Como tornar o ambiente de trabalho mais inclusivo e acessível para profissionais com deficiência física?
A inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho e na educação é um tema que está constantemente em evidência, seja no campo político ou no econômico. Apesar do contato frequente com o debate, nem sempre estamos suficientemente informados sobre os direitos assegurados por lei às pessoas com deficiência e podemos, até mesmo, ter dificuldade em conceituar “deficiência”. O objetivo do quinto artigo da série “Semeando Diversidade” é traçar um breve panorama das legislações brasileiras que dizem respeito às pessoas com deficiência e à sua efetiva integração ao mercado de trabalho, além das implicações que o descumprimento pode acarretar.
Como tratamos nos artigos anteriores, a adoção de políticas de inclusão logo no início da atividade de uma empresa contribui para que essas políticas sejam interiorizadas e institucionalizadas com maior facilidade, de forma a evitar que a aderência a pautas de equidade seja apenas uma roupagem para atrair o público. Quando há real comprometimento com o oferecimento de um ambiente diverso, isso se reflete tanto nos resultados quanto no engajamento dos próprios colaboradores, uma vez que há identificação entre eles e os valores da empresa da qual fazem parte[1].
Nesse sentido, como criar um ambiente apropriado para a integração efetiva de colaboradores com deficiência? Como garantir que terão as mesmas oportunidades de desenvolver seus talentos e funções que os demais colaboradores, independente do gênero, orientação sexual, raça, religião ou condição física?
Legislação brasileira e tratados internacionais
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência[2], da Organização das Nações Unidas, foi recepcionada pela legislação brasileira no ano de 2008 servindo como guia para a aprovação, em 2015, do Estatuto da Pessoa com Deficiência[3]. Esses dois diplomas formam a base do arcabouço jurídico que tutela os direitos e proteções legais voltadas às pessoas com deficiência, que, segundo o Censo de 2010 realizado pelo IBGE, representa 23,9%[4] da população brasileira.
Mas como essas previsões legais impactam a realidade de empresas e startups?
Tanto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência quanto no Estatuto da Pessoa com Deficiência são dispostas regras a serem observadas pelos empregadores para transformar o ambiente de trabalho em um espaço adequado e inclusivo. Para começarmos a tratar do tema de maneira mais detalhada, é necessário compreender como essa legislação conceitua “pessoa com deficiência” e “deficiência”:
“Art. 2o Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.” [5];
“Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas,” [6]
A partir desses conceitos é possível analisar com maior clareza as implicações da contratação (ou da não contratação) de deficientes, bem como a necessidade da adaptação razoável, um dever do empregador que trataremos mais adiante.
A Lei de Cotas[7] já estabelecia, desde 1991, a obrigatoriedade de empresas com mais de 100 funcionários contratarem uma porcentagem equivalente de funcionários com deficiência:
- até 200 empregados…………………………………………….2%;
- de 201 a 500……………………………………………………..3%;
- de 501 a 1.000……………………………………………………4%;
- de 1.001 em diante………………………………………………5%.
O Ministério Público do Trabalho é responsável por fiscalizar o cumprimento dessa previsão legal, podendo aplicar multas a quem descumpri-la.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência incluiu nessa lista as empresas que possuem entre 50 a 99 empregados, que passam a ter de contratar uma pessoa com deficiência. Apesar de muitas empresas em estágio nascente ainda não possuírem esta quantidade de empregados é importante terem esta regra em mente para quando crescerem. Ademais, a lei em questão é clara quanto à necessidade de o cálculo ser feito a partir do número de empregados, ou seja, de quem está registrado e tem Carteira de Trabalho e Previdência Social assinada, não podendo entrar para essa conta, por exemplo, funcionários terceirizados ou estagiários.
Um argumento recorrente para o enfrentamento desse dispositivo legal é que não há deficientes com qualificação acadêmica e profissional suficientes para o preenchimento essas vagas. No entanto, o levantamento de dados realizado pelo Censo de 2010 concluiu que o hiato entre brasileiros não deficientes e brasileiros deficientes com ensino superior completo é de apenas 3.7%[8].
Além da obrigatoriedade de inclusão de deficientes no corpo da empresa, as leis indicam, também, medidas físicas e comportamentais que devem ser adotadas para que o ambiente se torne adequado e receptivo. É nesse ponto que se impõe o princípio da adaptação razoável, que consiste nas modificações e ajustes necessários que não acarretam em ônus desproporcional e que têm como objetivo assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. Aplicado à realidade do mercado de trabalho, esse princípio resulta, por exemplo, na necessidade de o espaço físico contar com banheiros para deficientes, escadas e rampas com corrimões duplos e mesas adaptadas para cadeirantes, construídos de acordo com as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (“ABNT”).
Ainda, outras iniciativas não previstas em lei se mostram importantes para a concretização da acessibilidade: disponibilidade de intérpretes de LIBRAS, rotas internas e externas acessíveis, sinalização em braile, entre outras. A jurisprudência brasileira entende como incumbência do empregador garantir tais adaptações para que o profissional com deficiência possa desenvolver suas funções em paridade com os colegas não deficientes, imbuindo a ele não o dever de cumprir com o art. 93 da Lei de Cotas, mas também de garantir que os colaboradores recrutados por esse dispositivo permanecerão em seus cargos com qualidade.[9]
Discriminação e assédio moral no ambiente de trabalho
A discriminação é um tema que não pode ser ignorado no debate sobre inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
A Lei Brasileira de Inclusão[10] considera discriminação toda forma de restrição, distinção ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha por objetivo ou efeito impedir ou anular o reconhecimento das liberdades e direitos de pessoas com deficiência. No item anterior falamos sobre o conceito de adaptação razoável, cuja negativa consiste, também, em uma forma de discriminação.
Pessoas com deficiência têm plena capacidade civil. Isso significa que estão completamente aptas a realizar, sozinhas, atividades comuns do dia-a-dia, como emitir a Carteira de Trabalho e Previdência Social, assinar contratos, representar pessoas jurídicas etc. Além desses direitos ligados ao universo trabalhista, a plena capacidade civil resguarda os direitos sexuais e reprodutivos dessa população, assegurando que possam exercer, por exemplo, o direito à família e ao acesso a informações adequadas sobre planejamento familiar.
A ofensa reiterada da dignidade de qualquer funcionário, infligindo a ele dano físico ou mental, consiste em assédio moral. Insultos, constrangimentos, exposição ao ridículo e toda prática que viole a intimidade e a privacidade dos funcionários com deficiência, em função de sua condição física ou mental, se reiterada pode ser assim enquadrada, ensejando, pelos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil Brasileiro, dano moral. A jurisprudência confirma esse entendimento, considerando que a discriminação contra deficientes físicos fere o princípio da igualdade, devendo ser erradicada para que haja plena garantia da cidadania, infligindo dano moral ao empregador discriminador com finalidade educativa, de forma que a postura ilícita não se repita e seja desencorajada[11]. Ainda, entende que a discriminação desrespeita os direitos da personalidade e viola o princípio da dignidade humana por causar sofrimento, vexame, humilhação e constrangimentos a uma parcela da sociedade que a legislação tem se empenhado em garantir integração à sociedade através do trabalho[12].
Além dos danos morais, a Lei Brasileira de Inclusão prevê penalidades para infrações administrativas e criminais a seus dispositivos. Dentre elas, há a previsão de pena de até cinco anos de reclusão para quem praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência[13].
Ergonomia e acessibilidade
A ergonomia é uma disciplina científica que relaciona as interações humanas e mecânicas com o objetivo principal de otimizar o sistema na qual elas estão inseridas[14]. Uma de suas práticas é a produção de estudos sobre aparelhos, formas de organização e gestão, entre outros pontos importantes para o funcionamento de atividades, para adaptá-los às necessidades, habilidades e limitações de seus participantes, que não necessariamente são deficientes.
Essa ciência está intimamente relacionada com a acessibilidade, definida por lei como a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos, transporte e outras tecnologias por pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, em paridade com pessoas sem deficiências[15], já que permite a adequação do ambiente de trabalho, desde o próprio espaço até os instrumentos utilizados pelos profissional de forma efetiva e inteligente. A ABNT, inclusive, dispõe de inúmeras normas para a efetivação da acessibilidade no plano arquitetônico e funcional[16].
Aliada à preocupação em construir um ambiente inclusivo, que proporcione bem-estar e segurança para todos, a ergonomia desempenha um papel central na arquitetura acessível e no desenvolvimento de ferramentas de trabalho que sejam adequadas à cada indivíduo. Porém, não se pode entender a acessibilidade como um princípio que se aplica estritamente à atividade laboral, a convivência social no espaço de trabalho e as relações interpessoais devem compartilhar do mesmo comprometimento em criar um entorno confortável e equitativo.
Assim como no caso da Lei de Cotas, o Ministério Público também é responsável por fiscalizar se as empresas oferecem um ambiente acessível a seus empregados, podendo multá-las administrativamente em caso de descumprimento legal.
Conclusão
Em consonância com os artigos anteriores da série “Semeando Diversidade”, procuramos destacar as principais legislações e boas práticas para a construção de um ambiente de trabalho inclusivo e diverso.
A lei brasileira conta com instruções claras que podem ser seguidas por quem se compromete a integrar os mais diversos perfis em seu empreendimento e que não acarretam em ônus desnecessário para o empregador. Outras diretivas, como a adaptação razoável, também apontam um norte a ser seguido para o real engajamento em pautas que confirmam os Direitos Humanos e a cidadania para todos, sem distinções de raça, sexo, orientação sexual, gênero, religião ou condição física.
O exercício para a composição de um corpo de colaboradores diverso e altamente qualificado é constante, mas se torna muito mais fácil e gratificante quando se está aberto para receber profissionais de diferentes backgrounds.