Continuando a série “Transformando o Direito”, este artigo abordará algumas das tendências dentro do universo jurídico – desta vez abordaremos o tema Legal Design.
-
O que é Legal Design?
O Legal Design é uma abordagem que atenta aos conceitos de User Experience e Design Thinking1 – que tem como objetivo central o desenvolvimento dos serviços e produtos projetados a partir do ponto de vista dos usuários, atendendo às motivações e necessidades do cliente. É uma abordagem que, como definido por Margareth Hagan, professora da Universidade de Stanford, aplica o design centrado no ser humano ao mundo do direito, a fim de tornar os sistemas e serviços jurídicos mais focados nas pessoas, mais utilizáveis e mais satisfatórios2. Prioriza-se a inclusão da perspectiva daquele em que incide a lei, aumentando o acesso à informação, não restringindo-se somente ao ponto de vista de advogados.
Assim, como em qualquer processo de Design Thinking, há três perguntas norteadoras que estão sempre presentes no desenvolvimento destas interações: 1) Estamos criando algo que é utilizável? 2) Estamos criando algo que é útil? 3) Estamos criando algo que é cativante?
Simplificando, a proposta do Legal Design é fazer com que todas as partes envolvidas na confecção e execução de contratos passem a serem levadas em consideração igualmente, possibilitando a comunicação aos usuários de seus direitos e deveres de forma clara, aberta e compreensível. Portanto, documentos legais que todos – incluindo advogados – odeiam ler não precisam fazer parte da experiência geral do usuário. Todos podem ter uma experiência que fomente uma tomada de decisão bem informada.
Ou seja, o ponto de vista dos advogados passa a ser apenas um entre tantos que são impactados pelo objeto do contrato, entendendo melhor suas necessidades, testando soluções com uma maior agilidade3 e fazendo com que o Direito seja acessível.
-
Da teoria à prática
Sendo o universo jurídico nosso foco, não será o caso de explorar o arcabouço teórico referente a Design Thinking, Design Editorial, Comunicação Visual, ou Design de maneira mais abrangente. No entanto, estas práticas e áreas do conhecimento são a base para os princípios do Legal Design.
Inspirado no processo metodológico do Design Thinking, o Legal Design é composto por fases cíclicas e bem descritas. Segundo Larissa Wemann, associate general counsel da ThoughtWorks, as etapas4 são: Descoberta; Interpretação; Ideação; Experimentação; e Evolução5. Falaremos brevemente sobre estas etapas para que o leitor possa compartilhar de uma linguagem comum, para trazer nossa visão prática do método em seguida, descrevendo seis princípios para um Legal Design de qualidade.
Descoberta
A descoberta é a etapa de coleta de dados e definição da pergunta norteadora do projeto. As descobertas constroem uma base sólida para suas ideias. Esta etapa deve ser pensada de forma ampla, fazendo a criação de hipóteses e buscando uma resposta para a pergunta “Qual problema eu quero resolver?”. Por ser o momento de entendimento do desafio, é nesta fase em que se define os públicos-alvo, faz-se o planejamento do projeto e se constrói sobre o conhecimento que a organização já possui6.
Pensando no exemplo de contratos, podemos identificar o formato dos documentos, o momento de uso, os objetivos de quem os utiliza, o contexto de utilização, e suas características verbais (extensão, complexidade da linguagem, conteúdo, hierarquia de informação).
Interpretação
Já a etapa da interpretação trata-se de uma síntese, a partir dos dados e das questões levantadas da primeira fase, caracterizando um momento de convergência de pensamento. É nesta etapa que se constrói um ponto de vista compartilhado entre os participantes do projeto, criando uma visão compartilhada das ideias e do contexto gerados na fase anterior. É nesse momento que as diretrizes de projeto são escritas, ponto fundamental para guiar as fases seguintes, que terão um caráter de divergência de pensamento.
Ideação
A ideação é a etapa de geração de possibilidades de soluções para os desafios mapeados nas etapas anteriores. Nesta fase de divergência de pensamento, construímos ideias de forma direcionada a partir das diretrizes de projeto. Em uma jornada referente a serviços do escopo da assessoria jurídica empresarial, há uma vasta quantidade de pontos de contato entre prestadores de serviço e clientes ou usuários (e.g. contratos, planilhas, relatórios, e-mails, mensagens, website, processos, faturas, entre tantos outros). Por isso, um processo de imersão (fases de descoberta e interpretação) cuidadoso e meticuloso é imprescindível para que a ideação gere soluções de todos os tipos de complexidade, independentemente da objetividade das perguntas norteadoras.
É importante ressaltar que, caso instrumentos visuais sejam usados, então é possível especificar que não somente o Legal Design está sendo usado, como o Visual Law – uma subdivisão do Legal Design que emprega elementos visuais para tornar o Direito mais claro e compreensível.
Experimentação
A experimentação é vista como o estágio da construção de um molde, colocando inicialmente a ideia em prática para identificação de erros e fazendo os ajustes necessários para o “produto final”.
Evolução
Por fim, a evolução é a etapa final, possuindo natureza contínua. Não existe um produto perfeito, logo, ao colocar o Legal Design em prática em sua empresa, é necessária uma abertura para uma evolução e melhoria constante percebendo o que funciona, o que deixou de funcionar e aperfeiçoando cada vez mais.
3 Princípios do Legal Design7
- Torne os usuários de serviços jurídicos mais capacitados e inteligentes
Muitas pessoas querem mais informações e supervisão do processo pelo qual estão passando. Eles querem um relacionamento colaborativo com seu advogado. Isso pode significar um acompanhamento mais próximo das horas investidas em suas demandas, um relatório automatizado que forneça dados em tempo real ou ainda um processo que garanta maior autonomia para o cliente, tornando a comunicação entre escritório e empresa mais eficiente.
- Forneça visões baseadas em processos sistêmicos do trabalho jurídico
Deixe claro, de forma simples e direta, como está estruturado o sistema em que os serviços jurídicos acontecem. Como em um jogo de estratégia, deixe evidente que há diferentes caminhos possíveis e quais são seus pontos inicial e final. Isso empoderará profissionais e leigos que estão trabalhando em um assunto a tomarem decisões informadas.
A metáfora de uma jornada é poderosa e ressonante para leigos que se deparam com o sistema jurídico. Um bom Legal Design usará essa metáfora de jornada e mostrará claramente qual é o caminho dado pelo usuário, para que ele entenda o que está acontecendo, onde pode levar e quem está fazendo o quê.
- Promova um relacionamento colaborativo entre a pessoa (física ou jurídica) e o grupo de advogados
O advogado tem o conhecimento legal e o cliente, o conhecimento de seu negócio. Tanto o cliente quanto os advogados precisam entender as estratégias que estão sendo executadas por ambos os lados. Um bom projeto jurídico deve fornecer ferramentas, estratégias e modelos para relacionamentos que possam ser mais bidirecionais do que unilaterais, e que dão às pessoas um senso de transparência e dignidade ao interagir com os profissionais que as representam.
- Sempre dê uma visão panorâmica com possibilidade de zoom in
Uma vez que há um entendimento da jornada – as causas e consequências das decisões tomadas –, é importante poder acompanhar a evolução dos processos com a possibilidade de adentrar nos detalhes de cada etapa, quando necessário. Dar uma visão global a uma pessoa permite que ela entenda o contexto e o porquê de estar fazendo aquilo. Um bom design lhes dará perspectiva e transparência sobre o sistema no qual estão inseridos e quais caminhos estão disponíveis para eles.
- Seja simples no frontee inteligente na retaguarda
Qualquer ferramenta ou interface deve fornecer um caminho guiado e limitado para uma pessoa seguir. As pessoas não querem fazer muitas escolhas – elas querem que lhes digam qual é a melhor estratégia para elas (e para a maioria das pessoas) e, em seguida, segui-la. Trazemos uma das leis do UX design para o Legal Design: oferecer muitas opções ou informações atrapalha o engajamento (Hick’s Law).
No entanto, ainda é necessário apresentar orientações simplificadas com responsabilidade. Aqui, reitera-se a importância de um processo de imersão bem feito e que gere dados relevantes sobre os usuários. Isso possibilita descobrir qual é a melhor maneira de simplificar o conteúdo e sugerir padrões. É um trabalho exaustivo e contínuo de reduzir as informações ao essencial em vez de despejar todo o conteúdo e as escolhas sobre o usuário final.
- Forneça diferentes formatos, permitindoque as pessoas personalizem sua experiência
Sabemos que nem todas as pessoas gostam de receber informações da mesma forma. Algumas pessoas são visuais, outras gostam de ouvir, e outros são cinestésicos. Às vezes estamos lidando com uma pessoa que quer se inteirar de todos os detalhes, enquanto outras vezes estamos numa reunião com um gestor que só quer as informações mais estratégicas. Há, ainda, pessoas “habilitadas para a tecnologia” (“tech-savvy”), diferentes daquelas que desejam cópias impressas em papel. Ou aqueles com proficiência limitada em inglês ou portadoras de deficiência visual.
Um bom design tornará o mesmo conteúdo disponível em modos relevantes para atender a esses diferentes tipos de usuários (de acordo com cada situação). Isso significa investir no envio do conteúdo básico para várias plataformas.
É importante ressaltar que o Legal Design não é direcionado somente aos clientes ou beneficiários, mas também para quem que o faz – no caso, os advogados.
-
Use Case: Legal Design na área de Contratos
Por mais que hoje em dia existam diversos modelos de contratos na internet, a elaboração de um contrato não é algo simples. Há diversas cláusulas que devem ser coerentes entre si; não se pode esquecer de nenhuma condição para evitar lacunas no contrato; o sentido das palavras deve sempre ser conferido para não causar ambiguidade; entre outros obstáculos. Supondo que contratos não são redigidos apenas para a leitura de advogados e que pequenas negociações entre as partes podem gerar grandes alterações em documentos, o trabalho de sua confecção pode se tornar repetitivo e demandar muita atenção a detalhes.
Advogados de empresas e escritórios de advocacia podem se encontrar diariamente entre os desafios de criar um grande volume de contratos, muitas vezes dentro de curtos prazos de entrega, envolvendo muitas partes, e discorrendo sobre acordos de longa duração. As dores geradas por este contexto não afetam só os advogados. Por isso, empresas como a Lexio – uma plataforma de criação e gestão de contratos – acharam um meio de automatizar a criação de contratos por meio de formulários inteligentes e automatizados, garantindo a produtividade da equipe, minimizando erros e agilizando a elaboração de documentos, além de facilitar a organização das partes de um documento e a gestão da vida do contrato. Hoje, há ferramentas que permitem a construção de bancos de cláusulas, identificam erros técnicos e gramaticais, “etiquetam” conteúdos para uso de referências cruzadas, e até buscam e analisam categorias de informação em grandes volumes de documentos.
Lawtechs como o Lexio passaram pelas etapas do processo de design, refinaram seu entendimento sobre um problema específico e desenvolveram soluções a partir da consolidação de diversos pontos de vista (dos diversos atores envolvidos na confecção e uso de contratos). O uso de metadados e funcionalidades digitais possibilita uma troca rápida de informações entre as partes, seja no cadastro de pessoas físicas e jurídicas numa plataforma online ou na assinatura digital – processo que pode ser feito em diferentes tipos de dispositivos e com validade legal igual à de uma assinatura analógica.
E não são só advogados que utilizam estas soluções;algumas empresas bancárias já fazem uso de ferramentas visuais para facilitar a leitura e o entendimento do contrato – como, o uso de tabelas para indicação das tarifas e taxas, ou o uso de ferramentas de destaque para termos importantes, além de diminuírem o uso de termos rebuscados que podem não fazer parte do vocabulário de alguns de seus clientes. Serviços e ferramentas jurídicas como estas podem trazer muitos benefícios: elas conferem maior autonomia a quem não tem formação no campo do direito, facilita o trabalho de advogados, acepilham a gestão de contratos por departamentos financeiros ou de compras, e permitem a geração de dados ricos que profissionais de BI podem usar a seu favor na hora de buscar padrões e monitorar informações relevantes para seus negócios..
-
Conclusão
Se aplicado estrutural e sistemicamente, o Legal Design traz aumento da eficiência em todas as etapas de uma jornada do serviço jurídico. Ou seja, seu impacto é positivo para todos os envolvidos no processo; cliente, banca de advogados, e outras pessoas que participam do fluxo de informação dos serviços jurídicos.
Percebe-se que o Legal Design, a partir da união do Design, da tecnologia e do Direito, tem entrado em voga tanto quanto “Design Thinking” se tornou uma terminologia comum no ecossistema de inovação nas duas décadas passadas. No entanto, poucos exploram esta abordagem de forma complexa e com a devida atenção, retendo-se em questões de comunicação visual (ou, utilizando outro termo que tem se proliferado, o Visual Law). O Direito não deve acompanhar as tendências tecnológicas e culturais das relações intersetoriais; deveria guiá-las.
Para saber mais, ouça também o episódio sobre Visual Law, Legal Design, e UX do podcast Direito e Tecnologia.