Baptista Luz

16/04/2018 Leitura de 5’’

Superação de desafios pela inovação: O caso do Quênia

16/04/2018

O Brasil vem se esforçando para incentivar o nascimento e crescimento de ecossistemas de startups no país. Podemos citar como exemplo a regulação da CVM sobre Crowdfunding e a criação dos contratos de investimento anjo.

É natural que empreendedores tentem aprender com os ecossistemas mundialmente conhecidos, como o sempre inovador Vale do Silício ou o veloz e intenso ecossistema de Pequim[1]. No entanto, tendo em vista o histórico político e econômico desses países e que os seus ecossistemas já estão consolidados, algumas comparações podem acabar sendo inadequadas à realidade brasileira. E se, ao invés de olharmos para os gigantes já estabelecidos, colocarmos em foco um país em desenvolvimento que possuí ecossistema em construção para superar as suas próprias dificuldades de maneira inovadora e criativa?

Então, vamos falar sobre o Quênia.

Os primeiros passos da antiga colônia inglesa foram dados no início dos anos 2000: a chegada dos smartphones no mercado internacional derrubou o preço dos celulares convencionais, que passaram a caber no bolso do queniano[2] e a instalação de cabos submarinos de acesso à internet conectaram a África ao resto do mundo[3].

A consolidação do uso dos celulares no país abriu espaço para lidar com seus problemas de circulação de dinheiro[4]. A economia informal do Quênia é tão enorme e extremamente ativa[5] que possuí um nome próprio: Jua Kali[6][7]. No entanto, essa informalidade se apresentava como um empecilho para as transações financeiras, tendo em vista a dificuldade de se abrir uma conta bancária ou ter acesso ao crédito[8]. Isso acabava criando também problemas de segurança, pois, sem utilizar transações bancárias, os comerciantes informais eram obrigados a circular com grandes quantias de dinheiro em espécie, facilitando assaltos e furtos.

A economia brasileira também possui uma economia informal grande e que anda crescendo. Em 2016, a economia informal nacional representava 16,3%[9] do nosso PIB. Por outro lado, 64%[10] dos brasileiros possuí conta bancária.

A infraestrutura do país também prejudicava a circulação de crédito. Apesar do crescimento da comunicação móvel, não havia uma estrutura sólida de provedores de backbone.

Ao invés de encarar a informalidade como um problema, a M-PESA[11] utilizou a comunicação móvel para encontrar espaço na grande economia informal. A empresa possibilitou a realização de transações de crédito por meio de SMS para que, posteriormente, os usuários pudessem sacar o dinheiro em “caixas eletrônicos” da empresa.

Outro exemplo da utilização da inovação para a superação de desafios no país surgiu no final de 2007. Naquele ano, o Quênia passou por uma crise eleitoral que culminou em diversos conflitos e perseguições espalhadas por todo o território[12]. A empresa Ushahidi[13] reagiu criando um mapa colaborativo para que seus usuários pudessem sinalizar e evitar regiões perigosas, atualizando as informações por SMS.

Hoje, a empresa fornece diversos serviços de analytics e planos especiais, não se resumindo a um aplicativo de localização.

As mudanças continuaram na década seguinte. A nova constituição do Quênia[14], promulgada em 2010, apresenta elementos bastante inovadores, como cotas para diversos cargos do governo para jovens e mulheres.

As mulheres e jovens são figuras fortes na economia do país. As chamas[15] eram pequenos grupos formados por mulheres que investiam parte do seu dinheiro para atingir um determinado objetivo: crédito mobiliário, utensílios, instrumentos agrícolas, etc. Hoje, esses grupos se tornaram mais sofisticados e diversificados, homens e mulheres realizando grandes investimentos em áreas como transporte agricultura e bens imobiliários.[16]

Voltando para 2010, além da constituição, foi criado o primeiro centro para a formação de um verdadeiro ecossistema de startups no país, o iHub[17]. Uma iniciativa que não busca apenas acelerar as novas empresas, mas também formar mão de obra especializada para essa onda tecnológica, focando, principalmente, em programadores e empreendedores.

Além disso, em 2013, o governo queniano iniciou a construção de uma cidade voltada para a formação de startups: Konza[18]. A cidade que é “uma capital da inovação” simboliza o importante papel que o Estado tem desempenhado para o desenvolvimento da inovação no país[19]. Já foram investidos cerca de 15 bilhões de dólares em sua construção e sua conclusão está prevista para 2030[20].

Apesar do mérito dessas iniciativas e de perspectivas muito interessantes, o país ainda enfrenta graves problemas. Há uma nova crise eleitoral, nos mesmos moldes daquela enfrentada em 2007[21]. Essa crise política eleitoral enfrentada pelo Quênia também é próxima do cenário brasileiro, tendo em vista a fragilização da nossa democracia com o processo de impeachment da ex-presidente Dilma em 2016[22].

Não há dúvida, porém, que o Quênia é um caso muito interessante de um país em desenvolvimento, com uma economia informal enorme, que está comprometido com a criação de ecossistema de startups mediante a combinação de esforços do governo e da iniciativa privada.

Entre os países africanos, especialmente, o Quênia merece destaque. Certamente é um caso a ser acompanhado de perto pelos fomentadores do ecossistema de inovação no Brasil. Há lições de lá que podem ser aproveitadas e nós também podemos compartilhar nossa experiência e criar diálogos bastante produtivos com a sua cena de inovação. E quem sabe existam, além de lições, oportunidades a serem conjuntamente exploradas pelos empreendedores dos dois países.

Quer saber mais?

Entre em contato com os autores ou visite a página da área de Inovação

NOTAS E REFERÊNCIAS:

 

Notas:

 

[1]VENTURE COMMUNISM: HOW CHINA IS BUILDING A START-UP BOOM. 03 de setembro de 2016.The New York Times. SCHUMAN, Michael. Disponível em https://goo.gl/sXiJFY. Acessado em 10.01.2018

[2] KENYA STARTUP ECOSYSTEM: WELCOME TO THE LAND OF MOBILE MONEY. Dezembro de 2013. Innovation is Everywhere. PASQUIER, Martin. Disponível em https://goo.gl/cJkXMc. Acessado em 10.01.2013

[3] CAN THE INTERNET REBOOT AFRICA? 25 de julho de 2016. The Guardian. Rice-Oxley, Mark; FLOOD, Zoe. Disponível em https://goo.gl/MTTHn2. Acessado em 10.01.2018

[4] IN KENYA, PHONES REPLACE BANK TELLERS. Maio, 2017. The New York Times. ROSENBERG, Tina. Disponível em https://goo.gl/iSywAE. Acessado em 16.02.2018.

[5] “Kenya’s informal sector is large and dynamic – 95 percent of the country’s businesses and entrepreneurs are found here. According to 2015 Economic Survey, the total number of persons enrolled in both formal and informal sectors increased from 13.5 million in 2013 to 14.3 million in 2014, and of the 799,700 new jobs, 700,000 were created by the informal sector.” INFORMAL ENTERPRISES IN KENYA. Janeiro, 2016. World Bank Group. Pg. 1. Disponível em https://goo.gl/KW2vYA. Acessado em 16.02.2018.

[6] Jua Kali é um termo em suaíli que significa Sol escaldante.

[7] Em 2016, 89% dos novos empregos do Quênia foram gerados no setor informal. ECONOMIC SURVEY 2017. Kenya National Bureau Statistics. Pg. 2. 2017. Disponível em https://goo.gl/mHcnFR. Acessado em 19.02.2018.

[8] “…only 9 percent of firms in the sample use banks to finance working capital…”. INFORMAL ENTERPRISES IN KENYA. Janeiro, 2016. World Bank Group. Pg. 11. Disponível em https://goo.gl/KW2vYA. Acessado em 16.02.2018.

[9] Disponível em https://goo.gl/3K6TJC. Acessado em 19.02.2018

 [10] Disponível em https://goo.gl/1ujByu. Acessado em 19.02.2018.

[11] Disponível em https://goo.gl/U2mVFM. Acessado em 22.01.2018.

[12] ETHNICITY AND VIOLENCE IN THE 2007 ELECTIONS IN KENYA. DERCON, Afrobarometer Briefing Paper. No. 48. DERCON, Stefan. Fevereiro de 2008. Disponível em: https://goo.gl/j4LQ7F. Acessado em 22.01.2018.

[13] Disponível em https://goo.gl/5WH7Fs. Acessado em 10.01.2018.

[14]Disponível em https://goo.gl/M2Z83h. Acessado em 10.01.2018.

[15] Chama significa, em suaíli, grupo de pessoas.

[16] GICHURU, Mercy. STRATEGIC PLANNING IN INVESTMENT GROUPS (CHAMA) IN NAIROBI COUNTY. Disponível em https://goo.gl/PyLhCf. 2014. Acessado em 30.01.2018.

[17] Disponível em https://goo.gl/h1cQXW. Acessado em 10.01.2018

[18] KENYA BEGINS CONSTRUCTION OF ‘SILICON’ CITY KONZA. 23 de janeiro de 2013. BBC. Disponível em https://goo.gl/PKgc5W. Acessado em 10.01.2018.

[19] SCIENCE, TECHNOLOGY AND INNOVATION POLICY AND STRATEGY. Republic of Kenya Ministry of Science and Technology. Março de 2018. Disponível em https://goo.gl/XJsjEP. Acessado em 22.01.2018.

[20]The Kenya Vision 2030 is the national long-term development policy that aims to transform Kenya into a newly industrializing, middle-income country providing a high quality of life to all its citizens by 2030 in a clean and secure environment.” Site da Vision 2030. Disponível em https://goo.gl/hfFLPK. Acessado em 16.02.2018.

[21] KENYAN ELECTIONS IN CRISIS AGAIN. 13 de outubro de 2017. The New York Times. Editorial. Disponível em https://goo.gl/vymgAi. Acessado em 10.01.2018

[22] Disponível em https://goo.gl/uQUnNb. Acessado em 19.02.2018.

Mostrar + notas

Mais lidas:

Mais recentes:

Assine nossa newsletter

Inscreva-se para receber informações relevantes sobre o universo jurídico e tomar decisões informadas que vão impactar seus negócios.

Nós respeitamos a sua privacidade e protegemos seus dados pessoais de acordo com a nossa Política de Privacidade.

Baptista Luz