Baptista Luz

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16/07/2021 Leitura de 8’’

Propriedade Intelectual na indústria da Cannabis

16/07/2021
  • 8’’
  • / Escrito por:

    Julia Ameida

Conforme abordado no primeiro artigo desta série, a regulação do mercado canábico no Brasil e no mundo encontra-se em um momento de efervescência. Com as recentes regulamentações por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“ANVISA”), em especial a Resolução da Diretoria Colegiada nº 327/2019 (RDC 327/2019), que dispõe sobre a fabricação, importação e comercialização de produtos de cannabis para fins medicinais, diversos investidores e interessados passam a se voltar para esse mercado e sua exploração.

Além disso, a Comissão Especial da Câmara aprovou na terça-feira (8) um projeto que libera o cultivo, por empresas, da cannabis para fins medicinais e industriais. Com 17 votos a favor e 17 contra, e voto de minerva realizado pelo relator, foi aprovado pela Comissão Especial o substitutivo do PL 399/2015, que dispõe sobre a legalização do cultivo da Cannabis sativa no Brasil exclusivamente para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais. O substitutivo enfrentou 10 destaques, todos derrubados pelo colegiado.

Essa perspectiva progressista abre reflexões, trazidas neste texto. Onde, principalmente, podemos observar o desenvolvimento de um mercado legal. Este novo mercado – e um mercado com potencial de movimentar R$4,7 bilhões, de acordo com pesquisa da New Frontier Data e The Green Hub -, abre espaço para uma corrida visando a obtenção das melhores ideias e invenções. Assim, não se pode deixar de falar sobre o impacto que tal desenvolvimento tem sobre as proteções de propriedade intelectual (“PI”), inclusive pela modificação de regras e procedimentos de registros existentes.

Falaremos de alguns dos principais pontos de interseção entre o mercado da cannabis e sua possibilidade de proteção pela PI a seguir.

 

Marcas

 

Em conformidade com o art. 124, inciso III, da Lei 9.276/96 (“Lei de Propriedade Industrial” ou “LPI”), não são registráveis as marcas que contenham qualquer elemento “contrário à moral e aos bons costumes[1]”. Com base em tal disposição, até recentemente, a prática do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (“INPI”) era indeferir pedidos que fizessem referência à cannabis e seus derivados. Como exemplo, encontra-se decisão do final de 2017, em que o INPI indeferiu processo de registro de marca CIGARRILHA DE MACONHA (909760675), para serviços de comércio, com base no inciso mencionado.

Contudo, com a regulamentação de procedimentos para importação de produtos à base de canabidiol, bem como a sua aprovação para uso terapêutico, afasta-se uma noção absoluta de que produtos derivados de tal planta atentem contra a moralidade brasileira. Hoje, já é possível declarar na especificação de uma marca produtos e serviços específicos para o uso da cannabis, bem como utilizar nomes e logotipos que contenham referência à planta.

Inclusive, vale mencionar que, antes mesmo da regulamentação da ANVISA, a questão já havia sido posta perante os tribunais brasileiros. Em 2018, a 13ª Vara Federal do Rio de Janeiro analisou pedido de nulidade de ato administrativo contra o INPI por parte de titular de pedidos de registro “BRAZILIAN MARIHUANA” (906549701) e “BRAZILIAN CANNABIS” (907036350), os quais haviam sido indeferidos com base no já mencionado art. 124, inciso III da LPI (Procedimento Comum 5030178-42.2018.4.02.510). A magistrada em questão, em que pese tenha eventualmente decidido que os pedidos de registro eram compostos por expressões genéricas, entendeu estarem equivocados os critérios do INPI para decidir pelo indeferimento “haja vista ter restado mitigado o caráter ofensivo do termo “maconha” e de seus equivalentes, especialmente ante a descoberta de suas propriedades terapêuticas e a evolução social sobre o tema”.

Não obstante, relembra-se que as recentes regulações tratam apenas sobre produtos com fins medicinais e para pesquisa, de modo que qualquer outro tipo de atividade ainda é considerada ilícita no Brasil. Assim, o que se tem notado por parte do INPI, é publicação de exigências requerendo que um titular de pedido de registro de marca com referência a tais produtos demonstre que pode exercer a atividade licitamente.

 

Patentes

 

Após a já mencionada regularização pela ANVISA, muitas empresas de maconha e cânhamo passaram a buscar a proteção de patentes para uso medicinal.

No Brasil, o art. 10 da Lei de Propriedade Intelectual proíbe a concessão de patentes para “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais”, excluindo a aplicabilidade dessa forma de proteção intelectual para a planta e seus derivados, resguardava a exceção do art. 18 sobre transgênicos.

Dessa forma, o mercado tende a se voltar para a solicitação de patentes no setor químico-farmacêutico. Para a concessão de tais registros, é necessária a prévia anuência da ANVISA, conforme o art. 229-C da Lei de Propriedade Industrial, por considerar-se que a utilização de tais soluções tem uma relação direta com a saúde dos consumidores.

Nesse sentido, já se tornaram notórios casos de patentes concedidas para essa área, como a patente de canabidiol diluído em óleo, obtida pela empresa farmacêutica PRATI, DONADUZZI & CIA LTDA (BR 11 2018 005423 2 B1), que posteriormente teve solicitada a sua anulação pelo colegiado da 2ª instância do INPI, após seis técnicos entenderem que a substância pleiteada não poderia ser considerada inventiva. Assim, nota-se que ainda que o uso dessas substâncias tenha sido regularizado em certa medida, ainda devem obedecer aos critérios legais aplicáveis ao registro de qualquer patente.

Inclusive, em conformidade com pesquisa realizada pela revista Fitos, da Fiocruz em 2019, constatou-se que muitos dos pedidos de patentes solicitados, em razão da demora para análise e anuência prévia da ANVISA, entraram em domínio público, resultando no arquivamento definitivo dos requerimentos no INPI. Tais arquivamentos, sugere-se, podem ser decorrentes da ausência de correspondência entre as empresas (em sua maioria estrangeiras) e os escritórios do órgão, bem como por conta do desconhecimento da legislação regulatória e de propriedade brasileira por parte das requerentes.

 

Cultivares

 

Ainda que não seja possível solicitar patente sobre seres vivos e materiais biológicos, não se pode esquecer que as melhorias em uma variedade vegetal podem ser protegidas pela figura das cultivares, conforme a Lei 9.456/97 (“Lei de Proteção de Cultivares”).

Uma cultivar é a variedade de qualquer gênero e espécie vegetal superior que contenha características que a distinga de outras variedades semelhantes por meio de melhorias criadas. Tais características, denominadas descritores, podem ser morfológicas, fisiológicas, bioquímicas ou moleculares, herdadas geneticamente e utilizadas na identificação de cultivar.

Assim, no Brasil, nos termos do art. 4º da Lei de Proteção de Cultivares, o registro de plantas com tais melhorias pode tornar-se inclusive um incentivo para a sua adaptação para fins específicos, inclusive os medicinais e garantir o retorno do investimento para pesquisas nessa área. Ainda, o registro formal de tais desenvolvimentos pode permitir o uso de variedades estrangeiras por meio de acordos com empresas de outros países.

 

Desenho industrial, software e demais formas de proteção

 

Por fim, em que pese nos tópicos anteriores tenha se trazido proteções diretamente afetadas pela regularização de certos usos da cannabis, não se pode deixar de mencionar que outras formas de proteção intelectual poderão ser utilizadas para proteger os acessórios, técnicas e instrumentos para o desenvolvimento desse mercado. É o caso, por exemplo, do registro desenhos industriais para designs inovativos de embalagens de produtos ligados à planta, o desenvolvimento de programas de computador (software) próprios para gestão e controle do produto, bem como a criação de segredos empresariais e know-how em torno de sua produção.

 

Conclusão

 

Como visto, é cristalino que as medidas de regularização para o uso da cannabis e a corrida por inovação que esse novo mercado gera, criam novos desafios para a proteção da PI do Brasil. Ao mesmo tempo, já é possível notar o movimento legislativo, judiciário e administrativo para se adaptar a tais disposições, especialmente no que se refere à atuação do INPI no registro de marcas e patentes.

Ainda que não esteja regulada no Brasil, vale apontar que a utilização da cannabis não é restrita apenas ao seu uso medicinal. Reforçamos: já se tem o registro de empresas que utilizam o cânhamo na produção de tecidos, por mostrar-se como uma alternativa mais resistente e eficiente ao algodão, na construção como substituto à madeira e até mesmo ao concreto, na produção de plásticos e biocombustíveis e, no papel, na tinta, em produtos cosméticos e de higiene pessoal, dentre outras.

Desse modo, cumpre aos aplicadores das leis no Brasil, a tarefa de criar um sistema adequado de proteção para a exploração dessa área, conforme seu desenvolvimento e regularização. Nesse contexto, pode a PI atuar em conjunto para recompensar as pessoas e empresas inovadoras, garantindo a proteção dos direitos daqueles que trazem novas soluções econômicas ao mercado.

 

 

Quer saber mais?

Entre em contato com os autores ou visite a página da área de Propriedade Intelectual

NOTAS E REFERÊNCIAS:

[1] Interessante destacar que este argumento é muito mais vago do que o estabelecido pela ANVISA, conforme tratamos no texto passado. Ela ainda parece ter a preocupação de se basear em fundamentos científicos mais objetivos ao determinar mais substâncias podem ser tidas como proibidas ou não para consumo. Recorrer à moral e os bons costumes abre um leque muito debatível atualmente, pensando que os avanços sociais descartaram como reprováveis muitos comportamentos rotineiros de nossa sociedade.
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