Baptista Luz

05/06/2019 Leitura de 15’’

Medida Provisória 881/2019: seus efeitos para o empreendedorismo no Brasil

05/06/2019
  • 15’’
  • / Escrito por:

    Luis Felipe Baptista Luz

A MP da Liberdade Econômica  

Um dos pilares do programa de governo do então candidato Jair Bolsonaro era a liberdade econômica.

A Medida Provisória 881, ao instituir a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, representa, até aqui, a principal materialização normativa daquela proposta.

Segundo a Exposição de Motivos do diploma, a MP vem estabelecer garantias de livre mercado com o propósito de reverter o “pressuposto de que as atividades econômicas [no Brasil] devam ser exercidas somente se presente expressa permissão do Estado”.

Nesse sentido, a MP introduz “medidas de controle e diminuição do aparelho burocrático [que] buscam aproximar o Brasil do mesmo ambiente de negócios de países desenvolvidos”.

De pronto se percebe a principal característica da MP, que também é a sua principal fragilidade: ao propor mudanças estruturais em algumas das principais legislações do país, é um dos diplomas normativos mais ambiciosos das últimas décadas, mas, curiosamente, é uma das iniciativas menos municiadas pelo novo Governo.

Primeiro, pela própria forma escolhida, uma medida provisória. Medidas provisórias podem ser editadas pelo Presidente da República em situações de urgência e relevância. Apesar de terem efeitos imediatos, precisam ser aprovadas pelo Congresso Nacional em até 120 dias contados de sua publicação. Se aprovadas, convertem-se em leis e continuam produzindo efeitos. Caso contrário, deixam de produzir efeitos e cabe ao Congresso editar um decreto-legislativo para tratar dos efeitos produzidos durante a sua vigência.

Segundo porque, apesar do seu ousado escopo, a MP 881 é surpreendentemente lacônica em alguns dos seus dispositivos mais contundentes. A leitura do seu texto chega a deixar uma sensação de açodamento, de falta de debate prévio. Em alguns momentos, a MP parece mais uma proposta inicial, um texto que não foi feito para ser aprovado como tal, mas para ser desenvolvido com as discussões que surgirão durante sua tramitação no Congresso Nacional.

Talvez a intenção tenha sido introduzir as propostas por MP para forçar o seu debate no prazo de 120 dias. Difícil dizer, pois é certo que o Governo já tem muitos pratos a equilibrar nos próximos meses. Tenha ou não sido essa a estratégia, torcemos para que o caminho escolhido funcione. O Congresso tem a oportunidade de lapidar o texto da MP e promover avanços inéditos no ambiente de negócios de nosso país.

Aliada às demais reformas estruturais que precisam ser promovidas com urgência, a “MP da Liberdade Econômica” pode ser o herói improvável da desburocratização.

 

Mudança de Paradigma

O impacto que a MP tem no dia-a-dia dos negócios no Brasil fica bem ilustrado no §1° do artigo 1°:

O disposto nesta Medida Provisória será observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação, e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente”.

A MP está em vigor desde a data de sua publicação, 30 de abril. Ou seja, desde o início de maio, o texto da MP deve ser observado por todos os aplicadores do Direito, inclusive os do Poder Judiciário.

Os princípios que devem passar a reger as relações entre o Estado e os agentes da iniciativa privada estão listados no artigo 2º:

“Art. 2º São princípios que norteiam o disposto nesta Medida Provisória:

I – a presunção de liberdade no exercício de atividades econômicas;

II – a presunção de boa-fé do particular; e

III – a intervenção subsidiária, mínima e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas.”

Os dois primeiros incisos têm recebido muitas críticas porque ambos são princípios já consagrados na Constituição Federal e, portanto, não chegam a inovar.

Por outro lado, é absolutamente inovadora no Brasil a ideia de enquadrar a intervenção estatal como subsidiária, mínima e excepcional nas atividades econômicas. Décadas e governos diferentes não mudaram o viés intervencionista do Estado brasileiro. A MP 881 pretende ser o começo do fim dessa história.

 

A Declaração de Direitos de Liberdade Econômica

A MP tem dezenove artigos distribuídos em cinco Capítulos.

O segundo Capítulo é o que a MP intitula “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. É uma relação de dez direitos de toda “pessoa, natural ou jurídica” e que se projetam sobre aspectos práticos da atividade econômica.

São temas como: dispensa de licenças públicas para atividades de baixo risco, liberdade para desenvolver atividades em qualquer dia e horário da semana, liberdade para definir preços de produtos e serviços, direito a decisões administrativas consistentes, autonomia da vontade, direito de comercializar novos produtos e serviços quando as regulamentações estiverem desatualizadas, direito de testar produtos e serviços para um grupo privado de pessoas, garantia de prazos máximos para a análise de solicitações de particulares por autoridades públicas e equiparação de documentos digitais a físicos para todos os efeitos legais.

São todos avanços no sentido de reduzir a intervenção do Estado na atividade econômica; uns bastante óbvios (como a equiparação de documentos digitais a físicos), outros já consagrados pela lei brasileira (como a autonomia da vontade) e alguns verdadeiramente revolucionários (como a fixação de prazos máximos para manifestações de autoridades).

Mas, quanto mais profunda a garantia, maior o número de exceções que deve comportar. A própria MP já antecipa tal fato e enumera diversas situações em que as garantias não serão aplicáveis: quando a atividade econômica não for de baixo risco, quando houver impacto tributário ou compromisso financeiro da administração pública, quando houver matéria de interesse público (defesa da concorrência, direitos do consumidor, legislação trabalhista etc.).

Ainda assim, a mudança de paradigma é evidente. O que antes era regra passa a ser exceção e vice-versa.

Os dois Capítulos seguintes da MP vão na mesma linha. O artigo 4º introduz restrições ao exercício de regulamentação de lei por autoridades públicas. São vedações a qualquer regulamentação que:

  • crie reserva de mercado,
  • impeça a entrada de novos competidores no mercado,
  • crie privilégio para segmento econômico,
  • exija especificação técnica desnecessariamente,
  • impeça ou retarde a inovação e novas tecnologias,
  • aumente custos de transação sem demonstrar benefícios,
  • crie demanda artificial de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive cartórios, registros ou cadastros,
  • limite a formação de sociedades empresariais ou atividades econômicas,
  • restrinja o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico.

De forma similar aos direitos descritos no artigo 3º, dentre os itens arrolados no artigo 4º há aqueles que são óbvios, outros que já eram vedados por lei e alguns que desafiam verdadeiros bastiões da burocracia brasileira.

O artigo 5º é curioso. Basicamente, ele cria uma burocracia para a burocracia brasileira. Qualquer proposta de edição de ato normativo deve, agora, ser precedida de uma análise de impacto econômico. Claramente, a ideia é reduzir o número de atos administrativos, especialmente os abusivos, mas será interessante acompanhar como essa (boa) intenção irá conviver com a necessidade de edição de atos administrativos que precisam regulamentar leis para que particulares possam fruir de direitos nelas previstos.

 

Alterações ao Código Civil  

É nas suas “Disposições Finais” que a MP 881 produz seus efeitos mais práticos e imediatos.

O artigo 7º promove alterações de grande relevância ao Código Civil:

  • Novo artigo 50. Um tema recheado de polêmicas e certamente de grande relevância para a atividade econômica no país é a desconsideração da personalidade jurídica com a responsabilização de sócios e administradores por dívidas da empresa. Pois bem, o novo artigo 50 do Código Civil delimita as hipóteses em que essa desconsideração é possível, restringindo-as a casos de utilização dolosa da pessoa jurídica e de confusão entre os patrimônios da sociedade e seus sócios. Especialmente importante é o parágrafo que impede a desconsideração de personalidade jurídica por mera existência de grupo econômico,

 

  • Parágrafo único do artigo 423. O artigo 423 trata da interpretação de contratos e a sua redação original estabelecia que nos contratos de adesão, havendo cláusulas ambíguas ou contraditórias, deveria ser adotada interpretação mais favorável ao aderente. A nova redação trazida pela MP mantém esse conceito, com uma amplitude ainda maior (cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação), mas acrescenta um parágrafo único que se dirige a todo e qualquer contrato (não apenas contratos de adesão): exceto quando houver disposição em lei, a dúvida na interpretação de contrato beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida,

 

  • Novo artigo 421. A chamada “função social do contrato” foi introduzida pelo Código Civil de 2002 com o objetivo de assegurar que os contratos fossem executados em benefício das partes, sem prejudicar o interesse público. Para tanto, o Estado assumia o papel de garantidor do equilíbrio contratual. Os anos que se seguiram após a publicação do Código Civil de 2002 levaram à consolidação doutrinária e jurisprudencial do conceito de “função social”. A MP modifica completamente esse cenário. Ao submeter a “função social do contrato” à Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e tornar excepcional a intervenção do Estado nas relações contratuais privadas, a MP deve provocar uma profunda revisão do conceito até então consagrado pela doutrina e pela jurisprudência,

 

  • Artigo 480-B. A nova redação introduzida pela MP estabelece uma presunção de simetria entre os contratantes de relações interempresariais e a observância da alocação de riscos por eles definida. O novo dispositivo afasta, dessa forma, argumentos de hipossuficiência de parte em contratos empresariais,

 

  • Parágrafo sétimo do artigo 980-A. O novo parágrafo sétimo do artigo 980-A finalmente deixa claro que apenas o patrimônio social da empresa individual de responsabilidade limitada (a EIRELI) responderá pelas suas dívidas e não se confundirá com o patrimônio de seu titular, exceto em caso de fraude,

 

  • Parágrafo único do artigo 1.052. Outra mudança significativa trazida pela MP está nesse dispositivo. Passa a ser possível constituir uma sociedade limitada com um único membro, eliminando a artificial necessidade de constar um segundo membro com uma participação simbólica para garantir a “pluralidade de sócios”. Como à nova sociedade unipessoal não se aplicam as várias exigências que lei impõe à constituição de EIRELI, é bem provável que a EIRELI rapidamente caia em desuso e as já existentes se transformem em limitadas,

 

  • Artigo 1.368-C, D e E. A MP introduz no Código Civil, pela primeira vez, o conceito de fundos de investimento como uma forma especial de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros. A relevância dessa alteração está especialmente no artigo 1.386-D, que prevê a criação de fundos de investimento com responsabilidade limitada de cada condômino. Além disso, a MP também autoriza a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários (gestores e administradores). Claramente, são alterações que pretendem dar mais segurança jurídica aos investidores do mercado financeiro e de capitais e reduzir os custos de gestão e administração de fundos de investimento.

 

Alterações à Lei das S.A.

Em seu artigo 8º, a MP 881 altera dois dispositivos da Lei n. 6.404/1976, a Lei das S.A.

A primeira alteração, do artigo 85 da Lei das S.A., elimina uma obrigação completamente ultrapassada. Na subscrição de ações de companhias abertas, ainda havia na lei a previsão de assinatura de lista ou boletim de subscrição. Obviamente, com o desenvolvimento do mercado de capitais e a introdução de novas tecnologias, essa assinatura deixou de ser necessária para formalizar a subscrição. Com a nova redação trazida pela MP, fica dispensada a assinatura sempre que a liquidação for feita por entidade administradora de mercados organizados de valores mobiliários.

A segunda alteração é singela, mas com potencial de dar início a profundas transformações no mercado de capitais brasileiro. A introdução do artigo 294-A na Lei das S.A. atribui à CVM competência para dispensar exigências legais para companhias de pequeno e médio e porte, de forma a facilitar seu acesso ao mercado de capitais. A atribuição de tamanha competência à CVM, inclusive para a própria fixação dos conceitos de companhias de pequeno e médio porte, é certamente discutível, mas está claro o objetivo da alteração: finalmente fazer com que o mercado de capitais não fique reservado apenas às maiores empresas do país.

 

Outras Alterações

Na sua parte final, a MP promove mais algumas alterações de textos normativos. Resumimos abaixo as principais:

  • Lei de Falências. A MP insere na Lei de Falências o artigo 82-A, essencialmente para alinhar a responsabilidade de sócios e administradores ao teor do novo artigo 50 do Código Civil (conforme acima explicado), ou seja, para admitir a desconsideração de personalidade jurídica apenas em casos de dolo e confusão patrimonial,

 

  • A Lei n. 11.598/2007 criou a Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (“REDESIM”). A MP permite que o próprio Poder Executivo federal classifique as atividades empresariais de baixo risco, que melhor podem fruir dos benefícios do REDESIM,

 

  • Elaboração e arquivamento de documentos em formato eletrônico. A MP também altera a Lei n. 12.682/2012, que trata de documentos em formato eletrônico, reintroduzindo artigos do texto original que haviam sido vetados pela então Presidente Dilma Rousseff. São dispositivos que equiparam documentos digitais aos originais em meios físicos, permitindo a destruição dos originais e a utilização dos digitais como meio de prova para todos os fins de direito, inclusive fiscalizações tributárias. Além disso, os novos dispositivos autorizam a eliminação das próprias versões digitais após o decurso dos respectivos prazos de decadência ou prescrição,

 

  • Lei de Registros Públicos. A MP altera a Lei n. 6.015/1973, que trata de temas como o registro civil de pessoas naturais e jurídicas, o registro de títulos e documentos, registro imobiliário etc. O novo dispositivo inserido pela MP permite a escrituração e conservação dos registros em meio eletrônico,

 

  • Lei n. 10.522/2002. A MP promove importantes alterações à Lei do CADIN, o Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal, que cuida também de diversos aspectos da atuação das autoridades fiscais federais. Uma novidade é a criação de um Comitê, formado por integrantes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, da Receita Federal, do Ministério da Economia e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a quem caberá editar enunciados de súmulas de entendimentos a serem observadas nos atos administrativos, normativos e decisórios desses órgãos. Trata-se de uma importantíssima iniciativa com o propósito de harmonizar as interpretações das autoridades fiscais e conferir maior segurança jurídica aos contribuintes. Na mesma linha, a MP altera o artigo 19 da Lei n. 10.522, autorizando a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a desistir de processos e recursos quando já houver entendimento em sentido contrário do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, do Advogado-Geral da União, súmula vinculante ou declaração de inconstitucionalidade pelo STF, ou decisão irreversível do próprio STF, do STJ, do TST, TSE ou da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, ou, ainda, súmula do Comitê criado pela própria MP (ver acima),

 

  • Lei Delegada n. 4/1962. A MP revoga integralmente essa Lei Delegada, que permitia à União intervir no domínio econômico para garantir a oferta de produtos e serviços considerados essenciais. Tratava-se de uma legislação que possibilitava práticas como tabelamento de preços e confisco de mercadorias. Evidentemente, sua existência seria impossível em um contexto de liberdade econômica e mínima intervenção estatal, como proposto na MP,

 

  • Decreto-Lei n. 73/1966. A MP 881 revogou o chamado “princípio da reciprocidade” que constava desse Decreto-Lei, flexibilizando o mercado brasileiro para a entrada de seguradoras estrangeiras, fomentando a competividade com a decorrente melhoria de serviços e redução de preços.

 

Concluindo

Sem prejuízo dos ajustes que lhe são necessários, acreditamos que a MP 881 tem potencial para ser o início de uma Reforma Econômica que, com o tempo, poderá permitir às empresas e aos empreendedores brasileiros serem globalmente competitivos.

Continuamos acompanhando atentamente a sua tramitação e voltaremos aqui para explicar as modificações que forem feitas ao texto original, compartilhando as novidades com vocês.

Quer saber mais?

Entre em contato com os autores ou visite a página da área de Mercado Financeiro e de Capitais

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