Baptista Luz

06/04/2020 Leitura de 11’’

Coronavírus e seus impactos no setor hospitalar: como a telemedicina é regulada no Brasil?

06/04/2020
  • 11’’

 

 

Seria a telemedicina uma alternativa para hospitais superlotados evitarem a transmissão exponencial do Covid-19? Que cuidados devem ser tomados?

 

1.    Introdução

O Coronavírus é o tópico do momento. Em terras brasileiras, a situação é alarmante: até o dia 05 de abril, havia pelo menos 9.056 casos diagnosticados como Covid-19, o que levou as autoridades a decretar, de norte a sul, isolamento social para reduzir o ritmo de propagação do contágio [1]..

Pacientes já infectados, se forem a hospitais, clínicas ou consultórios, exporão outros indivíduos ao contágio. Da mesma forma, pacientes não infectados podem se expor à contaminação ao tomarem a mesma medida.

Diante desse cenário, vamos falar sobre a telemedicina [2]como possível solução para o tratamento e contenção do Coronavírus. Além de definir este conceito, abordaremos como se dá a sua regulação no Brasil e no cenário internacional.

 

2.   Telemedicina: definições e regulações nacionais e internacionais

/ O que é a telemedicina?

 As discussões sobre Telemedicina não são novidade. Nos Estados Unidos, um dos primeiros movimentos favoráveis a esta prática ocorreu em 1993, com a criação da American Telemedicine Association, que teve como objetivo expandir o acesso à saúde de uma maneira segura e eficaz [3].

Os médicos e acadêmicos John Craig e Victor Patterson definem essa prática como “rápido acesso à experiência médica, por meio de tecnologias de telecomunicação e informação, não importando onde estejam localizados o paciente ou a informação”. Para eles, a Telemedicina pode ser classificada em dois tipos, com base (I) na interação entre o paciente e o especialista médico; e (II) no tipo de informação transmitida (se é por meio de texto, áudio, e/ou vídeo).

Além disso, Craig e Patterson apontam que a Telemedicina deve ser considerada especialmente quando não há a alternativa do tratamento presencial (por exemplo, quando ocorre um acidente em um local distante, sem médicos ou ajuda médica viável no momento), ou quando a Telemedicina se prova uma alternativa mais eficaz do que a dos serviços convencionais disponíveis (por exemplo, quando é melhor ter um atendimento por Telemedicina do que ir a um hospital com condições precárias) [4].

/ Definição de Telemedicina na regulamentação internacional

A Organização Mundial da Saúde (“OMS”) também já reconheceu e definiu a prática de Telemedicina. Segundo a OMS, trata-se do “uso de informação e de tecnologias de comunicação para saúde [5]”.

Ainda em 1998, a própria OMS reconheceu a importância da Internet e seu potencial de impacto na área da saúde, através da Resolução Cross-border advertising, promotion and sale of medical products through the Internet”.

No ano seguinte, o tema foi debatido no cenário internacional e o uso da Telemedicina especificamente foi recomendado através da Declaração de Tel Aviv sobre responsabilidades e normas éticas na utilização da Telemedicina, adotada pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial.

Em 2005, foi aprovada a primeira regulação da OMS sobre Telemedicina, durante a 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúdea Resolução WHA58.28.

/ Definição de Telemedicina na regulação brasileira

No Brasil, a Telemedicina foi definida em um primeiro momento a partir daResolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.643 de 2002, como:

 “o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em saúde [6]”.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.643/2002, além de definir o conceito de Telemedicina conforme acima pontuado, prevê que em caso de emergência, ou quando solicitado pelo médico responsável, o médico que emitir laudo à distância poderá, sim, prestar o devido suporte diagnóstico e terapêutico. Ainda, a norma prevê os seguintes requisitos de funcionamento da Telemedicina no Brasil:

(i) Os serviços prestados através da Telemedicina devem ter infraestrutura apropriada e obedecer às normas técnicas do Conselho Federal de Medicina sobre a guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional (art. 2º, Resolução CFM nº 1.643/2002);

(ii) As pessoas jurídicas que prestarem serviços de Telemedicina devem se inscrever no Cadastro de Pessoa Jurídica do Conselho Regional de Medicina do estado onde estão situadas, com a respectiva responsabilidade técnica de um médico regularmente inscrito no Conselho e a apresentação da relação dos médicos que são componentes de seus quadros funcionais (art. 5º, Resolução CFM nº 1.643/2002);

(iii) As pessoas físicas que prestarem serviços de Telemedicina devem integrar a classemédica. Além disso, a inscrição no Conselho Regional de Telemedicina também é obrigatória (art. 5º, parágrafo único, Resolução CFM nº 1.643/2002);

(iv) O Conselho Regional de Medicina deve estabelecer constante vigilância e avaliação das técnicas de Telemedicina sobre a qualidade da atenção, relação médico-paciente e preservação do sigilo profissional (art. 6º, Resolução CFM nº 1.643/2002).

Com o passar do tempo e o avanço da tecnologia, o Conselho Federal de Medicina editou uma Resolução mais atualizada sobre Telemedicina – a Resolução CFM nº 2.227/2018. Nela, a Telemedicina era definida como “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúd[7]”, e havia previsão inclusive de teleconsultas, teleinterconsultas, telediagnósticos e até mesmo telecirurgias.

Contudo, apesar de ser mais robusta do que a norma anterior do Conselho Federal de Medicina, a Resolução CFM nº 2.227/2018 foi revogada um mês após a sua edição. Portanto, no Brasil, voltaram a valer as regras de Telemedicina previstas na Resolução CFM nº 1.643/2002.

É importante observarmos que, para além da Resolução do Conselho Federal de Medicina que atualmente está em vigor, a Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”) [8] brasileira terá um papel fundamental e complementar na regulação da Telemedicina no Brasil. Apesar de a LGPD não tratar diretamente do tema de telemedicina, determina quais são os requisitos legais que autorizam o uso (p. ex. obtenção de consentimento do titular, execução de políticas públicas, etc) e compartilhamento (p. ex. prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica, etc) de dados de saúde, independentemente de o tratamento ser online ou não.

A LGPD também reforça o dever dos responsáveis pela utilização dos dados de adotarem mecanismos de segurança da informação que garantam a sua integridade (proteção contra alterações indevidas), confidencialidade e disponibilidade (permitir que a informação esteja disponível sempre que for necessária).

Informações sobre a saúde de uma pessoa estão dentro da categoria de dados sensíveis, conforme previsto pela LGPD. Nesse sentido, a utilização desses dados da saúde deve ser ainda mais regulada,  exigindo precauções mais robustas, principalmente porque devido ao risco de eles serem utilizados para fins discriminatórios – o que torna os padrões para o tratamento e armazenamento destes dados ainda mais altos [9].

 

3.    A ampliação do uso de Telemedicina como resposta ao Coronavírus

Desde que a OMS declarou que a disseminação do Coronavírus se encaixa na categoria de “pandemia” [10], em 11 de março de 2020, umas das maiores preocupações do governo brasileiro reflete-se em como enfrentar esta crise – que, a par das repercussões econômicas, é, sobretudo, um monumental desafio de saúde pública.

O cenário de sobrecarga nos hospitais públicos e privados é evidente – e a Telemedicina pode ser a solução de tratamento para casos de contágio de Coronavírus que não apresentam sintomas mais graves(que levariam o paciente, por exemplo, a uma internação na UTI de hospitais). Esse tratamento à distância estaria em linha com a recomendação da OMS, de que as pessoas devem permanecer em suas casas e, mesmo que apareçam os primeiros sintomas de Covid-19, não compareçam imediatamente aos hospitais, mas sim entrem em contato com as autoridades médicas que indicarão os procedimentos a serem adotados, a depender dos sintomas relatados [11].

Como forma de seguir esta orientação, o governo brasileiro já implementou o programa TeleSUS para monitorar à distância a saúde da população e criou o aplicativo Coronavúrus, que permite que o Ministério da Saúde envie mensagens e alertas aos celulares e tablets da população. Para além disso, o TeleSUS pode indicar quais são os procedimentos a serem adotados em casos de suspeitas de Coronavírus [12].

O próprio Conselho Federal de Medicina, reconhecendo a importância e a necessidade de tomada de medidas mais contundentes no combate ao Coronavírus, enviou Ofício ao Ministério da Saúde reconhecendo a possibilidade e a eticidade da utilização da telemedicina em caráter de excepcionalidade e enquanto durarem as medidas de enfretamento ao coronavírus. Neste documento, recomendaram-se a teleorientação, o telemonitoramentoe a teleinterconsulta.

O Ministério da Saúde levou em consideração a recomendação do Conselho Federal de Medicina e, recentemente, emitiu a Portaria nº 467, de 20 de março de 2020, que dispõe, em caráter excepcional e temporário, sobre as ações de Telemedicina, com o objetivo de regulamentar e operacionalizar as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia com o objetivo de reduzir a propagação de Covid-19.

/ A resposta do governo para utilização de Telemedicina em tempos de Coronavírus: entenda as disposições da Portaria nº 467/2020

Segundo a Portaria do Ministério da Saúde aqui referida, ações de Telemedicina passam a envolver, como forma de combate ao Coronavírus:

“Atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e diagnóstico, através de tecnologia da informação e comunicação, tanto no SUS como na rede privada de saúde. Este atendimento envolve diretamente médicos e pacientes, resguardados o sigilo, segurança e integridade das informações comunicadas.”

As obrigações impostas aos médicos, para que cumpram os requisitos e pratiquem a Telemedicina, são as seguintes:

(i) Atender aos preceitos éticos de beneficência, não maleficiência, sigilo das informações e autonomia;

(ii) Observar as normas e orientações do Ministério da Saúde sobre notificação compulsória;

(iii) Registro do atendimento realizado por médico ao paciente através de prontuário clínico, que deverá conter:

a. Dados clínicos necessários para a boa condução do caso, preenchido em cada contato com o paciente;

b. Data, hora, tecnologia da informação e comunicação utilizada para o atendimento; e

c. Número do Conselho Regional Profissional e sua unidade da federação.

Vale dizer, ainda, que médicos poderão emitir atestados ou receitas médicas em meio eletrônico. Estes documentos terão validade mediante:

(i) assinatura eletrônica, por meio de certificados e chaves emitidos pela Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras;

(ii) atendimento dos seguintes requisitos:

a. identificação do médico;

b. associação ou anexo de dados em formato eletrônico pelo médico; e

c. ser admitida pelas partes como válida ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento.

Especificamente sobre o atestado médico, ressalta-se que ele deve conter pelo menos a identificação do médico (nome e CRM) e dos dados do paciente, bem como o registro de data, hora, e duração do atestado.

 

4.    Conclusão

Após percorrer as principais normas sobre o tema, entende-se que a Telemedicina deixará de ser um tabu, e com o avanço da tecnologia e a proliferação de health techs, acreditamos que esta é uma alternativa viável e necessária no contexto de pandemia que enfrentamos– especialmente como forma de desafogar nosso sistema de saúde e evitar a disseminação de Covid-19.

Caso você se interesse pela intersecção do Direito com a área da Saúde, não deixe de conferir nossos outros demais artigos: (i) as repercussões legais do vazamento de prontuários médicos e as boas práticas em tempos de Coronavírus; e (ii)“dados de saúde e a Lei Geral de Proteção de Dados: estudo de casos”.

 

 


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NOTAS E REFERÊNCIAS:

 

Notas

[1]WORLD HEALTH ORGANISATION. Situation report 76. 05 abr 2020. Disponível em https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200401-sitrep-72-covid-19.pdf?sfvrsn=3dd8971b_2  Acesso em 06 abr 2020.

[2]Existem muitas outras denominações para Telemedicina, como e-Saúde, telessaúde e teleassistência.

[3]AMERICAN TELEMEDICINE ORGANIZATION. About us. Disponível em https://www.americantelemed.org/about-us/Acesso em 23 mar 2020.

[4]CRAIG, John; PATTERSON, Victor. Introduction to the practice of telemedicine. Journal or Telemedicine and Telecare. Edição 11(2).

[5]Vale dizer que, para a OMS, prevalece o termo “e-Saúde” – e não Telemedicina. WORLD HEALTH ORGANSATION. eHealth at WHO. Disponível em https://www.who.int/ehealth/about/en/Acesso em 28 mar 2020.

[6]CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.643/2002. Disponível em https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1643Acesso em 25 mar 2020.

[7]CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.227/2018. Artigo 1º. Disponível em https://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucao222718.pdfAcesso em 27 mar 2020.

[8]BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htmAcesso em 27 mar 2020. Está prevista sua entrada em vigor em agosto de 2020 – contudo, tramitam no Congresso Nacional um projeto de lei que sugere que este prazo seja postergado para 2021 (Projeto de Lei nº 1179/20)

[9]NOVAES, Adriane Loureiro; DE VITO, Camila; BOUSSO, Fernando; MORIBE, Gabriela; BALTHAZAR, Luiza; KASPUTIS, Matheus Botsman; PORTO JÚNIOR, Odélio; PESSOA, Rafael; MONTEIRO, Renato Leite. Dados de Saúde e a Lei Geral de Proteção de Dados: estudo de casos. 26 jun 2019. Disponível em: https://baptistaluz.com.br/wp-content/uploads/sites/99/2019/06/Guia-Saude-Bluz-Final-com-autores-2.pdfAcesso em 27 mar 2020.

[10]NEW YORK TIMES. Coronavirus has become a pandemic, W.H.O says. 11 mar 2020. Disponível em https://www.nytimes.com/2020/03/11/health/coronavirus-pandemic-who.htmlAcesso em 25 mar 2020.

[11]WORLD HEALTH ORGANISATION.Q&A on coronaviruses (COVID-19). 9 mar 2020. Disponível em https://www.who.int/news-room/q-a-detail/q-a-coronavirusesAcesso em 30 mar 2020.

[12]MINISTÉRIO DA SAÚDE. TeleSUS fará busca ativa de informações sobre Coronavírus. 01 abr 2020. Disponível em https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46633-ministerio-da-saude-fara-busca-ativa-de-informacoes-sobre-coronavirusAcesso em 01 abr 2020.

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