O Brasil vem se esforçando para incentivar o nascimento e crescimento de ecossistemas de startups no país. Podemos citar como exemplo a regulação da CVM sobre Crowdfunding e a criação dos contratos de investimento anjo.
É natural que empreendedores tentem aprender com os ecossistemas mundialmente conhecidos, como o sempre inovador Vale do Silício ou o veloz e intenso ecossistema de Pequim[1]. No entanto, tendo em vista o histórico político e econômico desses países e que os seus ecossistemas já estão consolidados, algumas comparações podem acabar sendo inadequadas à realidade brasileira. E se, ao invés de olharmos para os gigantes já estabelecidos, colocarmos em foco um país em desenvolvimento que possuí ecossistema em construção para superar as suas próprias dificuldades de maneira inovadora e criativa?
Então, vamos falar sobre o Quênia.
Os primeiros passos da antiga colônia inglesa foram dados no início dos anos 2000: a chegada dos smartphones no mercado internacional derrubou o preço dos celulares convencionais, que passaram a caber no bolso do queniano[2] e a instalação de cabos submarinos de acesso à internet conectaram a África ao resto do mundo[3].
A consolidação do uso dos celulares no país abriu espaço para lidar com seus problemas de circulação de dinheiro[4]. A economia informal do Quênia é tão enorme e extremamente ativa[5] que possuí um nome próprio: Jua Kali[6][7]. No entanto, essa informalidade se apresentava como um empecilho para as transações financeiras, tendo em vista a dificuldade de se abrir uma conta bancária ou ter acesso ao crédito[8]. Isso acabava criando também problemas de segurança, pois, sem utilizar transações bancárias, os comerciantes informais eram obrigados a circular com grandes quantias de dinheiro em espécie, facilitando assaltos e furtos.
A economia brasileira também possui uma economia informal grande e que anda crescendo. Em 2016, a economia informal nacional representava 16,3%[9] do nosso PIB. Por outro lado, 64%[10] dos brasileiros possuí conta bancária.
A infraestrutura do país também prejudicava a circulação de crédito. Apesar do crescimento da comunicação móvel, não havia uma estrutura sólida de provedores de backbone.
Ao invés de encarar a informalidade como um problema, a M-PESA[11] utilizou a comunicação móvel para encontrar espaço na grande economia informal. A empresa possibilitou a realização de transações de crédito por meio de SMS para que, posteriormente, os usuários pudessem sacar o dinheiro em “caixas eletrônicos” da empresa.
Outro exemplo da utilização da inovação para a superação de desafios no país surgiu no final de 2007. Naquele ano, o Quênia passou por uma crise eleitoral que culminou em diversos conflitos e perseguições espalhadas por todo o território[12]. A empresa Ushahidi[13] reagiu criando um mapa colaborativo para que seus usuários pudessem sinalizar e evitar regiões perigosas, atualizando as informações por SMS.
Hoje, a empresa fornece diversos serviços de analytics e planos especiais, não se resumindo a um aplicativo de localização.
As mudanças continuaram na década seguinte. A nova constituição do Quênia[14], promulgada em 2010, apresenta elementos bastante inovadores, como cotas para diversos cargos do governo para jovens e mulheres.
As mulheres e jovens são figuras fortes na economia do país. As chamas[15] eram pequenos grupos formados por mulheres que investiam parte do seu dinheiro para atingir um determinado objetivo: crédito mobiliário, utensílios, instrumentos agrícolas, etc. Hoje, esses grupos se tornaram mais sofisticados e diversificados, homens e mulheres realizando grandes investimentos em áreas como transporte agricultura e bens imobiliários.[16]
Voltando para 2010, além da constituição, foi criado o primeiro centro para a formação de um verdadeiro ecossistema de startups no país, o iHub[17]. Uma iniciativa que não busca apenas acelerar as novas empresas, mas também formar mão de obra especializada para essa onda tecnológica, focando, principalmente, em programadores e empreendedores.
Além disso, em 2013, o governo queniano iniciou a construção de uma cidade voltada para a formação de startups: Konza[18]. A cidade que é “uma capital da inovação” simboliza o importante papel que o Estado tem desempenhado para o desenvolvimento da inovação no país[19]. Já foram investidos cerca de 15 bilhões de dólares em sua construção e sua conclusão está prevista para 2030[20].
Apesar do mérito dessas iniciativas e de perspectivas muito interessantes, o país ainda enfrenta graves problemas. Há uma nova crise eleitoral, nos mesmos moldes daquela enfrentada em 2007[21]. Essa crise política eleitoral enfrentada pelo Quênia também é próxima do cenário brasileiro, tendo em vista a fragilização da nossa democracia com o processo de impeachment da ex-presidente Dilma em 2016[22].
Não há dúvida, porém, que o Quênia é um caso muito interessante de um país em desenvolvimento, com uma economia informal enorme, que está comprometido com a criação de ecossistema de startups mediante a combinação de esforços do governo e da iniciativa privada.
Entre os países africanos, especialmente, o Quênia merece destaque. Certamente é um caso a ser acompanhado de perto pelos fomentadores do ecossistema de inovação no Brasil. Há lições de lá que podem ser aproveitadas e nós também podemos compartilhar nossa experiência e criar diálogos bastante produtivos com a sua cena de inovação. E quem sabe existam, além de lições, oportunidades a serem conjuntamente exploradas pelos empreendedores dos dois países.