Baptista Luz

20/02/2019 Leitura de 13’’

Série Semeando Diversidade: Religião no Ambiente de Trabalho

20/02/2019
  • 13’’
  • / Escrito por:

    PAMELA MICHELENA DE MARCHI GHERINI

Como prevenir e combater a discriminação com base em religião no ambiente de trabalho?

Muitos dos conflitos armados ocorrendo no mundo, ainda hoje, são motivados por questões religiosas. Se isso provoca impactos tão devastadores como guerras e genocídio, é de se esperar que em instâncias menores o assunto também gere controvérsias.

A Constituição do Brasil, em seu art. 5°, inciso VI, determina que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” Se a norma principal do nosso ordenamento estipula que a liberdade religiosa deve configurar dentre os direitos fundamentais, é um indicativo de que este direito é muito relevante para a nossa sociedade.

Infelizmente, esse e outros dispositivos não previnem a enormidade de casos de discriminação com base em religião que ocorrem no Brasil. Algumas dessas demonstrações de intolerância escalam para lesões corporais, destruição de objetos sagrados e até homicídio. Apesar de haver preconceito em diversos ambientes, a discriminação no trabalho é bastante comum e é sobre isso que trataremos no artigo desta semana da série Semeando Diversidade.

 

Subnotificação[1]

Um dos princípios que rege o direito do trabalho é o da hipossuficiência do trabalhador em relação ao empregador. Em outras palavras, o empregado possui menos recursos e estrutura do que o patrão, o que coloca este último em uma posição de maior poder na relação de trabalho. Por isso, o direito tenta equilibrar essa assimetria.

Os impactos da perda de um emprego podem ser devastadores para um colaborador, e isso impede muitas pessoas de se posicionarem frente a injustiças cometidas contra elas. O medo da represália faz com que muitos permaneçam calados, aturando violências que podem ser configuradas como crime (conforme discutiremos mais adiante). Portanto, colaboradores que sofrem preconceito, muitas vezes, não denunciam o fato, dificultando a busca por soluções[2]. Existem casos em que pessoas desenvolvem doenças como depressão e ansiedade em decorrência da violência sofrida[3].

É obrigação da empresa zelar pelo meio ambiente de trabalho, o que implica em coibir práticas discriminatórias contra ou entre colaboradores. A conivência da empresa em relação às práticas opressoras entre colaboradores pode gerar responsabilização conjunta dela pelos danos, havendo jurisprudência neste sentido[4].

Se os gestores criarem um ambiente de confiança em que os colaboradores se sintam confortáveis e abertos ao diálogo. Isso poderá ajudar não só na denúncia interna de casos de discriminação, como também na melhora do diálogo, evitando novos casos. Se a opressão estiver ocorrendo no local de trabalho, o empregador deve se posicionar. Vale ressaltar que a mera criação de canais de diálogo não resolve por si só os problemas, os encaminhamentos dados às denúncias são o passo mais importante. A subnotificação de violências com base em religião é uma questão que precisa ser superada e o empregador tem papel importante nisso.

 

Indenizações e Crimes

A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (“Lei n° 7.716/1989”) versa sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, etnia, religião ou procedência nacional. A depender do tipo penal praticado a sanção pode chegar à pena de reclusão. Na lei, existem crimes específicos para preconceito no ambiente de trabalho como negar emprego por preconceito ou até ofertar vagas com critérios discriminatórios (artigo 4°)[5].

Vale mencionar que o Brasil ratificou a Convenção n° 111 da Organização Internacional do Trabalho (“OIT”), que traz uma definição de discriminação que se tornou base para legislações nacionais. Ela possui como finalidade a promoção da igualdade e eliminação de toda discriminação, em matéria de emprego e de ocupação, visando o desenvolvimento de políticas nacionais adequadas. Como a convenção foi ratificada pelo Brasil, os seus dispositivos são válidos no nosso ordenamento[6].

Caso ocorra um episódio ou episódios reiterados de discriminação com base em religião (assim como nas outras hipóteses previstas pela lei) a empresa[7] e a pessoa que realizou o ato discriminatório poderão ser responsabilizadas perante a justiça do trabalho por assédio moral, devendo indenizar a vítima por danos morais, a depender do caso[8].

Além disso, a pessoa que agiu de forma preconceituosa, a depender da maneira que tiver agido[9], poderá ser criminalmente processada conforme os dispositivos da Lei n° 7.716/1989. Isso significa que o processo trabalhista pode correr concomitantemente ao processo penal, conforme explica a Juíza Maria de Lourdes Leiria do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina em entrevista ao canal do próprio Tribunal[10].

 

Feriados religiosos não católicos

Não existe lei no Brasil que obrigue o empregador a aceitar que o trabalhador possa faltar em dias de feriados religiosos que não sejam feriados nacionais. A verdade é que grande parte dos feriados religiosos nacionais são cristãos e isso faz com que os devotos de todas as outras religiões folguem nos dias estabelecidos pelo Estado sem que, contudo, tenham garantido o direito de se dedicarem às suas datas religiosas que, por ventura, sejam celebradas em dias de trabalho.

Existem várias empresas que, reconhecendo a importância da liberdade religiosa, permitem a troca de datas de folga para que os colaboradores se dediquem à sua fé nos dias que a religião determina como sagrados. O que pode facilitar estas circunstâncias é que, de acordo com a Reforma Trabalhista, o empregador e o colaborador podem negociar folgas com base em banco de horas e compensação de jornada[11]. Mesmo que o dispositivo não tenha sido incluído com esta finalidade específica, sua aplicação pode ser bastante útil nestes casos[12].

 

Uso de vestimentas religiosas no trabalho

Conforme explica Marcio Eduardo Senra Nogueira Pedrosa Morais:

Por sua vez, o princípio da liberdade religiosa se subdivide em: i) liberdade de crença; ii) liberdade de consciência e iii) liberdade de culto. O princípio da liberdade religiosa representa o direito que cada indivíduo tem de acreditar (de modo negativo ou positivo, ou seja, crer ou não crer), cultuar e pensar, manifestar sua liberdade de expressão em questões religiosas.

No caso concreto, a proibição do uso de roupas religiosas durante o horário de trabalho, o que está em causa é a própria identidade da pessoa, não somente uma opção pessoal. Ademais, a adesão à religião não pode ficar suspensa durante o horário de trabalho.”[13]

 

Isso significa que o direito de uso de vestimentas religiosas durante horário de trabalho (ex: solidéu[14], hijab, saias longas, crucifixos etc.) decorreria do princípio da liberdade religiosa. Desconhecemos a existência de uma norma específica que confira ao trabalhador este direito específico, contudo é possível entender que ele existe em decorrência do princípio da liberdade religiosa.

O mesmo ocorre quando o uniforme determinado pelo empregador atenta contra a religião do colaborador que deve utilizá-lo. Nesses casos, também pode ser definida uma flexibilização da vestimenta para que os elementos que atentem contra a religião possam ser substituídos por outros.

A Agência de Saúde de Campo Grande foi processada por uma funcionária pública que alegava o direito de se abster do uso de vestimenta contrária às suas convicções religiosas, conforme era exigido pela Agência. Neste caso, a exigência era do uso de calça comprida para o cumprimento de sua rotina de trabalho. A medida cautelar garantiu que o não uso desta peça de roupa não gerasse sanção ou penalidade para a funcionário, solicitando também o valor de seus vencimentos no período em que não assinou o cartão de ponto, por ter sido impedida pela administração de realizar suas funções, pelo fato de vir trabalhar de saia. A 5ª Turma Cível da do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul acatou o pedido da funcionária por unanimidade[15].

 

Detalhes do dia a dia

Para auxiliar no convívio cotidiano, separamos algumas dicas importantes de convivência que podem evitar conflitos e promover um ambiente saudável e de respeito às mais diversas crenças:

  • Alimentação

Algumas religiões possuem restrições alimentares, por isso, ao organizar um evento da empresa, é recomendável oferecer opções que todos possam aproveitar. Ofertar opções vegetarianas ou veganas[16] em um coffee break, por exemplo, pode ser um bom começo pois atendem às limitações de ingestão de carne que são comuns a várias religiões[17]. Isso demonstra respeito à cultura dos colaboradores e pode, inclusive, motivá-los por se sentirem acolhidos no ambiente profissional.

Outra dica relacionada a isso é não deixar de convidar colegas a determinados eventos por imaginar que eles não possam ir em função da religião. Por exemplo, se um grupo de pessoas resolve ir a uma churrascaria, mas sabem que um dos colegas é judeu (e que este segue uma dieta kosher[18]) o grupo não deve deixar de convidá-lo. Se a pessoa não se sentir confortável de ir ela pode recursar, mas pelo menos não se sentirá excluída do convivo. Esse tipo de conduta não pode ser imposta pelo empregador, mas há formas de incentivar comportamentos inclusivos por meio da cultura institucional.

  • Comportamentos

Existem algumas práticas ou comportamentos cotidianos específicos de cada religião e estes devem ser respeitados, mesmo que para o observador aquilo não faça sentido. Para facilitar a identificação de algumas dessas práticas daremos exemplos:

  • Judeus Ortodoxos: para alguns grupos de judeus ortodoxos os homens da religião não podem encostar em mulheres que não sejam de sua família. Da mesma forma, mulheres ortodoxas desta religião não podem encostar em homens que não sejam de sua família e, em alguns casos, também raspam a cabeça e/ou utilizam perucas, chapéus ou lenços para cobrir a cabeça. Não é incomum serem questionadas se estão doentes ou passando por algum tratamento e isso pode provocar constrangimentos desnecessários.
  • Muçulmanos: alguns praticantes desta religião fazem diversas orações por dia e podem precisar de um ambiente silencioso e privativo para isso, além de intervalos curtos.
  • Hare Krishnas: alguns seguidores de Hare Krishna têm restrições quanto ao uso de talheres para consumo de alimentos. Na religião, não se deve utilizar utensílios contaminados para o preparo nem para o consumo de alimentos[19]. Por isso, algumas pessoas optam por comer com as mãos ou trazem seus próprios talheres.
  • Evangélicos[20]: existem diferenças importantes entre as diversas igrejas evangélicas, contudo, algo comum em diversas delas é a proibição de ingestão de álcool e limitação na participação de alguns tipos de festas. Algumas determinam regras quanto ao uso de maquiagem, comprimento de saia e assim por diante. Há pessoas que relatam sofrer discriminação e julgamentos por adotarem este estilo de vida. O fato de um colaborador evangélico não comparecer a uma festa de final de ano, por exemplo, não pode ser objeto de brincadeiras ou de estranhamento. O seu não comparecimento deve ser tratado com a mesma naturalidade do que se fosse por qualquer outro motivo.

 

  • Respeito a objetos e símbolos

Existem crenças que dão importância a determinados objetos sagrados. A relação de cada religião com os objetos é diferente, por essa razão, é recomendável evitar encostar, manusear ou até mesmo utilizá-los como decoração. É muito comum, hoje em dia, vermos estátuas de divindades de religiões orientais como objetos decorativos em restaurantes, estúdios de yoga, academias, lojas de roupa etc. Para algumas culturas isso pode significar uma enorme falta de respeito. Essas condutas podem ser extremamente problemáticas, já que os símbolos são normalmente utilizados por indivíduos, sem vínculo com aquela cultura, para se beneficiar economicamente.

  • Vestimentas sagradas não são fantasias

Com a aproximação do carnaval é importante ressaltar que vestimentas sagradas ou outras roupas ligadas à prática de uma religião, não devem ser usadas nem entendidas como fantasia. Apesar de algumas pessoas replicarem estas roupas com boa intenção, isso pode ser bastante ofensivo para o devoto da religião. É muito comum encontrarmos “fantasias de índio”[21], “fantasias de muçulmano”, “fantasias de freira”, “fantasias de padre”, “fantasia de jesus” e assim por diante. Existem tantas outras fantasias interessantes que podem ser usadas, evitando aquelas que possam provocar desconforto ou ofensa a alguém.

  • Cuidado com vocabulário

Piadas podem ser uma forma de externalização de preconceitos ocasionando problemas no ambiente de trabalho. Entendendo a religião como componente importante para muitas pessoas, ao falar sobre o assunto deve-se ter cuidado com a forma de abordar o tema. Alguns exemplos de abordagens infelizes são: chamar de “macumba” as práticas religiosas de religiões de matriz africana; fazer comentários que insinuem que muçulmanos são terroristas; falar de maneira irresponsável sobre o genocídio judeu durante a Segunda Guerra Mundial; se valer de estereótipos para descrever pessoas de uma mesma religião, dentre outros.

 

O caso das religiões de matriz africana

Optamos por fazer referência específica aos casos de discriminação contra religiões de matriz africana em função do número de casos de agressões direcionadas a esses grupos. Infelizmente, não é incomum a invasão e depredação de espaços de candomblé ou de umbanda, por exemplo. Além disso, ocorrem muitos casos de agressões físicas e verbais contra praticantes destas religiões.

Dados compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro mostram que mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas[22].

Por esse e outros motivos, a Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 conhecida como Estatuto da Igualdade Racial possui artigos específicos que visam garantir proteção ao exercício dos cultos religiosos de matriz africana (artigos 24, 25 e 26). O artigo 26 trata especificamente da responsabilidade do poder público de adotar medidas necessárias para “o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores”.

É importante notar que o racismo faz parte de muitas destas demonstrações de intolerância e ódio, uma vez que estas práticas estão fortemente interligadas ao desenvolvimento da cultura negra no Brasil e a rejeição a estas religiões são consequência de um cenário ainda mais complexo de rejeição ético-racial carregada de heranças coloniais e escravocratas.

Conclusão

Conforme expusemos, para que haja respeito à liberdade e diversidade religiosa no ambiente de trabalho, diversas variáveis precisam ser observadas. O exercício da tolerância por parte de gestores e colaboradores auxilia na criação de um ambiente seguro e livre de opressão. Contudo, em casos de preconceito e discriminação existem dispositivos específicos do direito penal e do direito trabalhista que permitem a responsabilização dos agressores. A melhor forma de evitar que isso aconteça é criar diálogo, oferecer treinamentos, criar canais de denúncia, dentre outras alternativas que previnem e solucionam problemas sem que estes tenham que chegar ao judiciário.

Quer saber mais?

Entre em contato com os autores ou visite a página da área de Artigos

Mais lidas:

Mais recentes:

Assine nossa newsletter

Inscreva-se para receber informações relevantes sobre o universo jurídico e tomar decisões informadas que vão impactar seus negócios.

Nós respeitamos a sua privacidade e protegemos seus dados pessoais de acordo com a nossa Política de Privacidade.

Baptista Luz