns no universo de investimentos-anjo no Brasil), tornou-se comum o estabelecimento do que se convencionou de “direitos de veto”, ainda que essa expressão seja imprópria no âmbito de um contrato de mútuo. Isso ocorre porque, nos mútuos conversíveis, os vetos do investidor existem no âmbito dos respectivos direitos creditícios, ou seja, a única sanção que o investidor pode impor aos sócios-fundadores caso estes ignorem ou violem o direito de veto do investidor é antecipar o vencimento antecipado do mútuo (com eventual acréscimo de multa). Todavia, o investidor não consegue efetivamente impedir que determinadas decisões sejam tomadas e que determinados atos sejam praticados pelos sócios-fundadores, pois não há em regra execução específica para esses direitos (há apenas direito do investidor exercer seus direitos creditícios).
A restrição imposta pela LC 155 quanto à gerência ou voto na sociedade tem o propósito de impedir que um verdadeiro sócio-fundador se “vista” como investidor-anjo, participando da gestão da sociedade, mas ao mesmo tempo sendo protegido pela isenção de responsabilidade prevista na lei. Ou seja, desde que o contrato de participação não atribua ao investidor-anjo direitos de cunho societário, não nos parece, à primeira vista, haver impedimento legal à criação de cláusulas de vencimento antecipado (observado o prazo mínimo de dois anos do parágrafo 7o) em caso de tomada de decisões ou prática de atos contrários aos interesses do investidor-anjo.
Os parágrafos 3o e 4o trazem também uma outra discussão importante: ao estabelecer uma modalidade típica de contrato, o contrato de participação de investimento-anjo matou o mútuo conversível? Em outras palavras, o investimento-anjo no Brasil somente poderá ser feito, daqui para frente, por meio de contratos de participação escritos em estrita conformidade com a LC 155?
Essa discussão surge a partir de preocupações que surgem com o advento da LC 155. A principal inquietação pode vir a partir de interpretações judiciais de que os investidores que se utilizarem de instrumentos diversos do contrato de participação previsto na LC 155 não serão considerados, juridicamente, investidores-anjo, o que poderia ser prejudicial à isenção de responsabilidade desses investidores. Tal interpretação não nos parece que deveria prosperar.
É verdade que o mútuo conversível é contrato atípico, não previsto expressamente na legislação brasileira, mas isso não significa que seja ilícito, especialmente tendo em vista que o próprio artigo 425 do Código Civil permite as partes livremente estipular contratos atípicos, desde que o objeto seja possível, lícito, as partes capazes e demais princípios do direito privado brasileiro sejam observados.
Ou seja, a correta visão jurídica do tema é, a nosso ver, a de que a criação de um novo contrato típico favorece a segurança jurídica, mas não torna ilícitos outros modelos já adotados pelo mercado.
Nesse sentido, o contrato de participação é uma nova criatura jurídica, de natureza híbrida: permite o exercício de alguns direitos tipicamente decorrentes de participação societária (participação nos lucros, direito de preferência, tag along) mas, ao mesmo tempo, exclui expressamente toda e qualquer responsabilidade do investidor por dívidas da sociedade. Sem a LC 155, seria impossível o nascimento de um instituto com essas características; poder-se-ia argumentar que o mútuo conversível trazia características semelhantes, mas sua característica alienígena perante a legislação brasileira, ainda que lícita, não fornecia segurança jurídica clara para seus contratantes. Em suma, parece-nos que a LC 155 criou algo novo, interessante, desafiador, mas não destruiu o que o mercado já fazia.
Finalmente, uma discussão que também surge no parágrafo 4o é a possível inconsistência entre seu inciso III e o prazo previsto no parágrafo 1o supracitado. Enquanto este prevê um prazo máximo de sete anos para o contrato de participação, o § 4o, III, prevê um prazo máximo de cinco anos pelo qual o investidor-anjo pode ser remunerado pelo seu aporte.
À primeira vista, pode-se pensar que há uma ligação direta entre estes dispostivos e o § 7o, que estabelece o prazo mínimo de dois anos para o resgate. Mas, enquanto o § 7o trata do resgate, o § 4o, III trata da remuneração pelos aportes, tema que é tratado com maior detalhamento no § 6º. Considerando o prazo máximo de 7 anos para o contrato de participação e o prazo máximo de 5 anos para a remuneração dos aportes, a lei parece ter criado , tacitamente, também um prazo de carência para o início da remuneração do investidor-anjo pelos aportes; todavia, nada impediria que a remuneração pelos aportes tenha início logo após a assinatura do contrato de participação, desde que respeitado o prazo máximo de 5 anos.
- §5º: Para fins de enquadramento da sociedade como microempre§§sa ou empresa de pequeno porte, os valores de capital aportado não são considerados receitas da sociedade.
Ao se colocar que o aporte especial não será considerado receita da sociedade, parece-nos claro que a legislação exclui da contabilização da receita da sociedade para fins de enquadramento como microempresa ou empresa de pequeno porte. Contabilmente, parece-nos relevante considerar que o aporte especial deverá ser contabilizado como passivo da sociedade, em categoria especial.
- §6º Ao final de cada período, o investidor-anjo fará jus à remuneração correspondente aos resultados distribuídos, conforme contrato de participação, não superior a 50% (cinquenta por cento) dos lucros da sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte.
O § 6º introduz a possibilidade de remuneração do aporte especial do investidor-anjo por meio do recebimento de uma parte do lucro líquido apurado pela sociedade, conforme acertado no contrato de participação, mas em montante não superior a 50% do lucro a ser distribuído.
Sobre essa questão, três pontos chamam a atenção. O primeiro deles é que, sendo as sociedades abrangidas pela lei as microempresas e empresas de pequeno porte, que são desobrigadas a escrituração contábil anual, entendemos que os resultados em que o investidor-anjo pode participar são os mesmos resultados que podem ser distribuídos aos sócios, e não devem ser confundidos com lucro líquido contábil ou dividendos. Sendo o sistema de referência utilizado pela LC 123 o das empresas no SIMPLES, é importante esclarecer que esse é um dos pontos em que a regulamentação do Ministério da Fazenda provavelmente tratará do assunto, com o objetivo de evitar interpretações abusivas.
Outro ponto importante é a definição de qual seria o “período” citado na lei. Parece-nos que há liberdade contratual para definir a remuneração com base nos resultados distribuídos de forma ampla, podendo ser mensal, bimestral ou mesmo anual, a critério das definições das partes, visto que a LC 155 não criou qualquer limitação nesse sentido.
O terceiro ponto é a limitação de 50%, o que acaba criando um outro requisito formal para que o investimento seja, de fato, considerado um investimento-anjo, o que faz sentido inclusive se pensarmos que a prática de mercado é que os investidores-anjo são minoritários nas empresas nascentes, e raramente têm o controle de seu capital social.
Por fim, fica pouco claro a que título serão recebidos esses valores pelo investidor-anjo e, consequentemente, a tributação a que estariam sujeitos. Ressalvado que o Ministério da Fazenda poderá regulamentar esse ponto ainda, entendemos que o racional deste § 6º traz à tona um dos aspectos mais proeminentes da LC 155: a possibilidade de o investidor-anjo participar nos resultados da sociedade, como se sócio fosse, mas sem ser um sócio. Para ser coerente com o espírito da lei, é forçoso que não haja tributação dessa remuneração, a exemplo do que acontece com os sócios (a distribuição desses resultados para sócios representa rendimento isento e não tributável). Se houver tributação dessa remuneração, cairá, a nosso ver, um dos pilares da importância do novo instituto.
- §7º: O investidor-anjo somente poderá exercer o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, dois anos do aporte de capital, ou prazo superior estabelecido no contrato de participação, e seus haveres serão pagos na forma do art. 1.031 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil, não podendo ultrapassar o valor investido devidamente corrigido.
O § 7º estabelece o direito do anjo de resgate após, no mínimo, dois anos do aporte de capital, sendo o valor equivalente ao menor entre (i) um montante correspondente a percentual do valor patrimonial da sociedade, conforme definido no contrato de participação, a ser apurado com base em balanço especialmente levantado até a data do resgate, na forma do artigo 1.031 do Código Civil e (ii) um montante máximo correspondente ao valor integral do aporte especial, devidamente corrigido até a data do resgate (a legislação não estabelece um índice específico, cabendo às partes eleger o índice de sua conveniência, como IGP-M/FGV ou IPCA/IBGE).
Estabelece-se aqui uma proteção às empresas, por meio de um limite no valor a ser resgatado pelo investidor-anjo. Era comum a preocupação das empresas no sentido de que, ao aceitar mútuos conversíveis como instrumento de investimento, estariam sujeitas à devolução do valor integral do mútuo na hipótese de não-conversão, sendo que a devolução desse valor poderia ser onerosa em uma situação financeira delicada da empresa. Com o § 7o, as empresas têm a segurança de que o valor integral do aporte especial não poderá ser cobrado em casos que o valor patrimonial da empresa seja baixo, sendo neste caso apurado o valor devido de acordo com as regras de dissolução parcial previstas no Código Civil.
- § 8º: O disposto no § 7o deste artigo não impede a transferência da titularidade do aporte para terceiros.
- §9º: A transferência da titularidade do aporte para terceiro alheio à sociedade dependerá do consentimento dos sócios, salvo estipulação contratual expressa em contrário.
Parece-nos interessante a previsão dos parágrafos 8o e 9o. Ao permitir a transferência da titularidade do aporte sem necessidade de consentimento dos sócios (por expressa estipulação contratual), cria-se a possibilidade de que os contratos de participação de investidor-anjo tenham uma característica de circulabilidade, ou seja, o detentor dos direitos previstos no contrato de participação (o investidor-anjo) pode ceder esses direitos a terceiros, inclusive a título oneroso.
Essa característica não inclui os contratos de participação entre aqueles sob a tutela regulatória da Comissão de Valores Mobiliários — CVM (órgão regulador do mercado de capitais no Brasil) nos termos da lei 6.385/76, salvo se ofertados publicamente (por exemplo, por meio de plataformas de investment-based crowdfunding)
- § 10º: O Ministério da Fazenda poderá regulamentar a tributação sobre retirada do capital investido.
A redação desse parágrafo foi imprecisa, mas nos parece claro que há referência ao resgate do capital investido, na forma prevista no artigo § 7o. A regulamentação do poder executivo deve ser direcionada para o cumprimento de uma ou mais das seguintes funções:
(i) facilitar a execução da lei — essa função diz respeito a desenvolver prescrições que possam afastar dúvidas de interpretação , criando mecanismos que possam promover a aplicação da lei com menor custo regulatório e maior segurança jurídica possível;
(ii) especificá-la de modo praticável — aqui o objetivo é especificar casos em que a lei, propositalmente ou não, deixou em aberto, sendo necessária a especificação para sua fiel execução; e
(iii) acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la — para fiscalizar e aplicar a lei, muitas vezes é necessário que o Poder Executivo desenvolva ou reacomode procedimentos e órgãos, com o objetivo de executar a lei de forma mais eficaz.
Parece-nos que a menção à regulamentação do Ministério da Fazenda visa especialmente a facilitar a execução e acomodar o aparelho administrativo para fiscalizar a tributação sobre a retirada do capital investido, especialmente por meio da Receita Federal do Brasil.
Nesse sentido, parece-nos que a menção a “retirada do capital investido” só pode ser interpretada como o “resgate do aporte”. Sendo assim, a regulamentação deveria se restringir a uma única hipótese: o resgate do valor aportado corrigido.
O valor aportado (principal), por óbvio, não pode ser tributado. A questão é como deve ser tributada a correção, pois o contrato de participação é, como falamos exaustivamente, um instituto híbrido, que não é um mútuo, e também não é uma participação societária de fato.
Se estivéssemos falando de um mútuo, a correção seria tributada como juros; se estivéssemos falando de uma participação societária, a diferença positiva entre valor aportado e valor resgatado seria ganho de capital. Ou seja, faz sentido a intervenção do MF nesse ponto, buscando harmonizar a intepretação fiscal para um novo instituto. Em nossa opinião, a natureza do contrato de participação é de tal risco e tal imprevisibilidade de retorno, não apenas pelo risco de crédito, mas também pela limitação imposta pelo parágrafo 7o do artigo 61-A, que eventual ganho auferido pelo investidor-anjo, seja no resgate, seja na alienação a terceiro, muito mais se amolda ao conceito de ganho de capital do que ao de juros em contrato de mútuo.
Art. 61-B. A emissão e a titularidade de aportes especiais não impedem a fruição do Simples Nacional.
A preocupação do legislador na redação do artigo 61-B foi deixar claro que os aportes especiais recebidos pela microempresa ou empresa de pequeno porte nos termos da LC 155 não levarão ao desenquadramento da empresa do SIMPLES. Tendo em vista que os aportes especiais não serão considerados como receitas da sociedade, de fato não faria sentido pensarmos que um aporte relevante poderia ser somado ao faturamento da empresa para fins de enquadramento no SIMPLES; da mesma forma, a lei deixou claro que a assinatura de um contato de participação de um investidor-anjo que firme o documento por meio de uma pessoa jurídica não será considerada uma hipótese de desenquadramento do SIMPLES.
Art. 61-C. Caso os sócios decidam pela venda da empresa, o investidor-anjo terá direito de preferência na aquisição, bem como direito de venda conjunta da titularidade do aporte de capital, nos mesmos termos e condições que forem ofertados aos sócios regulares.
O Art. 61-C atribui ao investidor-anjo dois institutos bem conhecidos no Direito Societário: o direito de preferência e o direito de venda conjunta. No direito de preferência, os sócios que desejarem alienar suas quotas da sociedade deverão primeiramente ofertá-las aos demais sócios e ao investidor-anjo, podendo ofertá-las a terceiros somente caso os demais sócios e o investidor-anjo não queiram adquiri-las. O direito de venda conjunta, por sua vez, confere ao investidor-anjo o direito de fazer com que seu aporte especial seja incluído na operação de alienação das quotas da sociedade a um terceiro, de modo que tal terceiro deva adquiri-lo em conjunto com as quotas da sociedade alienada pelos sócios, nos mesmos termos e condições. Vale observar, inclusive, que não há previsão legal que atribua direito de venda conjunta aos sócios de uma sociedade limitada, mas o art. 61-C o torna obrigatório em favor do investidor-anjo.
Os direitos de preferência e de venda conjunta são atribuídos ao investidor-anjo de forma geral e pouco técnica, deixando algumas lacunas legais que merecem tratamento mais aprofundado no contrato de participação. Diante disso, merecem destaque (i) a regulação, no contrato, sobre os mecanismos de funcionamento de tais direitos e (ii) como aplicar igualdade de termos e condições na aquisição do aporte especial em relação à aquisição das quotas da sociedade.
Com relação aos mecanismos de funcionamento para a venda conjunta, por exemplo, destacamos a necessidade de dispositivos que obriguem a sociedade e seus sócios de comunicarem ao investidor-anjo a existência de uma proposta de terceiro interessado, ao mesmo tempo em que os sócios e a sociedade deverão dar a tal terceiro interessado plena ciência sobre os contratos de participação em vigor com a sociedade, uma vez que os aportes especiais deverão fazer parte da operação.
Com relação à aplicação da igualdade de termos e condições na aquisição do aporte especial em relação à aquisição das quotas da sociedade, parece-nos que o mais natural seria aplicar o percentual de participação de que o investidor-anjo é titular sobre o valor total de uma oferta de terceiro ou, ainda, caso seja expressamente prevista no contrato de participação, estipular a prévia conversão dos aportes especiais em capital social da sociedade, mediante a emissão de novas quotas em favor dos investidores-anjo, as quais deverão fazer parte da operação com o terceiro interessado.
Art. 61-D. Os fundos de investimento poderão aportar capital como investidores-anjos em microempresas e empresas de pequeno porte.
Em 30/08/2016, foi publicada a Instrução CVM 578 (“ICVM 578”), que dispõe sobre a constituição, o funcionamento e a administração dos Fundos de Investimento em Participações — FIPs. Em seu Capítulo III, Seção I, é apresentada a nova classe FIP — Capital Semente, destinada a investir em pequenas e médias companhias ou sociedades limitadas (art. 15, ICVM 578). Em nossa análise, porém, não há alinhamento entre os dispositivos de tal norma e os institutos introduzidos pela LC 155 na LC 123.
Para enquadramento do FIP nos termos da ICVM 578, é preciso manter no mínimo, 90% de seu patrimônio líquido investido em determinados valores mobiliários (art. 11, ICVM 578), entre eles títulos e valores mobiliários representativos de participação em sociedades limitadas, mas eles devem conferir ao FIP poder de participação no processo decisório da sociedade investida, com efetiva influência na definição de sua política estratégica e na sua gestão (art. 5º, ICVM 578). Como o aporte especial não pode conferir ao investidor-anjo qualquer direito a gerência ou voto na administração da sociedade (art. 61-A, § 4º, I, LC 123), há vedação para investimento do FIP por meio de contrato de participação com relação a, pelo menos, 90% de seu patrimônio líquido.
Após excluído o montante destinado ao pagamento dos custos de funcionamento do FIP, haveria liberdade para investimento dos 10% restantes, mas o art. 43 da ICVM 578 apresenta vedações para determinados atos do administrador e do gestor do fundo, entre elas a aplicação de recursos na aquisição de direitos creditórios (art. 43, VI, b, ICVM 578). Conforme já tratado acima, o investimento por meio dos aportes especiais contém elementos de uma operação de crédito, de modo que nos parece que a realização de investimentos-anjo por meio de FIP não encontra espaço na ICVM 578.
Logo, entendemos ser necessária regulamentação específica da CVM acerca da possibilidade de investimento-anjo por FIP, de modo a trazer a necessária segurança aos administradores e gestores dessas entidades. Uma vez superada essa questão da autorização regulatória para esses investimentos, essa disposição pode trazer uma das mais importantes novidades regulatórias da LC 155.
Antes da LC 155, os FIPs não podiam fazer investimentos por meio de mútuos conversíveis, devendo investir via debêntures, o que muitas vezes inviabilizava o investimento de valores baixos. Ademais, a aquisição de quotas (possível após a ICVM 578) de empresas limitadas por fundos implicava, automaticamente, o desenquadramento dessas empresas do SIMPLES. Agora, os fundos podem realizar os investimentos-anjo sem esses problemas, o que pode criar todo um novo mercado para a captação de recursos pelas startups.
Considerações finais
A aprovação da LC 155 foi importante para o setor de inovação, com a introdução de regras para investimento anjo no contexto das microempresas e empresas de pequeno porte, especialmente tendo em vista seu principal objetivo: facilitar o acesso de empresas nascentes a investimentos e crédito.
Para tanto, criou-se uma forma híbrida de investimento, que mistura características de operações de crédito com institutos societários, com destaque para o mérito da iniciativa e as várias possibilidades inauguradas pelo novo diploma. Por outro lado, uma questão a ser ressaltada é a ausência de qualquer dispositivo legal para o tratamento de fraudes no contexto dos negócios entre, de um lado, o investidor-anjo e, de outro, a sociedade e seus sócios.
A generalidade dos dispositivos da lei significa, a nosso ver, uma abertura para que as partes possam acomodar mais livremente seus interesses no contrato de participação; um espaço confortável para a liberdade das partes tende a ser bem recebido e produzir bons resultados no mercado.
Com relação ao tratamento de fraudes, à primeira vista parece haver pouca abertura para que ocorram por parte do investidor-anjo contra a sociedade, mas muita abertura para fraudes da sociedade e de seus sócios contra o investidor-anjo. Desse modo, cabe ao investidor-anjo buscar a proteção pertinente de seus interesses por meio do contrato de participação e, a nosso ver, nada impede que os sócios fundadores sejam solidariamente responsabilizados pela perda do capital investido em caso de desvio de finalidade dos aportes recebidos e fraudes de qualquer natureza.
Finalmente, ressalta-se que o contrato de participação instituído pela LC 155 pode ser uma alternativa viável para modalidades de investment-based crowdfunding, e cuja possível regulamentação encontra-se atualmente em
consulta pública na CVM. Esse é um aspecto que poderia ser considerado na regulamentação dessa Comissão, especialmente pelas diversas possibilidades que a lei oferece para proteção dos investidores-anjo.