Baptista Luz

15/05/2020 Leitura de 12’’

Compliance Ambiental e os impactos da decisão do STF sobre imprescritibilidade da reparação civil de dano ambiental

15/05/2020
  • 12’’

Recentíssima decisão do STF

Em 17/04/2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário 654.833, com Repercussão Geral reconhecida, fixando a tese de que “é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental”.

Com isto, o STF tornou pacífico, em sede de repercussão geral, que a responsabilidade civil por danos ao meio ambiente não prescreve. O que significa dizer que não há prazo para propor ação para buscar a reparação civil de danos ambientais. No que diz respeito ao julgamento em sede de repercussão geral, significa que a decisão do STF deve ser multiplicada para todos os processos iguais.

Importante notar que o julgamento trata apenas da responsabilidade civil ambiental (reparação de danos) e o acórdão ainda não foi publicado até a data da publicação deste artigo. Outros pontos podem se tornar oportunos a partir da publicação da sua íntegra, ou mesmo após provocação por esclarecimentos, por via de embargos de declaração.

 

Para ilustrar

O caso julgado pelo STF tem por base extração madeireira ilegal realizada entre os anos de 1981 e 1987, em terras indígenas. A Ação Civil Pública (ACP) só foi proposta em 1996. O Tribunal Regional Federa da 1ª Região (TRF1) julgou a apelação do caso em 2007. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou-o em 2009 e o STF, agora em 2020, confirmou o entendimento do STJ, explicado a seguir.

 

Premissas importantes antes de se adentrar ao gerenciamento de riscos, na prática

Busca-se, por meio deste material, analisar as concretas repercussões da decisão do STF para, ao final, discorrer sobre programas de compliance ambiental. Mas, antes, destaca-se algumas  alegações que comumente são formuladas quando o assunto é a reparação civil de dano ambiental, a saber: (i)a intervenção irregular no meio ambiente foi há muito muito tempo, já tenho direito adquirido…”; (ii)não foi a minha empresa que poluiu, apenas contratamos um terceiro para transportar o lixo, esse terceiro que fez a disposição em local inadequado, não sabíamos que ele não tinha licença”; ou (iii)minha empresa não causou degradação, ela apenas comprou produtos (florestais, minerais, de origem vegetal ou animal) do suposto infrator. Ele que é o responsável, ele que devia se preocupar em ostentar as licenças e autorizações necessárias!”?

No que diz respeito à discussão sobre (i) direito adquirido, o STJ tem posicionamento firme no sentido de que o meio ambiente é um bem jurídico indisponível e fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer (p. ex.: REsp 1.120.117/AC). Os autores que escrevem sobre o tema também sublinham que “a consciência jurídica indica que não existe o direito adquirido de degradar a natureza”. Portanto, sendo “imprescritível a pretensão reparatória de caráter coletivo, em matéria ambiental. Afinal, não se pode formar direito adquirido de poluir, já que o meio ambiente é patrimônio não só das gerações atuais, como das futuras”[1].

Quanto aos itens (ii) e (iii), mencionados acima como exemplos, necessário ter claro que a responsabilidade civil ambiental é objetiva, e dentre seus pressupostos estão, basicamente, a existência de (a) empreendimento ou atividade de risco para o meio ambiente e saúde; (b) dano ou risco, potencial ou efetivo; e (c) o nexo de causalidade entre o empreendimento ou atividade e o resultado lesivo ao meio ambiente.

O STJ tem posicionamento sólido indicando que “Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa fazer, quem não se importa que façam, quem financia para que façam, e quem se beneficia quando outros fazem” (REsp 650728/SC, DJe 02/12/2009).

Meu principal fornecedor que está explorando área embargada, não tenho nada a ver com isso”. Será? Ou, nesta hipótese, o locutor está se beneficiando quando outros causam degradação/poluição ambiental em seu favor, quiçá sem se importar que o façam?

O STJ teve a oportunidade de decidir que o fato de terceiro como excludente de responsabilidade civil tem aplicação restrita no âmbito ambiental, só podendo ser reconhecida quando o ato do terceiro for totalmente alheio à atividade desenvolvida pelo acusado de poluição, não podendo se atribuir a este último qualquer participação no dano (REsp 1381211/TO, DJe 19/09/2014).

 

Impactos na área de compliance ambiental (programas de conformidade ambiental)

Os pontos mencionados acima transmitem a real importância de se aprimorar o Programa de Integridade (Programa de Compliance/Conformidade) existente para englobar o gerenciamento dos riscos ambientais do negócio, dos parceiros de negócio, fornecedores e prestadores de serviços, ou mesmo para criar um Programa de Compliance Ambiental isolado. Tal ação tem ainda mais importância para as empresas que exploram atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente.

A tese fixada pelo STF é muito clara: há um risco significativo a ser gerenciado – imagine o valor para recuperar uma área poluída, por exemplo, a partir de descarte inadequado de resíduos sólidos.

 

O que fazer

A metodologia de um programa comum de compliance pode ser utilizada como base, a saber:

  • a alta direção deve comungar do interesse pela conformidade, neste caso ambiental;
  • as atribuições dos principais atores devem ser definidas, com autonomia e recursos apropriados para desempenhar suas funções dentro do Programa de Integridade;
  • proceder com avaliação interna de risco (risk assessment) fundado em abordagem de risco (risk-based approach). Deve-se conhecer profundamente os produtos, serviços, necessidades e fatores internos e externos relacionados ao gerenciamento ambiental, com priorização das áreas vulneráveis, a partir de maior alocação de controles e de recursos onde há maiores riscos;
  • plano de implementação, para: (a) preencher eventuais lacunas ou deficiências encontradas; (b)estabelecer processos internos visando a manutenção da conformidade de obrigações ambientais; (c)conferir a integridade de terceiros por meio de auditoria de integridade (metodologia similar à de background check); (d) auditar terceiros antes do início de prestação de serviços ambientais, tanto juridicamente, em face de licenças e autorizações ambientais e regulatórias com relação ao meio ambiente (p. ex.: autorização de lavra), como para definir a inexistência de utilização de áreas embargadas etc., como também para conferir in loco a conformidade dos processos ambientais, gerando valor à cadeia; (e) traçar estratégia de acompanhamento da validade e conformidade; (f) aprimorar minutas contratuais para fazer frente aos novos desafios de ausência de prazo para proposição de ação para reparação civil de dano ambiental; (g) criar ou aprimorar políticas de contratação de terceiros; (h)estabelecer medidas disciplinares em caso de violação ao programa de conformidade; (i) criar arquivo por tempo indefinido, dada a imprescritibilidade mencionada, dentre outras adequações necessárias em regras, procedimentos e controles internos de forma contínua;
  • treinamentos periódicos e comunicações; e
  • plano de monitoramento e aprimoramento contínuo.

Não é tão simples, vale sublinhar. E cada caso tem suas peculiaridades.

 

Multidisciplinariedade – outras áreas afetadas

Não é só a área de Compliance Ambiental que sofreu impactos. Como toda estrutura multidisciplinar, vale citar alguns exemplos de áreas impactadas:

  • M&A: necessário não apenas dar atenção às questões ambientais, dado o passivo que pode advir de eventual negligência, como também negociar o prazo de eventual indenização decorrente de reparação civil de danos ambientais;
  • Seguros e Resseguros: espera-se que, com isto, o mercado comece a discutir cada vez mais o seguro ambiental. Este, como o nome bem estabelece, se trata de um recurso voltado à proteção de interessados em relação a possíveis danos ambientais capazes de promover prejuízos ao segurado ou a terceiros. Como premissa, é necessário que o interessado esteja em dia com todas as licenças ambientais. Ademais, as seguradoras costumam considerar as políticas e as medidas de prevenção e segurança adotadas pelo interessado em prol do meio ambiente, e o risco potencial de suas atividades – maior controle em prevenção, potencialmente menor o valor do prêmio;
  • Mercado Financeiro e de Capitais e Project financing: dependerá de maior rigor a auditoria voltada à eventual emissão de títulos de empreendimentos, empresas ou atividades potencialmente poluidoras, ou mesmo ou financiamento destes. A emissão de green bonds/títulos verdes, por sua natureza, também serão impactados com a recente decisão em suas auditorias de conformidade;
  • Contratos: em linha com o quanto mencionado em M&A, a área de contratos é impactada ao ter que refletir e negociar obrigações voltadas à conformidade ambiental, além de prazo de indenização, consideradas as obrigações das partes; e
  • Contencioso: eventuais reparações civis decorrentes de danos ambientais necessitam de reflexão, inclusive quanto à sua origem. Os danos provenientes de relações sem base contratual presumidamente ocasionarão a judicialização de pedidos de reparação. Desastres ambientais, a título de exemplo, serão questionados por inegáveis anos.

 

Perspectivas a curto e longo prazo

O compliance ambiental, fundado na adoção de práticas internas de cumprimento da legislação e prevenção de ações lesivas ao meio ambiente, já decorre da teoria do risco em se produzir, induzir, concorrer, omitir, permitir e ser beneficiado por eventual dano ambiental, como mencionado no julgado acima, do STJ (REsp 650728/SC, DJe 02/12/2009), conjugado com a Constituição Federal (art. 225, § 3º) e a Política Nacional de Meio Ambiente (art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81).

No entanto, há inegável omissão de alguns atores nacionais. As tragédias de Mariana e Brumadinho grifaram tal fato. Tanto que, fundado no último desastre, o saudoso Prof. Luís Flávio Gomes, enquanto representante eleito de São Paulo na Câmara dos Deputados, apresentou o Projeto de Lei n. 5.442/2019 para o fim de regulamentar os programas de conformidade ambiental em empresas públicas e privadas que exploram atividade econômica potencialmente lesiva ao meio ambiente. Originalmente, a proposta não prevê a obrigatoriedade da implementação de programas de compliance ambiental, porém, cria incentivos para a sua adoção, valendo destacar os seguintes:

  • Atenuante: existência de Programa de Conformidade como atenuante de eventuais penalidades criminais e administrativas impostas com base na legislação ambiental;
  • Proibição de fomento estatal: apenas para as empresas que não detenham programa de conformidade, como, por exemplo, proibição de subvenções econômicas, financiamentos recebidos de estabelecimentos oficiais públicos de crédito, incentivos fiscais e doações; e
  • Proibição de contratação com o Poder Público: a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não poderão contratar empresas que não possuam programa de compliance ambiental quando se tratar de obra, serviço ou concessão com valor superior a R$ 10 milhões, e parceria público-privada.

Considerando que tal projeto tramita pelo rito ordinário dentro da Câmara dos Deputados, que o atual cenário econômico e político não é favorável à criação de novas obrigações a ponto de onerar empresas, e que o enforcement da lei ambiental não vem sendo fomentado, aplicado e cobrado, tem-se que a curto prazo os impactos citados acima tendem a não ser exigidos dos diversos atores de controle, preventivo ou repressivo (Ministério Público, agências ambientais e sociedade civil, p. ex.), principalmente por fatores alheios à suas vontades, como falta de estrutura física, tecnológica e orçamentária para fiscalização e comprovação.

No entanto, a médio e longo prazo, ainda mais pós Covid-19, presume-se e espera-se que o mundo exija novos cuidados com o meio ambiente. O próprio acordo União Europeia – Mercosul possui capítulo específico sobre desenvolvimento sustentável, atrelando o comércio às regras ambientais, o que nos faz acreditar que, se efetivado após votação pelas respectivas instâncias políticas, tende a exigir do governo nacional maior discussão com atores internacionais e enforcement das regras ambientais.

Dependendo dos resultados que se originarem da decisão do STF, o próprio mercado demandará a exigência de conformidade com as leis ambientais. Tal qual ocorreu com as melhores práticas anticorrupção e antissuborno, a responsabilidade objetiva tem força para imprimir o controle privado sobre a regularidade ambiental. Como toda metodologia de compliance, todavia, isto dependerá principalmente da Alta Direção das principais empresas nacionais (tone at the top).

A recente decisão do STF vem realçar uma preocupação que já existia no meio ambiental. Cabe ao mercado respondê-la à altura, criando valor à sua cadeia produtiva e, por consequência, ao Brasil no cenário internacional.

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NOTAS E REFERÊNCIAS:

Notas

[1] (MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos direitos difusos em juízo. São Paulo: Saraiva, 2006)

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