Baptista Luz

07/04/2021 Leitura de 10’’

Plataformas de entrega e cláusula de exclusividade: como deve ser a atuação do CADE?

07/04/2021
  • 10’’

As autoridades da concorrência do mundo todo têm realizado inúmeros estudos sobre o funcionamento das plataformas digitais.

A União Europeia, o Reino Unido e os Estados Unidos estão, naturalmente, mais avançados na análise do tema. Na Europa, foram propostas duas novas legislações sobre mercados digitais[1], que buscam, dentre outras coisas, estimular inovação e competitividade, proteger consumidores e evitar que gatekeepers[2] abusem de sua posição dominante. O Reino Unido, por sua vez, propôs uma análise distinta para as aquisições envolvendo empresas com “status de mercado estratégico”[3]. Já nos Estados Unidos, o Subcomitê de Direito Antitruste, Comercial e Administrativo publicou um relatório sobre a concorrência em mercados digitais, que contém, inclusive, recomendações para restabelecer a concorrência nesses mercados[4].

O CADE, até o momento, se limitou a publicar um estudo revisando relatórios especializados elaborados por autoridades internacionais[5], buscando tão somente sintetizar a análise de outras autoridades e aprimorar a política interna da autarquia. Como o próprio documento explica, o estudo não reflete, necessariamente, a visão da autarquia.

Espera-se, contudo, que surjam cada vez mais casos envolvendo mercados digitais[6], o que certamente exigirá um posicionamento da autoridade brasileira acerca da necessidade ou não de adequar as regras de defesa da concorrência no país. É nesse contexto que trazemos a análise de um setor que cresceu ainda mais com o aumento do uso de aplicativos na pandemia: as plataformas e aplicativos de entrega e, mais especificamente, a forma como estruturam suas cláusulas de concorrência frente a seus parceiros.

No dia 10 de março, a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) impôs medida preventiva contra o aplicativo de delivery iFood: a empresa não poderá celebrar novos contratos que contenham cláusula de exclusividade, nem alterar contratos já celebrados nessa esfera até a decisão final do caso. A decisão do órgão demonstra que, de fato, existem particularidades nos mercados de plataformas digitais que precisam ser analisadas de forma cautelosa e, sobretudo, que condutas unilaterais[7] estão recebendo maior atenção por parte da autoridade concorrencial brasileira.

Abaixo, elaboramos um resumo com os principais pontos do caso e possíveis consequências para plataformas digitais e mercado de tecnologia como um todo.

 

  1. CADE vs iFood, um resumo do caso:

A investigação se iniciou após representação da Rappi, uma das concorrentes do iFood, a qual alegou que a concorrente é a maior foodtech da América Latina e se valeu de sua “incontestável posição dominante no Brasil” para praticar, de forma reiterada, condutas anticompetitivas que incluíram a discriminação dos restaurantes parceiros por meio da celebração de acordos de exclusividade e imposição de condições comerciais diferenciadas (i.e. mecanismos para excluir ou dificultar o desenvolvimento de potenciais players ou de players já estabelecidos, que é o caso da Rappi).

Citando documentos relevantes emitidos pela Comissão Europeia, autoridade responsável pela defesa da concorrência na União Europeia e Competition Markets Authority, autoridade de defesa da concorrência do Reino Unido, a Rappi explicou algumas particularidades dos mercados de plataformas digitais, como a competição por ecossistemas, que poderia gerar monopolização e dificultaria a interoperabilidade entre os usuários e a tendência dos denominados tipping effects, que ocorrem quando há uma acirrada competição no início e, após, um período de redução da concorrência em que o player dominante passa a usufruir de seu poder de mercado.

A Rappi também elencou como principais estratégias supostamente anticompetitivas do iFood (i) a imposição de acordos de exclusividade a restaurantes-chave; e (ii) uma série de aquisições de concorrentes menores pelo iFood. A respeito do segundo ponto, a Rappi destacou que o CADE já havia reconhecido durante a análise de outros atos de concentração envolvendo o iFood que o mercado de pedido online se tratava de um mercado concentrado e que havia preocupações concorrenciais a serem observadas, que seriam justamente as aquisições de concorrentes menores pelo iFood e os contratos de exclusividade impostos aos parceiros[8].

Por fim, a Rappi solicitou a concessão de medida preventiva a fim de determinar a suspensão imediata das obrigações de exclusividade entre iFood e restaurantes parceiros e que o iFood se abstenha de adotar qualquer tratamento discriminatório com restaurantes parceiros.

 

  1. O que aconteceu depois do recebimento da representação?

Após o recebimento da representação, o CADE emitiu ofício ao iFood solicitando manifestação sobre a representação. A autoridade elaborou um questionário robusto solicitando informações sobre o mercado de pedidos online de comida, destacando a solicitação de dados para estimação de poder de mercado e a importância de base de dados de usuários entregadores para o sucesso da empresa.

Importante destacar, ainda, que o CADE também solicitou dados de vendas do iFood, especificando o percentual advindo de restaurantes vinculados a contratos de exclusividade, bem como os dez maiores restaurantes parceiros do iFood e respectivas receitas de vendas nos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza, Belém e Manaus.

 

  1. Qual foi a alegação do iFood em sua resposta?

O iFood apresentou manifestação alegando, dentre outras coisas, que a Rappi estaria utilizando o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para “fins privados” e que a empresa seria capaz de concorrer com o iFood já que desde o início das suas operações no Brasil foi apoiada “pelos maiores fundos de capital de risco e private equity mundiais, incluindo o Softbank, Andreesen Horowitz, DST Global e Sequoia Capital”. Também foi destacado que, diferentemente do iFood, a Rappi atua em diversos segmentos que não restaurantes, de modo que não depende exclusivamente dessas parcerias, podendo entregar pedidos “até mesmo daqueles que não estejam vinculados à sua plataforma.”

No que tange à cláusula de exclusividade imposta pelo iFood, a empresa alegou que houve indução à erro, na medida em que a Rappi teria apresentado disposições contratuais fora de contexto, “tomando situações particulares e justificadas como se fossem gerais e abusivas”. Ademais, a plataforma explicou que as cláusulas de exclusividades teriam duração limitada, permitindo uma concorrência periódica que seria saudável para o mercado, além de gerar eficiência aos seus parceiros e mercado em geral.

 

  1. Quais foram os demais desdobramentos do caso até a imposição da medida preventiva?

Após algumas manifestações de Rappi e iFood, uma representação da ABRASEL, proposta três meses depois da denúncia da Rappi, foi juntada aos autos do procedimento preparatório[9], por se tratar de denúncias similares. Alguns dias depois, a Uber solicitou habilitação como terceira interessada no caso, assim como o Sindicato de Restaurantes, Bares e Demais meios de Alimentação do Município do Rio de Janeiro – SINDIRIO.

Embora o iFood tenha defendido não haver plausibilidade do direito nem tampouco perigo de dano ou risco ao resultado que justificassem a concessão da medida preventiva, o CADE entendeu que, apesar de ser necessária uma instrução para verificar se a cláusula de exclusividade pelo iFood tal qual como utilizada configuraria conduta anticompetitiva, havia requisitos que indicavam potencial prejuízo aos concorrentes no mercado.

Com relação ao perigo de dano, o CADE entendeu que, ainda que o prazo de exclusividade dos contratos do iFood não sejam tão extensos, considerando o dinamismo dos mercados digitais e, principalmente, o contexto atual em que o crescimento do mercado de delivery de comidas foi enormemente impulsionado pela pandemia de Covid-19, a celebração de contratos de exclusividade poderia agravar a concentração e impor barreiras não só à entrada como permanência no mercado e até mesmo condições de rivalizar de forma efetiva por não ter acesso a parceiros comercialmente atrativos.

Nesse sentido, ainda que ao final do processo decida-se pela licitude das condutas, caso não seja adotada medida preventiva durante a instrução, há alto risco de que sejam gerados danos irreversíveis a um mercado que já está sofrendo os efeitos da pandemia. Para evitar o descumprimento da medida, foi estabelecida, ainda, multa de R$ 150 mil por dia de descumprimento.

O Ifood, alguns dias após a decisão que deferiu a medida preventiva, protocolou petição com pedido de reconsideração, alegando que tal medida resrtingiria a liberdade do iFood de continuar concorrendo com as demais plataformas, além de trazer efeitos “extremamente negativos para o mercado de entregas de comida”, como a diminuição de rivalidade e criação de ineficiências. O CADE ainda não se manifestou.

 

  1. O que esperar agora?

O caso em questão foi transformado em inquérito administrativo logo após o deferimento da medida preventiva. O inquérito administrativo é um procedimento investigatório para apurar supostas infrações à ordem econômica. De acordo com a Lei de Defesa da Concorrência, o CADE deverá encerrar o inquérito no prazo de 180 dias, contados de sua instauração – que o correu no dia 12 de março.

Após o fim do prazo, a autoridade poderá optar(i) pela renovação do prazo de investigação por até 60 dias; (ii) pela instauração de processo administrativo, caso existam fortes indícios de práticas lesivas ao mercado; ou (iii) pelo arquivamento da investigação.

Ainda é cedo para dizer se o CADE irá considerar a prática do iFood lesiva ao mercado de pedidos online de comida. Por outro lado, o que se vê é que o CADE está, de fato, dando maior atenção às supostas condutas anticompetitivas envolvendo plataformas digitais e, especialmente, às condutas unilaterais. De fato, de acordo com o Anuário de 2020 publicado pela autoridade[10], das 76 investigações instauradas pela autoridade, 30 se referem a condutas unilaterais.

 

  1. Essa medida pode afetar as plataformas digitais ou outras empresas de tecnologia?

O próprio CADE já declarou anteriormente, no primeiro caso de conduta unilateral em plataformas digitais analisado pela autoridade[11], que tais plataformas trouxeram novas complexidades à análise concorrencial. Isso porque, embora já existissem mercados de múltiplos lados antes da economia digital, “a nova era digital aumentou suas hipóteses de incidência e, sobretudo, a dinâmica competitiva constantemente afetada por inovações, por vezes disruptivas e destrutivas.”

De fato, a preocupação sobre o funcionamento peculiar dos mercados digitais vem crescendo cada vez mais: os denominados gatekeepers realizaram, na última década, mais de 400 aquisições de empresas de tecnologia[12], sendo que a maioria sequer atingia os critérios para notificação às autoridades concorrenciais e, portanto, não foram reportadas.

Essas aquisições significam, por si só, que Big Techs impedem o crescimento de futuros concorrentes e que existem condutas anticompetitivas a serem investigadas? Além disso, seriam os critérios utilizados para notificação de operações – sobretudo o critério de faturamento – adequados para esses mercados?

Com a instauração do inquérito em questão, estimamos que outras empresas com operações no Brasil se sintam mais encorajadas a delatar práticas correlatas em seus mercados digitais de atuação e pode ser que teremos, finalmente, algum posicionamento do CADE.

 


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NOTAS E REFERÊNCIAS:

[1] As propostas de legislação são o Digital Services Act e o Digital Markets Act. Ambas estão disponíveis em: https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/digital-services-act-package.

[2] Gatekeepers é o termo utilizado pela Comissão Europeia para definir as grandes empresas de tecnologia: Google, Amazon,Facebook e Apple. De acordo com o Digital Markets Act, gatekeepers são plataformas que operam em um ou mais dos serviços principais do mundo digital (incluindo busca, redes sociais, serviços de mensagens instantâneas, serviços de intermediação online etc.).

[3] A proposta de legislação esta disponível em: https://assets.publishing.service.gov.uk/media/5fce706ee90e07562d20986f/Appendix_F_-_The_SMS_regime_-_a_distinct_merger_control_regime_for_firms_with_SMS_-_web_-.pdf.

[4] O relatório, denominado “Investigation of Competition in Digital Markets” está disponível em: https://judiciary.house.gov/uploadedfiles/competition_in_digital_markets.pdf

[5] O estudo, elaborado pelo Departamento de Estudos Econômicos (DEE), esta disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/Not%C3%ADcias/2020/Estudo%20do%20DEE%20aborda%20concorr%C3%AAncia%20em%20mercados%20digitaisDocumentodeTrabalhon5_Concorrenciaemmercadosdigitaisumarevisaodosrelatoriosespecializados.pdf

[6] A título de exemplo, para além de casos envolvendo o Google, há um caso relacionado a plataformas digitais agregadoras de academia de ginástica (Procedimento Preparatório nº 08700.004136/2020-65): a Total Pass, parte do grupo econômico das academias Smart Fit e Bio Ritmo, alegou que a Gympass, plataforma digital agregadora de academias de ginástica, vem impondo obrigação de exclusividade em seu termo de parceria padrão, além de monitorar e punir academias que se cadastram na plataforma de concorrentes.

[7] De acordo com a Cartilha do CADE (disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/cartilha-do-cade.pdf) “conduta anticompetitiva é qualquer prática adotada por um agente econômico que possa, ainda que potencialmente, causar danos à livre concorrência, mesmo que o infrator não tenha tido intenção de prejudicar o mercado”. A conduta unilateral, nesse sentido, é a conduta anticompetitiva praticada por um único agente, que detém posição dominante em seu mercado de atuação. Pode-se citar como exemplo a criação de barreiras à entrada de novos concorrentes, exigência de exclusividade, imposição de preços de revenda e prática de preços predatórios.

[8] A respeito da série de aquisições realizada pelo iFood, a SG informou que desde 2013 o iFood havia adquirido dez empresas emergentes do segmento de pedidos online de comida. É importante destacar que a aquisição de empresas ingressantes no mercado digital, sobretudo startups, por empresas dominantes no mercado, geralmente não são notificadas ao CADE por não atingirem o critério de faturamento definido pela autoridade (i.e., R$ 750 milhões para um dos grupos envolvidos e R$ 75 milhões para o segundo grupo envolvido). Apesar disso, as aquisições de concorrentes menores nos mercados digitais têm gerado preocupações concorrenciais no mundo todo justamente por consolidarem o poder das denominadas big techs.

[9]Procedimento Preparatório nº 08700.006672/2020-03.

[10] O Anuário do CADE de 2020 está disponível em: https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073.

[11] Voto-vogal do Conselheiro Paulo Burnier no âmbito do Processo Administrativo nº 08012.010483/2011-94, entre E-Commerce Media Group e Google.

[12] De acordo com o artigo “Competition in the digital age: reflecting on digital merger investigations”, disponível em: https://www.gov.uk/government/speeches/competition-in-the-digital-age-reflecting-on-digital-merger-investigations, Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft – o quinteto conhecido como GAFAM – realizou mais de 400 aquisições mundialmente.

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