Com a chegada das eleições preparamos uma breve análise dos principais acontecimentos dos últimos dois anos em Ciência, Tecnologia e Inovação no país.
Introdução
Levando em conta a proximidade das eleições no Brasil e as recentes notícias de cortes orçamentários na área de ciência, tecnologia e inovação (“CT&I”)[1], entendemos pertinente a realização de uma análise sobre as medidas tomadas durante o mandato de Michel Temer.
A importância de investimento público no setor, além de elaboração e implementação de políticas públicas de fomento, é inegavelmente relevante para o desenvolvimento econômico e social do país, conforme discutiremos a seguir. Por este motivo, entender o cenário no qual o Brasil se encontra permite traçar novas metas para o futuro. Assim, o objetivo deste artigo é entender as principais medidas tomadas pelo governo federal e suas autarquias durante o mandato de Temer na área de CT&I demonstrando a importância da participação direta e indireta do poder público no setor.
Inicialmente, faremos uma breve exposição sobre a relevância do investimento público em CT&I, demonstrando como este deve ser aliado ao investimento realizado pelo setor privado e não substituto do outro. Depois, elencaremos os principais acontecimentos setoriais promovidos que julgamos relevantes no período. Por fim, faremos um balanço traçando um cenário geral do momento atual em termos de CT&I.
Relação entre desenvolvimento e investimento público em CT&I
Para Celso Furtado, “o desenvolvimento é invenção, pois comporta um elemento de intencionalidade” e as condições para que ocorra dão-se historicamente. O nível de desenvolvimento de um país também depende da “existência de um excedente de recursos criado pela divisão social do trabalho”. Quando tal acumulação conduz à criação de valores para diferentes segmentos da sociedade (sem ficar retido apenas para um grupo seleto) temos desenvolvimento. Resumindo, existe o processo de aprimoramento técnico para que o ser humano tenha instrumentos para criação de excedente e o momento seguinte é a utilização destes meios para melhorar a qualidade de vida da sociedade[2].
Ainda para Furtado: “Nada é mais característico da civilização industrial do que a canalização da capacidade inventiva para a criação tecnológica, ou seja, para abrir caminho ao processo de acumulação”. Com base neste raciocínio, fica claro que para a superação do subdesenvolvimento é necessário que haja investimento em pesquisa, permitindo que inovações tecnológicas auxiliem no processo de acumulação de excedente depois distribuído socialmente.[3]
A dependência tecnológica dos países periféricos em relação aos países centrais é um dos obstáculos mais difíceis de serem superados, pois “impõe a introdução de padrões de consumo sob a forma de novos produtos finais que correspondem a um grau de acumulação e de sofisticação técnica que não existem na sociedade que se moderniza tardiamente”[4]. Em outras palavras, os países periféricos que se inseriram no modelo capitalista tardiamente assumem posição predominantemente consumidora de bens de alto valor agregado (pelo intenso nível de desenvolvimento tecnológico que tais produtos representam dentro da divisão internacional), enquanto exportam bens de baixo valor agregado representando sempre um fluxo de enriquecimento para os países detentores de conhecimento tecnológico e por isso acumuladores de capital (os países conhecidos como desenvolvidos ou países centrais).
Se para Celso Furtado um dos principais desafios para a superação do subdesenvolvimento é “um maior grau de autonomia nas relações exteriores que limite o mais possível a drenagem para o exterior do excedente”, precisamos achar mecanismos de desenvolver tecnologia para manter o capital produzido pelo país dentro dele próprio, posteriormente, galgando espaço no mercado internacional como exportador de tecnologia e não mais apenas como importador. Porém, como fazer isso?
Uma das formas mais claras é via investimento em CT&I. Tal investimento pode ser realizado tanto pela iniciativa privada como pela pública e normalmente ocorre aliando ambas uma vez que cada uma exerce função distinta. A economista Mariana Mazzucato em seu Ted Talk intitulado “Government — investor, risk taker, innovator”[5] (traduzido livremente para português como: “Governo – investidor, tomador de riscos, inovador) expõe como os estereótipos negativos que os governos têm de serem rígidos e pouco eficientes acabam por prejudicar suas participações no setor de desenvolvimento de novas tecnologias propulsionando a inovação.
A capacidade do Estado de assumir riscos econômicos inerentes ao desenvolvimento de tecnologia de base (que nem sempre acaba se transformando em produto) permite que haja maior flexibilidade nas pesquisas, diferente do que ocorre algumas vezes em laboratórios de instituições privadas em que o objetivo final é necessariamente o lançamento de algum produto ou serviço. Outra maneira que o setor público e o privado se relacionam é via fomento por parte do Estado. Neste modelo o Estado investe recursos públicos em iniciativas privadas de desenvolvimento de CT&I tanto “dando” dinheiro via subvenções para incentivar o desenvolvimento em determinada área estratégica ou fornecendo recursos a juros baixíssimos diminuindo o risco econômico daquela instituição no processo de desenvolvimento de CT&I. A Financiadora de Estudos e Projetos (“Finep”) foi criada pelo governo Brasileiro precisamente com este propósito.[6]
Assumir riscos de desenvolvimento tecnológico é custoso, contudo, tem potencial transformador gerando recursos para o próprio país de diversas formas, não somente via tributação[7]. Com isso em mente, Mariana Mazzucato demonstra que apesar do Iphone ter sido inventado pela Apple, uma instituição privada, as tecnologias que fazem dele algo útil foram financiadas e inventadas pelo governo americano, como por exemplo, a internet, o GPS, microchips, a tela touchscreen entre outros.
Quando estas tecnologias estavam sendo desenvolvidas não se sabia que poderiam ter uma aplicação mercadológica, mas o fato de terem sido pesquisadas e financiadas mesmo assim garantiram avanços imensuráveis.
Importante pontuar que muitos países já empregam esforços governamentais em CT&I para criar um ciclo virtuoso de inovação e enriquecimento, enquanto outros países estão buscando colher os frutos desse esforço no futuro. Israel é um exemplo de sucesso do primeiro caso.
Desde 1984, por meio da Law of the Ecouragement of Industrial Research and Development o governo subsidiava projetos de CT&I tornando-os interessantes e potencialmente lucrativos para a iniciativa privada[8].
Posteriormente, esse programa foi continuado pela Israel Innovation Authority, que é uma autarquia do governo israelense, responsável pelas políticas e fomento de inovação e economia[9]. Os gastos em CT&I no país em 2015 representavam mais de 4% de seu PIB[10].
Por outro lado, o Quênia é exemplo de um país que está se esforçando para criar estruturas de investimento em CT&I. O país, em 2008, lançou o programa “Kenya Vision 2030” que busca industrializar o país e aumentar a qualidade de vida da população por meio de várias iniciativas[11].
Dentro desse programa, está prevista a construção da cidade de Konza até o ano de 2030. Os 15 bilhões de dólares já investidos no projeto buscam criar uma cidade que seja um polo tecnológico para startups e CT&I[12].
No mesmo sentido, segundo Soraya S. Smaili, professora e reitora da Universidade Federal de São Paulo diz que “dados recentes apresentados ao Conselho Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Consu/Unifesp) pelo presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), Marcos Cintra, revelaram que para cada unidade da moeda investida em C&T, cerca de 3 a 4 unidades da mesma moeda são geradas na forma de desenvolvimento econômico e social em qualquer país”[13]. Isso demonstra quantitativamente o potencial transformador do investimento público no setor.
Principais acontecimentos no setor de CT&I promovidos durante o período Temer
O período analisado para os propósitos deste artigo é a partir do dia 12 de maio de 2016 (quando Temer assumiu provisoriamente o cargo de Presidente da República em função do afastamento da Presidente Dilma) até a segunda semana de setembro de 2018 quando esta pesquisa foi finalizada, totalizando um período de aproximadamente 2 anos e 3 meses.
Mesmo em se tratando de um período relativamente curto, diversas medidas foram tomadas no setor. A seguir, passaremos a analisar as 7 principais medidas do governo federal na pauta de CT&I:
- Fusão do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (“MCTI”) e do Ministério das Comunicações (“MC”) um único Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (“MCTIC”)
Com a intenção de diminuir o número de ministérios um de seus primeiros atos como Presidente da República foi a fusão do MCTI e do MC em MCTIC apesar da forte resistência por parte da comunidade científica. Tal resistência pode ser vista no manifesto enviado a Temer por parte de 14 instituições do setor um dia antes dele assumir a presidência[14]. Dentre os diversos argumentos trazidos, a comunidade científica organizadora do manifesto declara:
“É grande a diferença de procedimentos, objetivos e missões desses dois ministérios. A agenda do MCTI é baseada em critérios de mérito científico e tecnológico, os programas são formatados e avaliados por comissões técnicas que têm a participação da comunidade científica e também da comunidade empresarial envolvida em atividades Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação. Essa sistemática é bem diferente da adotada pelo Ministério das Comunicações, que envolve relações políticas e práticas de gestão distantes da vida cotidiana do MCTI.”
Durante a audiência pública que discutia a possibilidade da fusão, Gilberto Kassab que depois se tornaria o ministro do MCTIC se pronunciou no seguinte sentido: “Assumo o compromisso de manter os programas do ministério e de tentar, junto com o Congresso, reverter a tendência de queda do orçamento da área”[15] apesar de defender a fusão como medida necessária para a redução do tamanho da máquina pública[16].
Após ocorrida a fusão as interpretações quanto às consequências para o país dividem opiniões. Em 28 de maio de 2018 Kassab escreveu um artigo em que expressava suas visões sobre os resultados[17] advindos da fusão uma vez que naquele mês fez dois anos da criação MCTIC. O ministro reconheceu a resistência por parte da comunidade científica, mas disse que a medida trouxe inúmeros ganhos para o setor. Em suas palavras:
“Ao fundir as áreas de Comunicações e Ciência e Tecnologia, o governo federal trouxe sinergia a áreas que são conexas no século 21, são áreas da gestão pública que se inter-relacionam. (…) De um modo geral, áreas como Tecnologias da Informação e Comunicação, agora, são tratadas de forma mais próxima, resultando em maior eficiência na execução e planejamento de ações. Como exemplo é muito mais funcional, hoje, a interlocução dos setores de telecomunicações e pesquisa e inovação no âmbito governamental, fruto direto dessa fusão.”
Contudo, representantes da comunidade científica tendem a discordar deste entendimento. Os presidentes da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (“SBPC”), Ildeu de Castro Moreira, e da Academia Brasileira de Ciências (“ABC”), Luiz Davidovich continuam alertando para os perigos da fusão. Davidovich diz:
“Em primeiro lugar, eu reconheço os esforços do ministro em procurar aumentar o orçamento do seu Ministério, beneficiando, assim, a ciência do Brasil. Por outro lado, desde o início nós fomos contra essa restruturação que juntou o Ministério da CT&I com o das Comunicações. E continuamos achando que essa junção não ajuda o sistema. Por exemplo, não consigo ver a conexão entre a Empresa de Correios e Telégrafos e o CNPQ e a Finep. É preciso ressaltar, também, que esses órgãos, que antes tinham uma posição de destaque dentro do Ministério, baixaram nessa hierarquia. Um grande número de organizações passou a fazer parte do MCTIC, o que prejudica a atividade da Pasta em defesa da ciência e tecnologia”[18].
A “Carta de Pernambuco”, publicada no dia 21 de maio resultado do ciclo de seminários “Políticas públicas para o Brasil que queremos” realizada pela SBPC apresentou 12 propostas para políticas de CT&I no Brasil. Estas propostas que serão levadas aos candidatos presidenciáveis têm entre elas,” a recriação do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação inteiramente destinado a esta área”. Portanto, a resistência da comunidade científica a esta fusão continua.[19]
- Cortes orçamentários
O corte orçamentário no setor de CT&I provavelmente representa um dos principais pontos em discussão do setor no momento. Com a Emenda Constitucional 95, aprovada em 2016 os gastos públicos federais foram congelados por 20 anos com o objetivo de evitar que cresçam mais que a inflação, sendo popularmente chamada de “teto dos gastos”. Contudo, a emenda que entrou em vigor em 2017 congelou gastos inclusive de setores fundamentais como CT&I e educação.
Além do fato dos recursos disponíveis atualmente para o MCTIC serem significativamente menores do que no passado, a pasta hoje em dia inclui o setor de comunicação o que torna os recursos disponíveis ainda mais escassos por terem que ser divididos com outra pauta.
Segundo Elton Zacarias, secretário executivo da pasta:
“O ministério vem sofrendo restrições orçamentárias bastante grandes e a perspectiva é que a situação piore em função do teto de gastos. Em 2015 tínhamos um orçamento em torno de R$ 9 bilhões para custeio e investimento. Em 2018 temos um orçamento de R$ 3,9 bilhões, valor que já sofreu um contingenciamento de 14%. Temos menos de 50% do orçamento de cinco anos atrás e com perspectiva de piorar cada vez mais.”[20]
O presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (“CNPq”) Mário Borges, também comentou sobre os cortes e como afetam o Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (“FNDCT”). “O FNDCT tem tido contingenciamentos bastante expressivos. Da arrecadação de R$ 4,5 bilhões neste ano, teremos menos de R$ 1 bi para trabalhar, o que inclui também o disponível para a Finep. Precisamos de gente e de recursos para trabalhar.”
Portanto, estes cortes não afetam apenas a capacidade de funcionamento do MCTIC e das instituições que dependem de seus repasses como refletem na disponibilidade de recursos para investimento no setor, uma vez que o FNDCT, por exemplo, é uma das principais fontes de recursos da Finep que é a principal instituição pública do país para fomento em CT&I tanto em relação à iniciativa pública (via recursos não reembolsáveis) como privada (via recursos reembolsáveis).
- Regulamentação sobre investimento anjo
Como resultado da pressão exercida pelo mercado foi promulgada a Lei Complementar n. 155, de 27 de outubro de 2016 (“LC 155/16”) que além de outros assuntos, tratou sobre investimento anjo. Uma das modificações estabelecidas pela lei foi a respeito da tributação das operações e por isso, um ano depois foi expedida a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil n. 1719 de 2017 (“IN RFB nº 1719/2017”) visando regulamentar o assunto.
A LC 155/16 surgiu inicialmente com o intuito de alterar a Lei Complementar n. 23, de 14 de dezembro de 2006, visando reorganizar e simplificar a metodologia de apuração do imposto devido por optantes pelo Simples Nacional. A possibilidade de enquadramento no Simples é de extrema importância para a maior parte das empresas nascentes no país. Portanto, esta lei é relevante, dentre outros motivos, por atualizar o limite anual de renda bruta para enquadramento de empresas no Simples Nacional, permitindo que mais delas sejam beneficiadas, sem que o investimento-anjo afete a possibilidade de enquadramento.[21]
Além das alterações ao Simples Nacional, os Artigos 61 A, B, C, D da lei trouxeram
inovações específicas para o mercado de investimento anjo, com o objetivo explícito de fomentar esta atividade no país[22]. Assim, a lei regulamenta o setor por meio da criação de um instrumento jurídico chamado “Contrato de Participação” que prevê a diminuição de riscos jurídicos para a atividade, tornando-a mais atrativa e com isso atraindo capital privado para ser aportado em CT&I em empresas nascentes.[23]
Estes artigos específicos da LC 155/16 preveem, por exemplo, o status de “não sócio” do investidor anjo defendendo o capital deste de riscos societários ligados a desconsideração da personalidade jurídica da empresa investida além de criar padrão para remuneração do investidor anjo, entre outras inovações, conforme detalhamos em nosso artigo específico sobre o tema.[24]
A IN RFB n. 1.719/2017 publicada no Diário Oficial da União em 21 de julho de 2017, foi prevista pelo § 10 do artigo 61-A da LC 155/16, que determina regulamentação por parte do Ministério da Fazenda sobre a tributação dos rendimentos do investimento via contrato de participação. Em outras palavras, a lei aguardava a regulamentação sobre a tributação incidente sobre o retorno financeiro do investidor anjo.
Assim, conforme o artigo 5° da instrução normativa, “os rendimentos decorrentes
de aportes de capital efetuados na forma prevista nesta Instrução Normativa sujeitam-se à incidência do imposto sobre a renda retido na fonte” e suas alíquotas variam de acordo com o tempo que o capital ficou investido, de forma que o imposto diminui ao longo do tempo. A alíquota varia de 22,5% (vinte e dois inteiros e cinco décimos porcento), em contratos de participação com prazo de até 180 (cento e oitenta) dias a 15% (quinze por cento), em contratos de participação com prazo superior a 720 (setecentos e vinte) dias.
A opinião de muitos agentes deste mercado é de que a regulamentação feita pela Receita Federal acabou por inviabilizar a realização dos contratos de participação pela alta tributação, fazendo com que os investidores anjo optassem por continuar utilizando outros instrumentos jurídicos, como ocorria antes da lei. Alguns dos contratos que voltaram a ser utilizados são mútuos conversíveis em participação societária, opção de compra entre outros.
- Promulgação do Decreto n. 9.283/2018 e seu impacto no Novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação
Existe um conjunto de normas que estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica no ambiente produtivo, visando a capacitação tecnológica para promoção de autonomia e desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. Esse conjunto é composto pelo Novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, Lei n. 13.243, de 11 de janeiro de 2016 (“Lei 13.243/16”) e pela lei n. 10.973, de 2 de dezembro de 2004 (“Lei 10.973/04”). Ambas foram recentemente regulamentadas pelo Decreto n. 9.283, de 07 de fevereiro de 2018 (“Decreto 9.283/18”)[25] que revogou inteiramente o decreto anterior nessa matéria (Decreto n. 5.563, de 11 de outubro de 2005).
Como as Leis 10.973/04 e 13.243/16 foram promulgadas ainda no governo Dilma, nos deteremos a analisar brevemente o Decreto 9.283/18 que foi promulgado durante o período Temer. Trata-se de uma norma bastante longa com 84 artigos trazendo definições específicas para os agentes do setor, definindo poderes, garantindo maior autonomia e possibilitando parcerias entre agentes de naturezas distintas sempre visando o fomento de CT&I no Brasil.
O Decreto 9.283/18 foi bem recebido, principalmente porque as normas que ele revogou e substituiu eram amplas e provocavam dúvidas quanto às suas aplicações. Isso dificultava operações de agentes interessados no desenvolvimento do setor em função de insegurança jurídica.
Eduardo Altomare Ariente e Daniel de Oliveira Babinski em texto publicado no Conjur[26] enumeraram os principais avanços trazidos pelo Decreto como sendo:
”(a) introdução de novas regras e procedimentos para a formalização de instrumentos jurídicos de investimentos, parcerias e transferências de tecnologias entre os atores públicos e privados; (b) novas regras para a concessão de recursos de subvenções econômicas; (c) regulamentação do bônus tecnológico, forma de subvencionar microempresas e a empresas de pequeno e médio porte, para o pagamento de compartilhamento, uso de infraestrutura de pesquisa e desenvolvimento tecnológicos e pagamento pela transferência de tecnologia; (d) regulamentação das encomendas tecnológicas, modalidades de contratação, pelo poder público, de instituição de pesquisa sem fins lucrativos, com dispensa de licitação, para atividades de inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador; (e) criação de procedimentos específicos e simplificados de prestação de contas, com prioridade aos resultados obtidos; (f) facilitação do remanejamento de recursos dentro de projetos de CT&I; (g) prioridade no desembaraço aduaneiro de bens, insumos, matérias-primas, máquinas, equipamentos, aparelhos e instrumentos, peças de reposição e acessórios; (h) incentivos à internacionalização das ICTs públicas; e (i) isenção do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e II (Imposto de Importação) eventualmente incidentes na execução de projetos de CT&I desenvolvidas por empresas.”
Além destas modificações trazidas pela norma, faz-se importante enfatizar uma outra vitória para o setor. A possibilidade das entidades de serviços sociais autônomos (as instituições do chamado “sistema S”) poderem adquirir participação societária em empresas como forma de fomentar o setor. Este entendimento é possível porque o artigo 78 do Decreto 9.283/18 equiparou os serviços sociais autônomos a agências de fomento de natureza privada, autorizando-os a realizar algumas atividades previstas na Lei 10.973/04: “Art. 78. As agências de fomento de natureza privada, incluídos os serviços sociais autônomos, por suas competências próprias, poderão executar as atividades a que se referem o art. 3º, o art. 3º-B, o art. 3º-D e o art. 19 da Lei nº 10.973, de 2004.”
Conforme explicamos em nosso artigo específico sobre o tema[27]:
“Em razão do que foi estabelecido pelo artigo 78, entendemos que os dispositivos que mencionarem as agências de fomento no Decreto n. 9.283/18 serão, consequentemente, aplicáveis às entidades de serviços sociais autônomos, ampliando as suas possibilidades de investimento em empresas. O artigo menciona que essas atividades podem ser executadas pelas ‘competências próprias’ das entidades, o que indica a importância de que as atividades realizadas estejam de acordo com o estatuto social da entidade, sem qualquer conflito com seu objeto social.
O artigo 19 da Lei n. 10.973/04 é o dispositivo que de fato autoriza a compra direta de participação societária (expressamente, em seu parágrafo 2º, inciso III), além de estipular as formas em que deve ocorrer. O caput estabelece que as entidades aplicáveis ‘promoverão e incentivarão a pesquisa e o desenvolvimento de produtos, serviços e processos inovadores em empresas brasileiras e em entidades brasileiras de direito privado sem fins lucrativos, mediante a concessão de recursos financeiros, humanos, materiais ou de infraestrutura a serem ajustados em instrumentos específicos e destinados a apoiar atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação, para atender às prioridades das políticas industrial e tecnológica nacional.’ Outro ponto importante, portanto, é que as empresas ou entidades apoiadas devem ser brasileiras.”
Apesar de ser cedo para fazer avaliações do impacto desta norma no setor, muitos juristas veem as modificações por ela trazidas com bons olhos.
- Contrato de empréstimo entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento e Finep para investimento em CT&I
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (“BID”)[28] e a Finep[29] firmaram um contrato de US$ 600 milhões para financiar projetos de inovação no país no dia 1º de agosto de 2018. O ministro Gilberto Kassab declarou que este valor corresponde à primeira parcela de uma linha de crédito de US$ 1,5 bilhão. Apesar do contrato ter sido firmado com a Finep, a União é a avalista do financiamento. Além da primeira parcela disponibilizada pelo BID o programa contará com uma contrapartida de US$ 103,6 milhões de recursos próprios da Finep, somando um total de US$ 703,6 milhões apenas na primeira fase.[30]
Segundo a Finep: “O programa procura enfrentar desafios importantes como a escassez de investimentos privados em inovação, a baixa complexidade da estrutura produtiva e a insuficiência de dinamismo empreendedor. Além disso, pretende ampliar o financiamento para a inovação em setores estratégicos priorizados pela Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.” [31]
Ainda segundo a empresa o programa inclui quatro componentes principais:
“O primeiro é o apoio à inovação em sete setores estratégicos prioritários: indústria química, mineração e transformação mineral, biocombustíveis avançados, agroindústria, alimentos e bebidas, tecnologias de informação e comunicação, saúde e metalurgia. Serão financiados projetos de inovação por meio de recursos reembolsáveis e não reembolsáveis para empresas e recursos não reembolsáveis para instituições científicas e tecnológicas.
A segunda linha de apoio busca promover a modernização de micro, pequenas e médias empresas com potencial inovador pela adoção de tecnologias. Os projetos serão apresentados em um sistema de “janela aberta” e serão financiados pela Finep de forma indireta através de bancos de desenvolvimento e agências autorizadas em nível regional e estadual.
O terceiro componente vai apoiar o crescimento de empreendimentos inovadores de base tecnológica, financiando suas necessidades em etapas precoces para ajudá-los a cruzar o conhecido “vale da morte” e avançar para as fases finais de desenvolvimento de produtos, de introdução no mercado e/ou de ampliação da escala produtiva. Por fim, o quarto componente financiará iniciativas experimentais de inovação aberta e estudos de prospecção e roadmapping tecnológicos em setores prioritários, bem como o fortalecimento das capacidades institucionais da Finep para a difusão do conhecimento e a avaliação do impacto de suas intervenções.”[32]
- Regulamentação de equity crowdfunding pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”)
Em maio de 2017 a CVM publicou a instrução CVM nº 588, regulando o investment-based crowdfundig. A normativa permite que plataformas na internet aproximem negócios nascentes, startups, de investidores interessados e regula essa tripla relação.
Esse tipo de investimento é bem popular ao redor do mundo e é um instrumento de incentivo à inovação por investimento privado. Estudos apontam que esse tipo de investimento, em 2015, movimentou 139 bilhões de dólares pelo mundo[33].
Em trabalhos anteriores desenvolvemos roteiros específicos para cada participante desse tipo de crowdfunding:
- Roteiro “Quero ser uma plataforma de crowdfunding”;
- Roteiro “Quero fazer uma captação via crowdfunding”; ou
- Roteiro “Quero investir via crowdfunding”.
Por fim, apesar dessa medida ter sido recebida com otimismo pelo mercado, a instrução ainda é muito nova para produzir dados que comprovem o seu sucesso. Portanto, trata-se de uma medida regulatória por parte do Estado para favorecer o investimento privado.
- Facilitação de investimento por fundos em empresas nascentes pela CVM
A Instrução CVM 578, de agosto de 2016, promoveu diversas modificações no funcionamento de Fundos de Investimento em Participações (“FIP”). Dentre as alterações está a criação de categorias de FIP, em especial o de Capital Semente e o de Empresas Emergentes que facilitam o investimento em startups.
O FIP Capital Semente autoriza, inclusive, investimento em sociedades limitadas com receita bruta anual de no máximo R$16 milhões. Antes destas alterações apenas sociedades anônimas (abertas e fechadas) poderiam receber os recursos do FIP.
Já os FIPs Empresas Emergentes são voltados para investimentos em sociedades em um estágio mais avançado em relação ao FIP Capital Semente, podendo investir em sociedades limitadas com receita bruta anual superior a R$240 milhões e no máximo R$300 milhões.
Assim, a CVM apresenta mais um instrumento que pode incentivar a CT&I por meio de investimentos privados. Uma semelhança com o caso da CVM 588 é a insuficiência de dados para medir o seu sucesso em função de seu curto período de funcionamento.
Conclusão
Apesar de muitas mudanças terem acontecido em pouco tempo, não é possível afirmar que CT&I foi uma prioridade no período Temer. Os avanços promovidos pela regulamentação do investimento anjo e pelo Decreto 9.283/2018 são inegáveis, contudo, a maioria das ações se deu com a retirada de capital público do setor o que faz parecer que as outras medidas foram alternativas para evitar as consequências do brusco corte orçamentário. Medidas como o Decreto e o empréstimo com o BID reforçam este entendimento, contudo, especialistas alertam para os graves riscos que isso pode gerar para o futuro, uma vez que muitas pesquisas iniciadas hoje só trarão resultados em uma década ou mais.
Conforme mencionamos, a mera substituição de investimento público por privado não é uma alternativa saudável se considerarmos que cada um deles exerce um papel diferente. As bolsas para pesquisadores, os recursos para manutenção de laboratórios públicos e as parcelas para pesquisas em andamento precisam ser continuadas e o sucateamento do setor ou a tentativa de substituí-lo por um modelo totalmente privado pode resultar em consequências negativas.
As expectativas estão altas sobre a sequência das boas iniciativas de regulamentação que aconteceram, contudo, apesar dos cortes orçamentários para o setor. Dessa forma, dialogando com as entidades que continuam a pressionar pelo retorno da forma original dos Ministérios, construindo soluções de maneira democrática e visando o desenvolvimento econômico e social do país.